domingo, 18 de janeiro de 2015

O Picapau: "Uma Revista Humorística a Sério".


 
 

 
Os acontecimentos recentes com o Charlie Hebdo, num registo completamente distinto do que vem mobilizando os cidadãos, interpelam-nos sobre a ausência de uma simples folha humorística em Portugal . Há, é certo, as 4 páginas do “ Inimigo Público” no Público à sexta-feira, mas revistas ou jornais humorísticos ou satíricos com componente “cartoonística” e de ilustração desapareceram. E contudo Portugal teve ao longo dos sécs. XIX e XX muitos e bons jornais humorísticos. Bastará lembrar “A Paródia” , "A Choldra”, " O Berro", "O António Maria" onde Rafael Bordallo Pinheiro ou Leal da Câmara , entre muitos, pontificaram . Mas mesmo durante a ditadura salazarista multiplicaram-se tais jornais, pese a presença constante da Censura.
Este aspecto não deixa de surpreender. Como se o humor tivesse um especial estatuto ou pretendesse ser uma válvula de escape no contexto nada divertido do Estado Novo.
Nos anos 50 e 60, títulos como “ Os Ridículos” e o “Sempre Fixe” que já vinham da Primeira República , “ A Bomba”, “ Riso Mundial” ,” Bomba H”, “ Cara Alegre” , “Parada da Paródia” ou esse super-censurado “O Mundo Ri” onde José Vilhena marcou presença em muitas das suas capas (e no conteúdo) são exemplos da proliferação do sarcasmo impresso e da ilustração cómica.
"Os Ridículos " e o "Sempre Fixe", herdaram dos seus congéneres do séc. XIX e princípio do séc. XX, um determinado modelo de intervenção satírica na vida política e social, se bem que muito condicionado pela Censura, onde o texto prevalecia sobre a ilustração e o humor se adequava ao paradigma burlesco e "revisteiro" dos anos 20 e 30. A ruptura com esse tipo de humor haverá de encontrar-se em " A Bomba" e mais tarde na " Parada da Paródia" e no grupo de humoristas que se arrumam em torno dos "Parodiantes de Lisboa". Ora, uma das publicações que nesse particular se mostrou mais original, pese a sua vida breve, foi “O Picapau”. Saíram apenas sete números entre 24 de Novembro de 1955 e 5 de Janeiro de 1956 . De acordo com o depoimento do seu Director, António Gomes de Almeida, que haveria mais tarde de estar ligado aos “Parodiantes de Lisboa” , dirigindo a “ Parada da Paródia” (1960-1962) e a muitos outros projectos de humor, a efémera revista, subintitulada " Uma revista humorística a sério", concentrou um sem números de particularidades. Quer o modo como nasceu, quer alguns dos avatares censórios da sua curta vida, que , sobretudo, a forma originalíssima como morreu, merecem referência.
Vale a pena recordar alguns desses episódios.
A palavra pois a António Gomes de Almeida, que melhor que ninguém , nos apresenta Stuart Carvalhais, Matos Maia, Carlos Pinhão, João Martins e com eles o mundo do jornalismo e das publicações humorísticas nos anos 50: Vide:
 
