sábado, 12 de setembro de 2015

Por uma estrada de lua com a Sonja.

 

 
Fotografia de Onésimo Teotónio de Almeida

    
 
   ...Novo convite da Sonja, desta vez para jantar. Contrapropus levarmos nós lagosta cozida do Robinson’s Whorf (serviço eficiente e quase ao preço da pizza – isto é Maine) e ela ofereceria o resto. Antes disso iríamos a um aperitivo num bem simples mas gostoso bar que, por sugestão dela, tínhamos descoberto na Linekin Bay. Ficou então assente. E foi mesmo ainda no tal bar que uma longa tirada de lembranças do tempo do marido, Langdon Gilkey, começou a jorrar em catadupa da memória da Sonja. Sobretudo a propósito daqueles loucos anos sessenta na Chicago Divinity School (como nos EUA chamam as faculdades de Teologia), recuando até aos tempos do seu primeiro encontro com Langdon num barco proveniente da Holanda, rumo os States. Ela na pujança dos 20 anos, no entanto saída já de um relacionamento amoroso que azedara. Deu com os olhos em Langdon, quase o dobro da sua idade, aproximou-se, ouviu-o falar e prometeu a si própria: Vou casar com este homem! Mal sabia ele, porém apercebeu-se depressa e deixou-se mesmo levar passando ao ataque, que ela subitamente travou: Só depois de ver os papéis desse divórcio que me apregoas! Não quero estar no meio do casamento de ninguém.
 
 
Fotografia de Onésimo Teotónio de Almeida
 


      Pouco tempo depois da chegada aos States, Langdon mostrou-lhe os papéis e, dali ao casamento de ambos, foi um ápice. Ele brilhante, todavia conservador e algo fechado na sua teologia. Foi ela que o fez olhar à volta para o mundo moderno em que o século estava a desaguar. Instigou-o a concorrer a uma bolsa da Fulbright para leccionar um semestre no Japão a fim de compreender melhor outros modos de expressão religiosa. Foram e, quando voltaram, ele era outro, bem mais aberto e sobretudo imensamente mais receptivo às explorações que ela por si ia tentando por tudo quanto era experiência religiosa e mística fora do mundo protestante em que ele crescera e se formara. Fascinada com a cultura japonesa, de regresso aos States serrou os pés ao mobiliário todo transformando o ambiente num espaço oriental, onde o casal e os filhos bem como todos os convidados tinham de se sentar no chão para tomarem as suas refeições. Mas a casa esteve sempre aberta aos amigos durante mais de 30 anos em que a Sonja aceitou ser a mulher do grande scholar Langdon Weber Gilkey, que trazia para o seu Departamento, e depois para jantares e convívios em família, celebridades do tempo como Mircea Eliade. Algumas dessas figuras ficaram mesmo muito próximas do casal. Sonja desbobinou pormenores pessoais: a mulher de Mircea (escapou-se-me o nome) gostava de usar roupa transparente e saias de couro preto; uma longa história sobre a paixão da vida de Mircea quer ser ela a contar um dia por escrito. Ah! Ele escrevia assustadoras novelas de terror.
 
 
 
Paul Tillich

 
      Paul Tillich era um dos convivas habituais. Achava-o demasiado convencido e com a pretensão de estar informadíssimo acerca do mundo da alta cultura, particularmente a música. Um dia ficou muito desapontado quando ela lhe mencionou Webern (com n) e ele desconhecia o compositor. Mulherengo, pelo menos bem lá no íntimo, despia uma mulher com os olhos. Outro que tal nesse capítulo era o teólogo católico Hans Küng, que por ser muito de esquerda e perseguido por Roma, mais precisamente para a Congregação para a Doutrina da Fé liderada por Ratzinger, fora proibido de ensinar em universidades católicas. Os professores da Divinity School apoiaram-no e convidaram-no a leccionar em Chicago uma temporada. Mas isso foi já nos anos 80. Küng, fisicamente atleta, aparecia lá em casa de shorts e os seus olhos devoradores faziam as mulheres sentirem-se apreciadas.  Outro grande teólogo católico da altura habitué em Chicago e na residência do casal era Edward Schillebeeckx, o dominicano belga famoso pela sua teologia de esquerda. De Harvard, vinha Harvey Cox, o autor do best-seller The Secular City. Vindo de Tübingen, aparecia para conferências outro teólogo protestante também superstar na altura: Jürgen Moltmann. Com frequência convidavam Paul Ricoeur. Ele e a mulher eram muito queridos, sobretudo ela. O casal tinha um filho que virou pastor (de ovelhas!) e os pais apoiaram-no na sua decisão. Ah! E havia uma teóloga verdadeiramente louca, pelo menos excêntrica, entre os colegas de Lagdon na Divinity School, uma tal (omito o nome), que dormia com todos os estudantes porventura interessados e tinha a casa decorada com esculturas de pénis. Eram aqueles loucos anos 60 - comentava a Sonja como quem diz águas passadas.
 
      Feito parvo e calado, eu escutava-a. Excepto essa ninfomaníaca, todos os outros nomes faziam parte do Who’s Who dos meus anos de Teologia no Seminário de Angra e eram os nossos gurus, quer descobertos por nós e lidos em directo, via por exemplo o ICI (Informations Catholiques Internationales e a Concilium ), quer veiculados por professores como o Dr. Cunha de Oliveira (que até tinha semelhanças com Hans Küng, no brilho, pujança física e fogosidade). Hans Küng, bem gostaria eu de o ter conhecido. Aliás, numa passagem por Tübingen, encontrei-lhe o nome na lista telefónica e estive vai não vai para telefonar. Em vez disso, acabei indo alugar um barquinho e remar no Neckar. Agora ali de repente, pela boca da Sonja, aquela espantosa lista de superestrelas parecia a selecção mundial dos craques das ideias religiosas da minha década de 60. Ah! Paul Ricoeur, só o ouvi uma vez, uma década mais tarde, na Brown, trazido pelo Departamento de Filosofia.
 
 
Hans Küng
 
 
 
      Quem havia de dizer que a aparição da Sonja na casa de Juniper Point, no Maine, há dois anos, viria desembocar nesse monólogo. Ela joyceanamente transformada em Molly Bloom, num jantar a três a prolongar-se noite dentro, sob uma lua quase cheia - uma blue moon - a iluminar o cenário envolvente, traçando uma estrada de luz sobre o mar. E, já que tudo isto redundou num regresso aos anos 60, subitamente ocorreu-me um verso que nessa altura escrevinhei num acampamento na Caloura, deslumbrado com a luz do lua sobre o mar do sul (no meu Pico da Pedra, no norte e longe da costa, não dava para se apreciar a lua reflectida no oceano). Desses verselhos só me lembro que algures eu onde eu falava numa estrada de luz, subitamente me ocorreu riscar o “z” e substituí-lo por “a”.

       ..Voltei a passear-me por essa alameda de lua prateada nesse dessacralizador ou humanizante regresso a um universo longínquo e próximo.
 
 
                                                        Onésimo Teotónio Almeida
 

 

1 comentário:

  1. Se o Domingos Amaral soubesse o Hans Kung tmb teria entrado no seu Verão Quente! Eheheh

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