sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Sim ou Não.







 
 


 
Como fui convidado, em 1963, para me filiar no PCP
e porque não aceitei esse convite
 
(Excerto dum livro de memórias)
 
 

 
Gostaria de lembrar aqui um detalhe importante, ocorrido em 1963, no ano em que comecei a namorar aquela colega da Faculdade de Letras que seria, um ano depois, a minha mulher. O meu activismo político, desde o final da minha passagem pela Faculdade de Direito e intensificada com a greve universitária de 1962, já aluno de Letras, resultava da colaboração de um pequeno punhado de colegas meus, aparentemente sem filiação partidária, com um entusiasmo inocente e atrevido, e consistia sobretudo em fabricar panfletos a stencil, distribuídos depois pelas caixas de correio nos bairros burgueses de Alvalade, pois era ali que habitámos, assim como pintarmos a nitrato de prata graffitis negros nas paredes virginalmente brancas das nossas faculdades. Semelhante espontaneidade militante e atrevida não podia passar despercebida ao único partido então existente em Portugal, o obviamente clandestino Partido Comunista, que decidiu contactar-me em 1963, solicitando-me para um encontro através duma colega do curso de Filosofia na Faculdade de Letras, a qual me industriou sobre o local público onde ele decorreria, indicando-me o modus operandi dessa entrevista e combinando ainda o santo e a senha desse contacto inicial com um enviado misterioso que eu, obviamente, não conhecia: eu levaria comigo um exemplar do L´Espoir de Malraux, no burguesíssimo café Mexicana, no qual o encontro fora marcado, cabendo ao enviado do PCP abordar-me perguntando, enquanto apontava o romance em cima da minha mesinha: “– Gosta desse autor?”, ao que eu deveria responder : “– É um dos meus favoritos” , abordagem cifrada que não despertaria suspeitas no meio dum café tão barulhento, à Praça de Londres, com as suas graciosas cerâmicas de Querubim Lapa, ideal para encetar um eventual recrutamento partidário.




 
 
À hora combinada vi entrar naquele café perto da Praça de Londres, entre outras pessoas casuais, com o ar esperado de quem procura alguém no meio duma sala cheia de clientes, um antigo colega, mais velho, do Colégio Militar, que fora comandante de batalhão, honra suprema que um graduado podia receber no derradeiro ano do curso, o qual me fez um aceno ao longe, mas sem se deter na mesa onde eu abancara, o que parecia desde logo desmentir o palpite que senti ao vê-lo avançar pela sala. Depois de ter dado algumas voltar pelo café, muito apinhado àquela hora, passou de novo por mim e, vendo o meu livro exibido em cima da mesinha, percebeu que era eu o convidado para esse encontro secreto. A conversa correu como seria de esperar: ele a explicar-me o interesse com que o “partido dos trabalhadores” registara a minha militância e temerária liderança dum pequeno grupo de estudantes universitários antiditatoriais, pelo que a minha acção se tornara conhecida no meio do PCP, o qual me vinha propor que esse punhado de rebeldes se juntasse às massas do Partido, de modo que este pudesse amparar-nos e potenciar a nossa militância, garantindo-lhe ainda todo o apoio, tanto domesticamente como fora das fronteiras, no caso de sermos perseguidos ou presos. E sublinhava que não fazia sentido agirmos isolados da “grande máquina de guerra no combate ao Fascismo em prol dum Portugal democrático”, ao mesmo tempo que, louvando a ousadia dos nossos panfletos de fabrico caseiro, fazia notar que havia neles, todavia, alguns aspectos politicamente incorrectos, como por exemplo, os remoques à Igreja católica, quando convinha precisamente atrair para o nosso lado os católicos progressistas.
 