 
         "Foi ainda o Stuart Carvalhais quem me desafiou para uma aventura que  começaria com alguma dificuldade, duraria um ano mais sete semanas – e terminaria razoavelmente mal.
Foi assim:
Como já contei, o Stuart tinha aquilo que se poderia chamar um relacionamento privilegiado com o "Diário de Notícias", a nível da sua Direcção e, igualmente, da Administração. Esta controlava, não só aquele importante jornal diário, como, também, a ENP - Empresa Nacional de Publicidade, que era a proprietária do "DN" e, ainda, do "Anuário Comercial", do "Mundo Desportivo", da revista de cinema "Estúdio", do juvenil "Diabrete", depois substituído pelo "Cavaleiro Andante", etc.
Um dia, o Stuart diz-me: "E se a gente fosse ao Diário de Notícias, apresentar uma proposta para fazermos uma revista humorística?"
O meu primeiro pensamento, confesso, foi este: "Olha, está com os copos!" É que, para mim, nesse tempo, o "Diário de Notícias" era uma instituição tão grande, tão gigantesca, tão inacessível, que me parecia perfeitamente impensável entrar um dia por aquela misteriosa porta rotativa, subir aquelas escadarias, chegar ao piso da Administração e dizer: "Aqui está uma maquete e um plano de trabalho para um semanário de humor". Pois bem, foi isso mesmo que aconteceu, semanas depois daquela primeira conversa. O Stuart dizia-me então: "Tu és organizadinho, sabes fazer estas coisas, escreves bem, podes arranjar aí uma proposta toda bonita! Eu, cá pela minha banda, trato de arranjar os contactos e de mexer os cordelinhos para eles aceitarem a ideia. E tenho a certeza de que aceitam mesmo!".
Eu não estava assim tão confiante. A experiência anterior, de algumas "tampas" que apanhara, ao apresentar propostas semelhantes, a alguns editores, não me dava grandes esperanças. Mas o Stuart acreditava que aquilo ia pegar, pela certa. Fizemos, pois, uma maquete, toda muito bem apresentada, para uma revista humorística semanal, a cores, que se chamaria "Picapau". Estudámos o plano geral, o formato, a paginação, a colunagem, as secções, a lista dos colaboradores, os custos, enfim, tudo. E, um dia, lá passámos, os dois, a tal porta rotativa do "Notícias", subimos a escada e, de repente, estávamos no gabinete da Administração - eu um bocadito nervoso, o Stuart muito descontraído, como sempre, a contar piadas aos dois Administradores que nos tinham recebido.
Lembro-me perfeitamente das caras deles: o Dr. José Gonçalves, pequenino, escuro, seco, trombudo, e o Dr. João Dinis, grande, amável, risonho e simpático. O Stuart encarregou-me da parte técnica da conversa: a ideia geral, o estilo da revista, a forma como nos propúnhamos trabalhar, a equipa de colaboradores, etc. E, quando eu estava à espera de uma nega fria e seca, eis que o Dr. José Gonçalves, depois de folhear a maquete e a papelada, nos diz: "Sim senhor, isto tem pernas para andar. Assim que chegar a máquina de impressão nova de que estamos à espera, vamos avançar”.
Cá fora, na Avenida da Liberdade, ria-se o Stuart, todo contente: "Eu não te dizia? Vamos fazer uma revista humorística como nunca houve nenhuma, desde o tempo do Rafael Bordalo Pinheiro! Anda, vamos ali beber qualquer coisa, para comemorar!"
Na verdade, o primeiro número só sairia dali a mais de um ano. É que a máquina – a tal nova máquina de impressão a cores, coisa fina, adquirida na Alemanha, e que estava destinada a imprimir, além do "Picapau", também o "Cavaleiro Andante" e outras publicações –  não havia meio de chegar a Portugal e ao Bairro Alto, onde eram então as oficinas do Anuário Comercial, na Travessa do Poço da Cidade, e onde nos concederam um espaço, lá no último piso, para a nossa redacção. Quando a máquina, finalmente, chegou... não cabia pela porta! Foi preciso deitar abaixo uma parte da parede, para ela entrar e ser instalada. E, depois disto tudo, não imprimia bem, tinha uma misteriosa avaria, que fazia com que só imprimisse uma parte do papel, deixando metade da folha em branco. Coisa estranha! Veio um técnico, de propósito, da Alemanha. Caríssimo! Fomos assistir à "desempanagem" da máquina. O técnico vestiu uma bata branca (a rapaziada lusitana da oficina andava toda, nesse tempo, de fato-macaco), meteu a mãozinha lá por detrás de um painel, apertou um parafuso... e a máquina começou a trabalhar impecavelmente!
O Dr. José Gonçalves, que tinha fama de forreta (fama que eu comprovaria depois; já vos conto essa parte da história) ficou danado com aquilo: tinha gasto um dinheirão para mandar vir, da Alemanha, um técnico especializadíssimo, que, afinal, só viera a Portugal – apertar um parafuso!
Daí a dias, começava a imprimir-se o "Picapau".
Daí a dias, começavam as tricas entre nós, os do "Picapau", e a Administração.
Foi assim:
Como contei atrás, tinha elaborado um plano, muito minucioso, sobre a forma de produzir a revista.
Eu seria o Director; o Stuart Carvalhais era o Director Artístico; e o Matos Maia figurava na ficha como Chefe de Redacção - e, também, como Proprietário. Porquê?
