A
primeira declaração do estado de emergência no âmbito de vigência da
Constituição de 1976 tem suscitado diversas reflexões críticas. Algumas dessas
reflexões, todavia, em vez de ajudar a pensar e a atuar nos tempos difíceis que
vivemos, mais parecem ter o efeito contrário. Tenho aqui em vista, em primeiro
lugar, a crítica de ordem geral que procura encarar a pandemia e o consequente estado
de exceção à luz de uma ideia de crise permanente[1]. Para além disso, importa
ainda mencionar a crítica que procura encarar a suspensão do direito à
liberdade do artigo 27.º como a base de qualquer estado de exceção e, nessa
medida, censura o decreto presidencial que declarou o estado de emergência[2] por não o incluir entre os
direitos fundamentais suspensos[3].
1 1. A normalização da exceção
A ideia de que os tempos atuais, sobretudo a
partir da crise de 2008, corresponderiam à instituição de uma normalização do
estado de exceção é um lugar comum da reflexão política contemporânea,
sobretudo a partir do pensamento de Giorgio Agamben[4]. O objetivo de Agamben consiste
em expor a tentativa do sistema jurídico ocidental, em particular após os
acontecimentos de 11 de setembro de 2001, de mascarar a exceção, isto é, de
promover uma forma de governo que, estabelecendo um estado de exceção
permanente, «pretende, todavia, estar ainda a aplicar o direito»[5]. Neste contexto, Boaventura
de Sousa Santos sustenta também que uma clara separação entre os tempos de
normalidade e os tempos de exceção foi hoje definitivamente ultrapassada, sendo
a atual pandemia mais um episódio de um estado permanente de crise que o mundo
tem vivido desde 1980. Esta crise permanente ter-se-ia imposto «à medida que
o neoliberalismo se foi impondo como a versão dominante do capitalismo e este
se foi sujeitando mais e mais à lógica do sector financeiro».
A
ideia de normalização dos estados de exceção manifesta-se, pois, segundo
Boaventura de Sousa Santos, na noção de crise financeira permanente, uma
manifestação de crise paralela à designada guerra contra o terrorismo, ou ainda
à atual guerra contra o COVID-19. A crise financeira seria, na verdade, uma boa
desculpa para, sob o pretexto de manter a solvabilidade do sistema financeiro,
mobilizar o Estado na defesa do grande capital, em prejuízo das classes médias
e desfavorecidas. Este estado de coisas explicaria que os serviços públicos de
saúde estivessem há dez ou 20 anos mais bem preparados para enfrentar a
pandemia do que estariam hoje. Neste contexto, a normalização da crise é uma
outra forma de dizer a implantação do neoliberalismo e a generalização de uma
visão economicista a todos os domínios da vida. O lugar comum que a este
propósito muitas vezes ocorre é a conhecida afirmação de Milton Friedman de que
só uma crise produz verdadeira mudança.
A
verdade é que, por muito que se deseje encarar a pandemia como a concretização
de ideias gerais de ordem política e económica prévias, a declaração do estado
de emergência é, pelo contrário, a base para a adoção de medidas concretas que
visam aliviar a difícil situação económica das pessoas, como a suspensão das
denúncias pelos senhorios de contratos de arrendamento, ou das execuções de
hipotecas sobre imóveis que sejam habitação própria e permanente.
Um
bom exemplo da assimetria entre as ideias políticas que se possam ter, em
geral, das situações de exceção e a realidade concreta que vivemos, são as
palavras de Giorgio Agamben sobre a situação em Itália, já em evolução para a
situação verdadeiramente dramática que hoje atravessa. Num artigo de 26 de
fevereiro de 2020, reagindo ao que considerava ser o carácter excessivo das
medidas de contenção então adotadas pelo Governo italiano, Agamben afirmava o
seguinte:
«Parece
quase que, esgotado o terrorismo como causa de medidas de exceção, a invenção
de uma epidemia possa oferecer o pretexto ideal para ampliá-las além de todo
limite. O outro fator, não menos preocupante, é o estado de medo que nos
últimos anos foi evidentemente se difundindo nas consciências dos indivíduos e
que se traduz em uma verdadeira necessidade de estados de pânico coletivo, para
o qual a epidemia mais uma vez oferece o pretexto ideal. Assim, num perverso
círculo vicioso, a limitação da liberdade imposta pelos governos é aceita em
nome de um desejo de segurança que foi induzido pelos próprios governos que
agora intervêm para satisfazê-lo.»[6]
Com
estas palavras, parece claro que a evolução da realidade escapa por completo
aos quadros mentais através dos quais se pretendia capturá-la. Mas Agamben não
ficou por aqui. Num novo artigo de 11 de março, quando já era evidente o
ridículo (para não dizer o insulto à memória de todas as vítimas) de se falar
em «invenção de uma pandemia», passou a insistir na analogia entre os
cidadãos como potenciais hospedeiros do vírus e os cidadãos como potenciais
terroristas.