Sensibilizado com os elogios recebidos e o tom afável do emissário do PCP, expliquei que não me sentia um “partidista” (a expressão fora por mim colhida na prosa liberal de Ortega y Gasset),  já que nos meus tempos no Colégio Militar eu timbrara em ser um dissidente, a ponto de depressa ser alcunhado de “Refractário”, o que, na gíria colegial, tinha um sentido muito forte de insolente recusa dos parâmetros da escola dos “Meninos da Luz”. Referi-lhe também, de modo cauteloso, algumas reticências que sentia em relação a uma espécie de genética do estalinismo dos PCs europeus – ainda não se falava de Eurocomunismo  –, mencionando o caso da “conspiração das Batas Brancas na URSS” de 1953, prólogo duma vasta perseguição os judeus soviéticos que só abortaria porque, entretanto, Estaline falecera em 1953, em pleno Purim, festa do “carnaval” judeu destinada a celebrar a derrota do sinistro Hamam, grão-vizir de Assuerus, o rei da Pérsia, que maquinava a destruição da gente judaica. No fundo, sinais dum  entranhado anti-semitismo do próprio líder. O meu antigo camarada do colégio varreu essas nugas com um ar magnânimo e afirmou que estava em curso uma vasta destalinização de todo o universo soviético, conduzida pelo intrépido camarada Krutchev, além de que o importante estava em derrubar a ditadura de Salazar. E tínhamos ambos, era evidente, uma simpatia comum pelo Castrismo, que nesses anos era tido como um caloroso e dinâmico new look do bolchevismo, agora com o entusiasmo da América Latina e do novo anjo da Revolução, o sublime Che Guevara.
 

 
E pouco mais adiantámos, ficando então combinado que eu ficava desde já cordialmente convidado a aderir ao partido, dispondo de quatro dias de reflexão para comunicar uma resposta final à minha colega da Faculdade de Letras, o que seria dado apenas por um Sim ou um Não: no primeiro caso, ela transmitir-me-ia então as instruções para a fase seguinte da minha esperada adesão ao partido dos “amanhãs que cantam”, voltando então a encontrar um outro camarada que seria o meu “controleiro” (não creio que ele tivesse utilizado este termo). Por fim, com um ar quase casual, o antigo camarada do Colégio Militar acrescentou, antes de partir, que os colegas de Direito e de Letras que eu dirigia na luta clandestina contra a Ditadura eram já, “quase todos”, membros do PCP. Este detalhe deixou-me profundamente abalado até aos recônditos da minha alma: no fundo, eu já estava, embora sem o saber, dentro na máquina partidária do PCP, embora ignorando que a maioria dos meus companheiros de combate, no fundo, obedeciam ao partido e não a mim…E discretamente, antes de partir com um ar radiante de recrutador que acaba de ganhar para a sua causa um neófito valioso, passou-me, dentro dum envelope, um folheto que percebi depois ser um pequeno manual de instruções práticas que se chamava algo como Se fores preso, Camarada, explicando como se devia comportar todo o membro do PCP quer caísse por infelicidade nas garras da PIDE.
 

Saí do café com a cabeça atordoada, sentindo, por um lado, que acabava de me avizinhar dum cruzamento decisivo e fundamental da minha vida, ao mesmo tempo que a descoberta do detalhe de que alguns dos meus companheiros de luta política já tinham aderido ao PCP me deixava humilhado e com a sensação de ter sido burlado, de não passar dum mero peão num tabuleiro de xadrez no qual jogadores com dedos gigantes moviam com superior estratégia tropas obedientes, essas pequeninas pecas de madeira. Um Sim mudaria doravante a minha vida e um Não condenar-me-ia a ser o eterno “Refractário” de sempre. Telefonei para casa da minha namorada a pedir-lhe que fôssemos conversar comigo o mais depressa possível. Poucos minutos depois, a Guida Miriam chegava de táxi ao Café Londres para ouvir da minha boca o relato do importante encontro na Mexicana. Terminado o meu relato, e interrogada sobre o que é que ela achava do sucedido, respondeu-me tranquilamente, começando por notar que, antes de mais, aquela entrevista mostrava que o meu activismo político interessara deveras o único partido de verdadeira oposição existente em Portugal e que, por outro lado, o grupo de rapazes que eu dirigia já estava desde logo filiado num partido sem que eu o soubesse. Por fim, quanto à importante escolha que me era proposta, parecia-lhe que ela tinha desde logo muito de parecido com uma proposta de casamento. E sobre esta questão essencial, a Guida Miriam foi muito clara, pois o que eu tinha de escolher nos quatro dias seguintes se resumia apenas nisto: ou eu ia casar já com o PCP ou ia casar com ela, como tínhamos já pensado fazê-lo, no ano seguinte, quando acabássemos os nossos cursos na Faculdade de Letras.
 