Porque a Administração, apesar de tudo, tinha algum receio de que a revista não saísse com a qualidade necessária para poder figurar, perante o público e a concorrência, como pertencendo à ENP. Então, à cautela, a papelada oficial foi organizada de forma que a propriedade figurasse como sendo do Matos Maia - embora, depois, o advogado da ENP preparasse um documento, através do qual este passaria todos os seus direitos para a verdadeira dona da revista.
Do mesmo plano constava, igualmente, a lista dos colaboradores (os escreventes e os desenhistas), ficando bem expresso que a responsabilidade da sua escolha seria sempre minha. Quanto aos pagamentos, eu receberia uma quantia certa por número, da qual pagaria aos colaboradores, como entendesse. Fora tudo aprovado. Só que...
Aqui entra a história do Carlos Pinhão.
Este fora jornalista do "Mundo Desportivo", que pertencia à Empresa. Um dia, foi destacado para ir cobrir, já não sei em que país da Europa, um campeonato qualquer, também não sei de que modalidade, nem interessa. O Carlos Pinhão foi, de comboio, hospedou-se num hotel baratinho e, quando o tal campeonato terminou, comunicou, por telefone, para a redacção do "Mundo Desportivo", a respectiva classificação dos participantes, do primeiro até ao sexto, para sair na edição do dia seguinte.
É de sublinhar que, nesse tempo, estas coisas eram complicadas. As tecnologias eram um bocadito primitivas. Telefonar do estrangeiro era considerado quase um luxo. E os jornais desportivos não tinham as receitas que têm hoje.
Quando o Pinhão regressou a Lisboa, foi chamado ao gabinete do Dr. José Gonçalves, que, furibundo e ameaçador, lhe pregou uma valente descompostura. Que parecia impossível, que ele andara a desbaratar o dinheiro do jornal, que fora enviado ao estrangeiro, custara um dinheirão em comboios, hotéis, comes e bebes, mais a linha telefónica – e, depois desta despesona enorme, apenas comunicara os resultados... até ao sexto classificado! Um escândalo!
Com aquele arzinho meio tímido que sempre teve, o Carlos Pinhão observou, baixinho: "Ó senhor doutor, desculpe, mas eu não podia indicar mais do que os seis primeiros... porque eram apenas seis a concorrer..."
O outro ficou embatucado, mandou-o sair – e, lá no fundo, ficou-lhe com um pó que nunca mais o pôde ver! Ainda por cima, algum tempo depois, ele ia-se embora para a concorrência: transferiu-se para "A Bola"!
Ora bem, o Carlos Pinhão foi convidado por mim para escrever, no nosso "Picapau", uma secção cómico-desportiva intitulada "Meia bola e força". Quando o Administrador viu o nome dele na lista dos colaboradores, mandou-me chamar e disse-me que eu tinha que pôr a andar o Carlitos. E eu disse-lhe, respeitosamente, que nem pensar. Que ficara à minha responsabilidade a escolha dos colaboradores e não prescindia daquele, que escrevia bem e com graça. Ele foi reler a proposta que aceitara, um ano antes, resmungou um seco "Tá bem!" e foi encerrada a sessão. Pronto! Pela expressão escura da sua cara, vi logo que aquilo ia dar sarilho.
E deu mesmo. O "Picapau" foi saindo – mas, quando estava para ser posto à venda o número 7, fui informado de que a publicação ia ser cancelada "porque está-se a vender mal". Sabíamos muito bem que era uma treta – e, mesmo que o não fosse, era impossível, da forma como então se fazia a distribuição, já ter números correctos de vendas e de sobras, nessa altura. Aquilo era, evidentemente, uma manobra provocada por uma raivinha do senhor Administrador. Este ainda voltaria à carga, exigindo que a verba da colaboração fosse reduzida para metade. O Stuart e eu, claro!, recusámos.
Estava-se mesmo a ver que o "Picapau" fora condenado...
A confirmação foi-nos dada, primeiro, confidencialmente, por um grande amigo que, entretanto, fizéramos na casa: o Mota Cardoso, o secretário-geral, que nos revelou a tramóia que se preparava. Nós só faríamos a revista até ao no 7 – e, entretanto, o no 8 já estava a ser preparado por gente da casa, jornalistas de diversas publicações, que estavam a ser agrupados numa equipa que nem era de humoristas, mas que ficaria baratinha...
Aí, diga-se a verdade, fizemos novamente papel de anjinhos. Quando fomos convocados para receber a "sentença de morte", declarei, todo contente: "O senhor acaba com a revista, e tem esse direito, porque é quem a paga. Mas o número 8, que sabemos estar a ser feito às escondidas, não o pode publicar, porque o Proprietário não deixa! E, se tentar, pomos-lhe um processo!" O homem ficou banzado. É que o Proprietário, oficialmente, ainda era o Matos Maia, pois o advogado tinha-se esquecido completamente de elaborar o documento de transferência de propriedade para a ENP.
Coitado, foi para a rua no dia seguinte!... Portanto, esse oitavo número da revista nunca saiu: foi passado pela guilhotina, para ser cortado ao meio e vendido como papel usado.
Foi assim que começaram e terminaram as aventuras do "Picapau". Pelo meio, entretanto, foram acontecendo alguns episódios pitorescos".
 
