«A
barragem de perguntas estava a começar a afectar o Kevin. Não podia responder
que, simplesmente, deixara ali ficar a criança; que o abutre não representava
nenhuma ameaça directa para a criança, uma vez que os abutres nunca atacam nada
que ainda dê sinais de vida. Nem era provável que a criança morresse de fome,
uma vez que o centro de distribuição de comida estava a uns escassos 100 metros
de distância. Kevin começou por dizer às pessoas que tinha afugentado o abutre
e que depois se afastara dali e se sentara debaixo de uma árvore a chorar. Não
sabia o que tinha acontecido à menina. Mas as perguntas continuavam a
repetir-se e ele começou a inventar que tinha visto a criança levantar-se e
caminhar até à clínica. Acalmava os receios de muitas pessoas quanto ao destino
da criança, porém, não safava Kevin do dilema moral: depois de ter tirado a
fotografia, porque não pegou ele na criança e a levou até ao centro, que estava
a menos de 100 metros? O seu trabalho como jornalista para mostrar a situação
dos sudaneses estava terminado, excedido até.»
Greg
Marinovich e João Silva, Bang-Bang Club.
Instantâneos de uma guerra oculta, trad. portuguesa, 2012, pp. 191-192
Não
é preciso falar muito do que todos sabem: a fotografia de Kevin Carter ganhou o
Pulitzer em 1994, o fotógrafo suicidar-se-ia poucas semanas depois. Há quem diga que Carter
não se matou por causa da culpa suscitada por aquela fotografia, que a criança
não estava moribunda, que o fotógrafo afugentou o abutre (aqui, numa notável reportagem do El Mundo). Também há quem tenha
feito um controverso remake da famosa
imagem: Xu Zhen, com The Starving of Sudan, 2008. Muitas e várias recriações, com destaque para a instalação de Alfred Jaar, em 1995. Os Manic Sreet Preachers, em 1996, dedicaram-lhe uma música, aliás péssima (aqui). Na Internet, é possível encontrar interpretações tendenciosas e completamente distorcidas do que esteve em causa, como esta.
Xu Zhen, The Starving of Sudan, 2008
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Alfred Jaar, The Sound of Silence, 1995, discutido aqui
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Existindo ou não uma
relação directa entre a imagem da criança e o suicídio de quem a captou, a
pressão mediática e o dilema moral certamente terão contribuído para aumentar
os demónios que Kevin Carter já transportava consigo. A criança sobreviveu, ele
não. Por muito estranho que pareça, escapou com vida o ser mais frágil em presença naquele
cenário, a criança cuja morte todos julgavam iminente (e, neste mundo tão generoso quanto mórbido, o impacto e o sucesso da
fotografia muito devem ao facto de retratar uma morte pressentida). Morreria, ao invés, aquele que, aberta ou veladamente,
muitos acusaram de nada ter feito para impedir essa morte iminente – e que, no
fim de contas, talvez não fosse tão iminente como a fotografia fazia crer. Uma reportagem feita dezoito anos depois descobriria que a criança sobreviveu, que era um menino (e não uma menina, como todos julgavam) e que se chamava Kong Nyong. O pai reconhecê-lo-ia, dizendo que morrera de «umas febres», em 2007 (aqui).
Uma suposta imagem de Kong Nyong
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O pai de Kong Nyong
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O êxito da imagem reside,
possivelmente, numa inverdade: afinal, a criança não estava moribunda, ainda que o pareça. É isso,
no fundo, que suscita o maior dos dramas morais. Por uma razão ou por outra (por não ter impedido uma morte iminente ou por ter ganho um Pulitzer à custa de uma
verdade aparente), Kevin Carter suicidar-se-ia semanas depois de conquistar o prémio. Poderão
existir outras razões pessoais mais próximas e mais directas para o seu irreversível gesto, e alguns dizem que já antes se tentara suicidar. Mas, no nosso tempo, talvez em todos os
tempos desde que a criação existe, este é dos casos mais eloquentes em que
alguém é vitimado pela sua obra. Talvez não por esta fotografia em concreto. Talvez não se matou apenas por causa desta fotografia, mas por tudo aquilo que vira e testemunhara desde que, aos 23 anos de idade, escolhera a profissão de fotojornalista (como, de resto, o próprio afirmou na carta que deixou ao matar-se, onde dizia não aguentar mais ver tanta atrocidade e tanto sofrimento). Kevin Carter morreu uma década depois, com 33 anos.
António Araújo
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