 
Fiquei embatucado com este discurso absolutamente inesperado, feito, ainda por cima, por uma jovem de 21 anos, que falava do caso com a sabedoria de quem vivera muito. Lembro-me que ela até fez uma comparação de bom senso: entrar para o PCP não era o mesmo que inscrever-me no Ginásio Clube Português, uma vez que, no caso deste último, bastaria cessar de pagar a quota e deixar de lá aparecer para me separar dele, ao passo que, no caso do partido sovietista, o meu ingresso implicaria, na hipótese de um dia vir a romper com ele, uma separação que se adivinhava dolorosa e traumática, tanto mais que, sendo eu filho de um administrador colonial salazarista, decerto recordariam a mácula original do meu background africano. Estas objecções deixaram-me confuso, pois nunca esperava que a minha futura mulher interpretasse o que sucedera como um conflito entre dois casamentos incompatíveis entre si. E a Guida Miriam, concluindo que era apenas a mim que competia decidir quanto à escolha desejava fazer, despediu-se logo, pedindo-me que nos quatro dias seguintes evitássemos quaisquer contactos, só voltando a encontrá-la depois de ter dado à nossa colega comunista da Faculdade de Letras a resposta final que me era pedida, negativa ou positiva. E meteu-se num táxi de regresso à sua vivenda em Benfica, enquanto eu ficava sentado, desesperadamente sozinho, numa mesinha de mármore do Café Londres, a olhar para os altos espelhos imparciais que me rodeavam, como se num deles estivesse inscrita, em tinta misteriosa que só eu pudesse decifrar, a resposta à tão abstrusa opção que o destino acabava de me impor.





 
Durante quatro dias não pensei noutra coisa, embaraçado com a dura alternativa que a Guida Miriam me tinha imposto. E quatro dias depois, em seguida a ter dito pessoalmente à nossa colega da faculdade que era negativa a minha resposta – o que a desiludiu, embora me garantisse que continua a  contar com a minha “ajuda na luta comum” –, telefonei à Guida Miriam para lhe comunicar, com fingida serenidade, que, evidentemente, tinha respondido de forma negativa ao que ela comentou apenas: “– Fizeste bem”, e nunca mais voltámos a falar deste lance tão decisivo nas nossas vidas. Em suma, sem eu me dar conta, ela ajudara-me a evitar cometer um erro de que fatalmente me arrependeria mais tarde ou mais cedo, já que era evidente que um espírito rebelde como eu, tão independente e ferozmente autónomo, nunca seria um bom militante do nosso estalinista PCP. Acrescentarei um derradeiro detalhe: nunca mais voltei a ver o antigo graduado do Colégio Militar que fora até à Mexicana para me recrutar para o “partido dos trabalhadores” com vista aos anunciados “amanhãs que cantam” – e que, na verdade, nunca chegariam. Tudo quando sei dele é que teria sido expulso, mais tarde, num das muitas purgas habituais no PCP.
                        
  João  Medina
                     
(texto extraído do livro inédito No Labirinto do Exílio)


 

2 comentários:

  1. Protesto veementemente : o seu texto enterneceu-me e comoveu-me.
    Explicação ( que não explica nada...) : tenho setenta anos e um curso da Faculdade de Letras de Lisboa. Faça portanto as contas...
    No "meu" caso a coisa foi mais complicada : na altura,com certeza que se se lembra, e já vindas do Liceu, existiam as" correspondentes" - para praticar línguas estrangeiras, quaisquer que elas fossem...
    Como as "memories are made of this", obrigado por ter provocado um saudoso e nostálgico sorriso...

    J.J.Pereira




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  2. Esta do "livro inédito" é uma homenagem cinica à tortura ? Quando é que sai ? Quem vai editar? Onde e como é que vai poder ser adquirido ?

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