Deve dizer-se que pelo meio a revista publicou desenhos e caricaturas de Stuart Carvalhais, Martins, Natalino, Martinez, Túlio Coelho, Adolfo Feldlaufer, Agostinho ou Artur Correia e textos de Santos Fernando, Carlos Pinhão, Ferro Rodrigues, José Rosado ou Santos Fernando , Manuel Martinho ou Carlos Graça. Muitos continuaram nas décadas posteriores a publicar na imprensa humorística e generalista, tornaram-se conhecidos e transformaram-se em desenhadores ou argumentistas eméritos.
Mas é bem verdade que entre todos os colaboradores Stuart Carvalhais destacava-se. Não só porque era mais velho do que todos os outros humoristas, mas porque tinha um prestígio e uma popularidades imbatíveis, como se evidencia aliás pelo à vontade com que lidou com a administração da ENP no evento que ditou o nascimento do "Picapau". Mas para além disso, ou sobretudo fundamentalmente por isso, Stuart era uma personalidade fascinante – com características pessoais e profissionais muito particulares – nos meios jornalísticos e boémios de Lisboa. Eis um exemplo dessa personalidade no depoimento de António Gomes de Almeida:
"Já foi dito, escrito e repetido muitas vezes: o Stuart Carvalhais era um boémio. E gostava dos copos. Não seria um alcoólico, mas lá que apreciava uns bons tintos, isso apreciava. E, como boémio e como Artista que era, não tinha feitio para obedecer a regras, horários, prazos e coisas assim.
Daí que, passado o fogacho inicial do lançamento do "Picapau" (ainda por cima abafado pela longa espera, desde a aprovação do projecto até à saída do primeiro número), o Stuart começasse a funcionar, em relação à revista de que era Director Artístico, da mesma forma que funcionava em relação a todos os trabalhos que tinha de fazer: fazia-os quando lhe apetecia – ou quando lhe fazia falta o dinheirinho que ganhava com eles.
Ninguém lhe levava isso a mal, embora, por vezes, a sua impontualidade causasse problemas para a preparação da revista. Mas a sua graça, a sua irreverência, a sua bonomia, tudo isso era tão vivo, tão simpático, que ninguém se zangava com ele.
Pelo contrário, às vezes, o respeito que, apesar de tudo, lhe era devido (o Stuart era bastante mais velho que todos nós) fazia com que hesitássemos, antes de uma ou outra brincadeira de que ele era o alvo. Foi o que aconteceu logo no número 1 do "Picapau".
Estava combinado que ele entregaria, até uma certa data limite, uma fotografia e uma página desenhada, para a secção "O Desenhador da Semana", em que ele seria, naturalmente, o primeiro a aparecer. A data passou – e nada. Insistências e mais insistências, mas o material não vinha. Finalmente, lá chegou a página com os bonecos – mas, de fotografia, nada. Dizia que não tinha nenhuma disponível e que não estava para ir ao fotógrafo. Então, lembrei-me de que tinha uma fotografia de um grupo, em que ele aparecia. E fez-se uma brincadeira: a cabeça dele, recortada, foi aplicada numa outra fotografia, em que se via um sujeito rodeado de centenas de garrafas, numa adega...
Ainda ficámos na dúvida: ele ficaria ofendido, quando visse aquilo publicado na revista?...
Ora! Fartou-se de rir, achou um piadão à ideia! Enquadrado pelos seus bonecos inconfundíveis, lá saiu a foto aldrabada, com a cabeça do Stuart em corpo alheio, muitas garrafas de vinho à volta, e a legenda: "O nosso Director Artístico, Stuart Carvalhais, na sua Biblioteca"..."
 
