quinta-feira, 10 de dezembro de 2015





impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !

 

 

 

# 37 - OSCAR PETERSON
 
 
 
Fotografia de Allan Cross
 
 
Nunca é demais frisar o secreto papel da rádio na revelação de talentos no jazz. Se o produtor John Hammond terá ouvido Count Basie quando numa noite gélida de Chicago a telefonia do seu carro sintonizou um remoto sinal oriundo de Kansas City, de Oscar Peterson diz-se que foi descoberto por Norman Granz numa ocasião em que ia de táxi a caminho do aeroporto de Montreal e ouviu na rádio a transmissão em directo de um concerto ao vivo do pianista; qual avião qual quê, há-de Granz ter dito ao motorista, leve-me mas é ao clube donde o programa está ser emitido. Além de ser creditada no consciencioso site All About Jazz, a lenda tornou-se irrefutável ao vir publicada na Wikipédia.
Durante muito tempo, quem sabe se ainda hoje, a música de Oscar Peterson foi ouvida de sobrolho carregado, também graças à relação umbilical entre o produtor e o artista, como se este não passasse de uma criatura manipulada, instituída e promovida por aquele. Calhou que em 1949 o pêndulo do jazz estava em trânsito, de modo que a “descoberta” de Granz ofendia o emergente conceito de integridade musical.
Também nisto o jazz foi precursor, na devoção pela figura do autor, cuja plenitude e personalidade é ganha em proporções iguais como intérprete e como criador musical. Na era anterior a escrita das canções estava entregue a compositores, cuja reputação dependia do êxito popular, atingido se alguma das suas peças fosse trauteada de boca em boca, alcandorando-se à categoria de standard. O epicentro americano desta indústria estava nos editores amontoados em lofts na Tin Pan Alley, na rua 28, entre a 5ª e a 6ª Avenidas, de Nova Iorque. Só bem mais tarde, no início da década de 60, Bob Dylan e os Beatles, cada qual no seu lado do Atlântico, aspiraram ao estatuto de autores musicais, com espessura idêntica à dos pioneiros do bebop dos anos 40, e da sua nova ética artística. A prolífica discografia de Oscar Peterson é parca em originais saídos da sua pena, consistindo principalmente em versões e digressões do cancioneiro familiar ao jazz – um repertório muito contrário às tendências coevas.
Acresce que além de penalizado como presumível filisteu, Peterson tornou-se vítima das suas próprias qualidades, largamente suspeitas para as orelhas intransigentes e severas que começavam a predominar na crítica do seu tempo e na camada mais pernóstica de espectadores por ela influenciada. Se as coincidências elucidam alguma coisa, Oscar Peterson foi contemporâneo e compatriota de Glenn Gould, com quem ainda partilhava o atributo de virtuosista. Mas o que na música clássica será aplaudido enquanto virtude, no jazz costuma ser aferido como um estorvo à emoção ou um alibi para dissimular a falta dela. Abundou quem levasse a música de Oscar Peterson na conta de um embuste sem alma. Assim eram as coisas, no lado obscuro do jazz, nos gloriosos anos 50 e no dealbar dos 60.
 
 

Night Train
1963 (2011)
Verve / Universal - 0565148
Oscar Peterson (piano), Ray Brown (contrabaixo), Ed Thigpen (bateria).
 
 
Que andavam todos muitos enganados, provou-o Oscar Peterson com a publicação de “Night Train”, obra que obrigou aqueles menos dogmáticos entre os seus detractores a porem o joelho em terra. Aqui, em nada foram aliviados os modos, ou os tiques, consoante a opinião, do estilo de Oscar Peterson, a dominarem por completo esse animal insubmisso e devorador de reputações que é o piano. O inebriante malabarismo dedilhante nas transições harmónicas e um excesso de velocidade de causar espanto, estão cá e decerto incomodarão quem quiser ser incomodado por eles. O alinhamento é uma revisitação da mais prevista tradição de blues e standards, expedida sem sombra de inquietação, sendo de Duke Ellington quase metade dos temas. Agravando a percepção de haver intuitos comerciais, os temas resumem-se a 5 minutos de duração (para passarem melhor na rádio, terá confessado Norman Granz) e são interpretados num esperanto sincrético, entre um swing de bater o pé e a textura harmónica do bebop, com francas reminiscências do boogie woogie que o pianista assimilou no jardim de infância.
Alguém versado em todos os géneros acusar-se-á de não ter nenhum e de ser um bastardo musical, todavia, o ponto e o prodígio do disco é que tudo isto faz sentido e parece judicioso em “Night Train”. Ao estado de graça não é nada indiferente que Peterson se apresente com o seu trio de longo curso e muita rodagem, em que o piano triangula com o contrabaixo de Ray Brown – como de costume tão grande quanto discreto – e a bateria de Eg Thigpen à guisa de uma conversa ininterrupta e íntima que viemos devassar. Em resumo, “Night Train” é uma obra-prima a despeito de figas e abrenúncios esconjurados pelos puritanos.
 
 
 
 
José Navarro de Andrade
 
 

 

7 comentários:

  1. Fez muito e bem que de poucos se pode dizer o mesmo.

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    1. Foi injustamente desconsiderado, mas também não se pode dizer que tenha sido um subavaliado, como Paul Gonsalves, por exemplo.

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  2. Para época de prendas no sapatinho a escolha não podia ser melhor.
    Graças à Verve que publicou um 2 em 1 associo-me e breve lá estará.

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  3. Tenho seguido com grande interesse (e proveito) a lista que tem vindo a publicar. Gostava de adquirir alguns dos cd's que menciona, mas as referências dispersas no Malomil dificultam o acesso à lista completa (ou tão completa quanto a mesma está à presente data). Seria possível compilar as referências ou de alguma forma disponibilizá-la em formato compacto?
    Um leigo agradecido
    João

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  4. Caro João, obrigado pelo seu interesse. Se carregar na etiqueta "100 melhores discos de jazz" no rodapé de um dos textos, abre uma página web com eles todos seguidos. É o melhor que a informática consegue. Já agora fique sabendo que todas as obras estão disponíveis no iTunes , passe a publicidade e a maior parte na Amazon. De qualquer maneira, a sua sugestão é muito prática, quando terminar toda a série (ainda faltam muitos...) farei uma página final com as referências que pede.

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    1. Muito obrigado e parabéns pelo excelente serviço público.

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