quinta-feira, 14 de maio de 2015




impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !

 

      # 64 - LEE MORGAN



 

 
 
A mulher entrou no clube cerca da meia-noite, no intervalo da sessão, e sentou-se na mesa reservada aos músicos. Não estava muita gente. Embora fosse Sábado, o Slugs Saloon localizava-se na Alphabet City, que em 1972, durante a época gloriosa do crime desorganizado em Nova Iorque, era uma cratera urbana. De súbito rebenta uma altercação entre a mulher e o trompetista. Ele toma-lhe o braço e arrasta-a para a rua. Momentos depois a mulher volta a entrar, estava calma e empunhava uma arma. O músico avança para ela – ouvem-se tiros – o homem cai. Um nevão de Fevereiro havia tornado as ruas quase intransitáveis. A ambulância demorou uma eternidade, ou o suficiente para Lee Morgan se esvair até à morte.
Aos quinze anos, Lee Morgan acendia cigarros, não para os fumar mas para dar-se ares de boémio; também caminhava com um passo ensaiado, como via fazer aos figurinos do estilo cool que desejava emular. Com o pedantismo da adolescência, ainda mal dedilhava o trompete, desafiou um complacente Sonny Stitt para uma jam session em torno do intrincadíssimo tema “Cherokee” – foi, obviamente esmagado. Lição do veterano: o estilo sem técnica não vale um caracol. E técnica, rapaz, é trabalho.
A impertinência juvenil não está, porém, isenta de qualidades. O arrojo e a tenacidade de Lee Morgan impulsionaram-no até à Big Band de Dizzy Gillespie, onde arribou aos 18 anos de idade e donde saiu à data da sua dissolução. Aqui teve suficiente exposição para que a Blue Note lhe oferecesse um contrato. Durante o ano de 1957 entrou e saiu dos estúdios vezes suficientes para manufacturar seis álbuns, liderando companhia de respeito. Numa época particularmente inovadora, saturada e competitiva da história do jazz, Lee Morgan não abalou as placas tectónicas, mas apareceu no radar, o que não era insignificante.
Em 1959 – annus mirabilis – eis Lee Morgan a prestar provas de doutoramento na universidade do jazz. Traduzindo a gíria da corporação: integrou os Jazz Messengers de Art Blakey. Segredam as más-línguas, nem sempre mentirosas, que nesta academia Morgan também se iniciou em narcóticos e inebriantes.
 
 
 
 
The Sidewinder
1963 (2004)
Blue Note - 9008
Lee Morgan (trompete), Joe Henderson (saxofone tenor), Barry Harris (piano), Bob Cranshaw (contrabaixo), Billy Higgins (bateria)
 
 
Até que em 1963 inesperadamente aconteceu “The Sidewinder”.
Com Don Cherry e Freddie Hubard, numa direcção, e Chet Baker, noutra, a moverem-se, e cada vez mais embrenhados, em geografias vernáculas e remotas do jazz, por esta altura almejava-se que no espaço livre entre Dizzy Gillespie e Miles Davis irrompesse “qualquer coisa” de diferente no trompete; algo que não aparecia desde a morte prematura de Clifford Brown. “The Sidewinder” veio, assim, saciar esse apetite, trepando até à vigésima quinta posição na tabela de vendas da revista Billboard – proeza deveras invulgar para um disco de jazz.
“The Sidewinder” abre com o tema homónimo, uma peça melódica, potente e desafiante, que se tornou um clássico instantâneo. Dos restantes originais seria injusto não destacar “Totem Pole”, também rapidamente convertido em standard, e “Hocus Pocus”, o último tema do disco, concludente daquilo que até ele se fora percebendo: o saxofonista Joe Henderson carburava o motor de Lee Morgan; esticando a metáfora automobilística, diga-se que o baterista Billy Higgins é uma infalível caixa de velocidades. Todas as peças de “The Sidewinder” ressumam melodia, potência e um ferrão que as torna intrigantes. No estilo e na escola demonstram swing, blues, funky, soul e velocidade. Ora se tem penas como um pato, se voa como um pato e se grasna como um pato, então “The Sidewinder” deve ser aquilo a que se começava a chamar de hard bop.
O que se seguiu? Seguiu-se que o êxito atingiu Lee Morgan muito cedo e com demasiada unanimidade. A pequena fortuna ganha em “The Sidewinder” dissipou-se no tempo que demorou a consumi-la em heroína. Quando tinha disposição física ou mental para tocar, Morgan mostrou-se repetitivo e formulário. Um dia apeteceu-lhe tocar à mesa de um café; o dono invectivou-o: “Quem é que julgas que és? Miles Davis?” “Não, parvalhão, sou Lee Morgan” O homem sacudiu os ombros, sabia lá com quem estava a falar…
A mulher que assassinou Lee Morgan chamava-se Helen Moore, mas conheciam-na por “Morgan”, pois adoptara-lhe o apelido desde que começara a viver com ele – diziam-se casados. Em 1967 recolhera-o literalmente da rua, descalço e esfomeado. Entregou-se a ele e reabilitou a sua carreira; foi companheira, mãe, agente, financeira e espectadora de óculos escuros na primeira fila nas suas actuações. Mas o inevitável enfado matrimonial sobreveio e desde 1971 que Lee Morgan namoriscava com outras, dormia esporadicamente fora de casa e reincidia na heroína.
Décadas depois do crime ela confessaria a sua incerteza: teria verdadeiramente amado o trompetista ou confundira o amor com um exacerbado sentimento de posse? Afinal Lee Morgan fora o melhor feito da sua vida, um empreendimento em que investira dedicação plena e sem prazo – “I’ve bought you back, you belong to me.” Assim é o timbre das paixões funestas: o amor de salvação coalha em amor de perdição.
 
 
José Navarro de Andrade
 
 
 

3 comentários:

  1. Sempre que fala destes artistas e suas malogradas vidas lembro que o citado Clifford Brown que era um "exemplo "de bom comportamento acabaria por morrer em estúpido desastre de carro como diz muito precocemente.Ironia dos Deuses que não cessam de brincar com os matrequilhos aqui em baixo.

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  2. Este disco faz parte de uma série da Blue Note de um grafismo irrepreensível e que se nota a milhas.
    Daqui a bocadinho no sítio do costume.
    Imperdível.

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  3. Tendo estado fora só agora posso vir aqui agradecer a vossa amizade

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