quinta-feira, 7 de abril de 2016




impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !

 

# 17 - ARTIE SHAW

 


 
Fotografia de William Gottlieb (1947)
 
Intrigante o trajecto de Artie Shaw, para quem a vontade de mais e mais se equiparou a menos e menos. Alcançou tocar a luz do sol mas não se encadeou, mesmo que dela tenha sentido a queimadura; aborrecia a celebridade e desdenhava quem com ela se comprazia. Foi a singular estrela do jazz que não quis amadurecer como uma supernova, de modo que pendurou as botas em 1954 – ou melhor: fez do clarinete um candeeiro de mesa-de-cabeceira, como ironizaria mais tarde, em resposta à curiosidade jornalística. E nessa distância viveu 50 anos, até à sua morte em 2004.
O êxito que tantos porfiavam como a uma miragem provou-o Artie Shaw como uma inerência fastidiosa desde que em 1938 o seu arranjo de “Beguin the Beguine” incendiou radiofonicamente todos os corações sensíveis da América. É concebível que esta facilidade em colher o que outros se desunham por conseguir seja a marca do génio – Mozart versus Salieri? – e que o génio se agaste por nada lhe ser desafiante. Disse-lhe um agente: “you’re the kind of guy who can fall into a pile of shit and come up with a diamond.” Artie Shaw deu o elogio por desentendido e amargurou-se com ele.
Os incómodos da fama perseguiram Artie Shaw até na vida íntima, pródiga em factóides. Casou oito vezes, duas das quais com vedetas de Hollywood. Mas de que vale experimentar os sonhos húmidos do homem comum, se este se dirige a ele dizendo: "Can I shake the hand that held Lana Turner's tit?" Integrou durante dois anos (45-46) a incomparável caderneta de Ava Gardner, da qual se diz não lhe faltar nenhum cromo, mas o matrimónio claudicou quando, confidenciou Shaw, quis iniciá-la na leitura de Dostoievsky. Na versão fleumática de Gardner ele mandou-a bugiar e ela foi…
 

 
The Essential Artie Shaw
2005
Bluebird RCA / RVG - 69239
Artie Shaw (clarinete, compositor, arranjador, maestro), Roy Eldridge, Henry "Red" Allen Johnny Best (trompete), Jerry Jerome, Georgie Auld, Dick Clark (saxofone tenor), George Arus, Vernon Brown, Ray Conniff (trombone), Dodo Marmarosa, Johnny Guarnieri, Les Burness, Bob Kitsis (piano), Barney Kessel (guitarra), Buddy Rich (bateria), Jud de Naut (contrabaixo), Harry Bluestone (violino), Billie Holiday, Lena Horne, Helen Forrest, Leo Watson (voz), Hot Lips Page (trompete, voz), Tony Pastor (saxofone tenor, voz).
[com a parte decisiva da sua obra gravada antes da era do LP, Artie Shaw é hoje acessível através de antologias. Esta, além de remasterizada com cuidado, recolhe as peças mais importantes do clarinetista, atravessando todas as latitudes da sua carreira.]
 
Extrai-se desta inconstância amorosa um padrão. Artie Shaw desfazia as formações ao atingirem o primor, com uma frieza ou um descaso incomplacente, mesmo que em 1949 – um dos anos mais negros para organizar uma big band – sob a sua batuta roçassem ombros músicos como Tadd Dameron, George Russell, Gene Roland, Al Cohn, Zoot Zims, entre outros de igual quilate. Teria feito história e voado bem alto esta banda se Shaw não lhe houvesse cortado as asas aos primeiros adejos.
Mas sob a película de uma disposição blasé, Artie Shaw teve alguns cometimentos invulgares. Participou no esforço da II Guerra Mundial fazendo uma longa digressão com a sua orquestra pelo Pacífico, o que seria meramente voluntarioso se não tivessem contactado com os horrores de Guadalcanal, sobrevivido a raides aéreos e dormido em trincheiras lamacentas. Já em 1938 gravara “Any Old Time” com Billie Holiday, indo para “a estrada” com ela, numa época em que os negros não podiam entrar nos hotéis pela porta da frente.
Entre 1937 e 1940 a revista “Metronome” contou mais de 300 orquestras de swing, período em que Artie Shaw disputou com Benny Goodman palmo a palmo a primazia no clarinete. Mas se a Goodman cabe a glória de introduzir o jazz à selecta plateia do Carnegie Hall, se Duke Ellington granjeava um respeito sem paralelo na comunidade musical e se Count Basie fazia tremer o chão com o calibre do seu ritmo, a Artie Shaw há que atribuir o mérito não despiciendo de ter popularizado o swing e de o ter infundido nos lares e na cultura americana, como coisa simpática aos costumes. Proeza notável, esta de esbater a vigiadíssima fronteira entre o jazz e o gosto dominante, para quem, ao contrário, por exemplo, do sacarino e superficial Glenn Miller, não alienou uma colcheia ou um compasso que fossem à vulgaridade.
Seja por misantropia ou por convicção, sobreleva de Artie Shaw, e por consequência da sua música, uma sensação de integridade.
 
 
José Navarro de Andrade
 
 
 
 
 

 

 

 

 

 

 

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