sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Refugiados, 1945.

 


 


 
 
Chama-se Herbert. Em 1945, era um menino de Viena de Áustria que cirandava pelas ruas a caçar ratazanas, que eram depois cozinhadas pela mãe num espeto improvisado entre ruínas e destroços; no prato, Herbert tinha de partilhar cada ratazana com a irmã. Naquela paisagem apocalíptica pouco mais havia para comer. Como tantas outras cidades, Viena era uma paisagem lunar, reduzida a um pó cinzento e repleta de crateras provocadas pelas bombas aliadas. Como diria Sebald muito mais tarde, os bombardeamentos aliados transformaram o sofrimento de alemães e austríacos numa extensão da natureza. Dormir ao relento, caçar ratos e roer solas passou a ser natural, tão natural como o vento que passava; aquele sofrimento não era bom nem mau, apenas existia, apenas acontecia, como uma tempestade ou terramoto. Contra esta visão amoral, a Caritas lançou uma campanha: era necessário dar guarida a estes miúdos em zonas mais plácidas da Europa. E foi assim que Herbert, o menino dos ratos, chegou a Sepins (entre Coimbra e Aveiro) e à casa dos avós da minha sogra. 
 
Habituado ao futuro pós-apocalíptico, Herbert gostou do passado campestre que ainda marcava a vida desta aldeia bairradina. Comia leitão como um príncipe, as criadas de dentro tratavam-lhe da roupa e pregava partidas aos meninos e meninas da casa. Entre outras cachopices, atirava peles de gato bravo à minha sogra. E, tendo em conta que era menino, até atingiu um grau de proximidade com o avó Filipe que estava interdito às meninas. Por exemplo, andava de bicicleta com o “uncle Philipe” pelos campos e propriedades da família. Com o tempo passou a ser um rapaz normal, mas, por vezes, este vienense da Bairrada ainda revelava os traumas da guerra. A família passava largas temporadas na Figueira da Foz, que na época tinha um aeródromo: quando ouvia os aviões, Herbert atirava-se para o chão ou corria para debaixo das camas; nas festas da aldeia os foguetes causavam o mesmo reflexo no antigo caçador de roedores.
 
      Com Viena já reconstruída, o jovem voltou à pátria, mas regressava todos os verões à família adoptiva. O “uncle Philippe” pagava a passagem de avião e ele ficava hospedado na casa de férias da família na Barra. Estas surtidas de teenager ao paraíso português terminaram quando casou com Inga, uma húngara que havia fugido da Hungria comunista. Só uma refugiada pode compreender um refugiado, não é verdade? Não tiveram filhos. Quando Inga faleceu, Herbert ofereceu às mulheres da sua família portuguesa as roupas e jóias mais requintadas da ex-mulher. Não por acaso, durante os dias do baptizado da nossa mais nova, a minha mulher usou uma blusa herdada dessa misteriosa aristocrata húngara. Claro que hoje em dia Herbert já não vem a Portugal com a mesma frequência, já não faz procissões de agradecimento à Beira Litoral todos os anos, mas continua a escrever cartas num português decente aos membros mais velhos da família, aos filhos que restam do “Uncle Philippe”.   
 
 Esta história de compaixão teve como palco um Portugal muitíssimo mais pobre do que o actual. Temos o dever de repeti-la. Onde estão os “uncle Philippe” de hoje?
 
 
Henrique Raposo
 
Expresso 12 de Setembro de 2015
 

 

3 comentários:

  1. E ai daquele, que se atreva a duvidar do racional desta parábola, por comparação com a táctica do “flashmob rule” nas fronteiras da Europa...

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  2. Faz-me confusão que as pessoas ainda se choquem tanto com as tragédias da 2ª Guerra Mundial e que, ao mesmo tempo, se neguem a ajudar os necessitados de hoje em dia... parece-me uma hipocrisia e um cinismo sem medida.

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  3. Uma história encantadora.
    Aposto que Henrique Raposo, seguindo o exemplo do "Uncle Philippe" já recebeu um refugiado (claro que não será austríaco, não têm, para troca) em sua casa e portanto temos o problema diminuído em uma unidade.
    É pouco?
    Há mais escritores no Expresso e o exemplo pode ser contagiante.

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