 
 
Uma outra fonte de ocorrências, que aos olhos de hoje mais parecem associar-se ao tom humorístico da publicação, em vez de, como na realidade aconteceu, serem a razão de sérios problemas e transtornos, foi a actuação da Censura. O episódio relatado por António Gomes de Almeida traduz esse particular fenómeno da Censura que foi o de, na sua actuação, tantas vezes reflectir no material que acabou por ser autorizado (e naquele que foi cortado) os particulares humores dos censores em vez de critérios gerais de intervenção.
 
"A Censura era, por vezes, muito rigorosa e, sobretudo, muito moralista e muito chata.
Os censores – que eram, como talvez saibam, aqueles senhores coronéis, sem queda para a tropa, mas com queda para o corte, que lá exerciam a sua missão, escortanhando artigos, notícias, títulos, fotografias, desenhos e outras coisas, não com tesouras, mas com os seus famosos lápis azuis – inventavam pretextos do arco-da-velha para complicar a vida a quem trabalhava nos jornais. E nem sempre os cortes tinham a ver com matéria política. O caso pitoresco que vou contar é daqueles que mostram bem o ridículo a que podiam chegar esses senhores, quando se punham a defender o que eles chamavam "a moral e os bons costumes".
Vou explicar por que razão surgiu, no primeiro número do "Picapau", uma caricatura da Malilyn Monroe... sem curvas.
Na verdade, sem a explicação, o fenómeno parece bastante esquisito, pois, se houve artista que ficasse conhecida por não ter, no seu corpo, um centímetro de superfície que não fosse em curva perfeita, essa artista foi a Marilyn.
Então, a explicação é esta:
Um dos colaboradores do "Picapau" era o João Martins, um excelente artista, que trabalhava muito bem a caricatura a "crayon" e tinha muita piada em tudo o que fazia.
Por isso, resolvemos incluir, em cada número, a caricatura de uma figura famosa – e, para começar, pensámos na Marilyn, que estava então no auge da fama. O Martins fez o boneco – naturalmente, com as curvas apropriadas, nos sítios apropriados – e, pois claro, lá teve de seguir a respectiva prova para a Censura.
Quando a prova regressou, vinha "aprovada com cortes". E os cortes, sabem quais eram?
Bem, que remédio! – o Martins lá retocou o desenho e lá seguiu nova prova, com a Marilyn menos exuberante. Só que... também essa veio censurada. As curvas ainda eram evidentes de mais, e o lápis azul mandava reduzi-las mais um pouco. Danado da vida, o caricaturista lá se dispôs a fazer as emendas, mas aquilo já não era bem a Marilyn, já se parecia mais com a Katherine Hepburn...
Enfim, terceira prova... e terceira nega! Sempre o maldito lápis azul a cortar as curvas!
E o chefe da oficina aos gritos, que a revista tinha que entrar na máquina...
Não havia tempo para mais emendas e mais provas. A solução só podia ser uma: compôs-se o desenho, com a Marilyn a tomar banho de chuveiro e com a cortina a deixar ver apenas... a cabeça e os pés!
E assim saiu, sem curvas, mas muito decente, a nossa querida Marilyn, no número 1 do "Picapau". Na altura, é claro que não foi possível explicar aos leitores (provavelmente espantados com aquilo que viam) a razão de ser do "fenómeno".
E não é que o senhor coronel-censor teve a lata de me telefonar, a dar-me os parabéns pela solução? "Está a ver como a caricatura até ficou com mais piada? " dizia ele.
Não vale a pena dizer qual foi a resposta que lhe dei. Mas acho que todos vocês imaginam a resposta que eu gostaria de lhe ter dado..."
 
 
 
 
 
 
A revista constituiu sem dúvida um exemplo de humor escrito e humor gráfico inovador para a época, com a particularidade, não despicienda, de só ter colaboração portuguesa. Os textos e os “ cartoons” que passaram entre o lápis da censura são de um humor sarcástico, muitas vezes surrealista – uma das secções intitulava-se "Disurrealicionario" – que não terá sido repetido muitas vezes em outras publicações mesmo depois do 25 de Abril. E em muitos casos até parece que ou a Censura leu e não percebeu, ou, quem sabe... gostou !
Um bom exemplo é a banda desenhada "O Terror dos Sete mares incluindo o mar da Palha ou uma aventura na Ilha das Malucas" da qual reproduzimos (com a devida vénia) a última prancha publicada. Os desenhos são de Túlio Coelho e argumento... da redacção inteira: "cada um escreve um capítulo e os outros que se governem com a continuação" (como se explicava no nº 2 ) . Não concluiu, dado o abrupto encerramento da revista, já relatado, mas provavelmente também não faria grande diferença...
 
Ricardo Leite Pinto
 
 
 

4 comentários:

  1. Muito obrigado por este momento.
    O Malomil devia ser compilado em livro e depois aparecer um mecenas como o senhor Carlos Santos Silva para comprar cem mil exemplares e distribuir pelos fiéis leitores.

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  2. Após 25 de Abril não esquecer o meteórico "O Bisnau" da equipa de "O Jornal" e a crónica de humor de Rolo Duarte, "O Crocodilo" nas páginas da Flama.

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  3. A página de humor "O Crodilo" ou "Krokodeilos" existia antes do 25 de Abril e naturalmente sujeita aos caprichos da censura.

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  4. "A voz dos ridículos fala e o mundo ri ah ah ah

    Af

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