Vale
a pena registar as suas palavras:
«Com
as devidas diferenças, as disposições recentes (tomadas pelo governo com
decretos que gostaríamos de esperar - mas é uma ilusão - que não fossem
confirmadas pelo parlamento em leis nos termos previstos) na verdade
transformam cada indivíduo em um potencial hospedeiro de vírus, exatamente como
as leis sobre terrorismo consideram, de fato e de direito, todos os cidadãos
como potenciais terroristas. A analogia é tão clara que o hospedeiro em potência
que não cumpre as prescrições é punido com prisão. Particularmente invisível é
a figura do portador saudável ou precoce, que infecta uma multiplicidade de
indivíduos sem que nos possamos defender dele, como alguém se poderia defender
do hospedeiro.»
A
situação de emergência significa, em suma, a «abolição do próximo», a
substituição do contacto humano, pelo contacto através das máquinas, através
dos mais variados meios informáticos[7].
Finalmente,
num texto de 17 de março, Agamben procura clarificar a sua posição, perante
ataques da imprensa, retomando ao mesmo tempo temas centrais do seu pensamento
sobre o estado de exceção. Segundo agora afirma, perante a pandemia, «é
claro que os italianos estão dispostos a sacrificar praticamente tudo,
condições normais de vida, relações sociais, trabalho, até amizades, afetos e
crenças religiosas e políticas, perante o perigo de adoecer. A vida nua – e o
medo de perdê-la – não é algo que une os homens, mas que os cega e os separa»[8].
Julgo
ser necessário distinguir dois níveis nas considerações de Agamben. Num
primeiro nível, parece claro que as pré-compreensões do filósofo não lhe
permitiram compreender de imediato a dimensão da catástrofe que se desenrolava
aos seus olhos. Num segundo nível, passado o embate inicial, não podemos
rejeitar como simplesmente desajustadas todas as suas reflexões. É, sem dúvida,
verdade que se torna urgente não perder de vista «o próximo», com tudo o
que isso implica. Simplesmente, é duvidoso que o possamos fazer com a ajuda do
seu pensamento, em vez de apesar dele.
As
posições expressas por Agamben sobre a situação em Itália demonstram bem a
vacuidade de se pretender caracterizar a situação que vivemos como a abolição
da separação entre o normal e o excecional. Mas importa compreender as raízes
deste entendimento e o modo como, em vez de nos ajudar, nos impede de
compreender o tempo atual. As origens desta cegueira assentam na
desconsideração sistemática da matriz constitucional do estado de exceção.
1.
Em primeiro lugar, é necessário ter presente que afirmar que nos tempos atuais
se esbatem as fronteiras entre a normalidade e a exceção significa perder de
vista a contraposição que verdadeiramente importa ter presente. Essa
contraposição é aquela que se estabelece entre o paradigma do estado de exceção
que tem na República romana o seu antecedente mais remoto e o paradigma do
estado de exceção do ditador soberano, que está na base dos regimes
totalitários do século vinte.
No
primeiro caso, os poderes de exceção assumem um caráter temporário, o ditador
que neles é investido é nomeado de acordo com formas constitucionais
específicas e para um objetivo específico e, sem dúvida o aspeto mais
importante, está sempre presente o objetivo final de sustentar a ordem
constitucional em vez de alterá-la ou substituí-la. Estas características foram
adotadas depois como como diretrizes básicas para os regimes constitucionais de
emergência e estão presentes no pensamento de quase todos os teóricos liberais
da política. Assim, liberais insuspeitos como John Locke ou Immanuel Kant não
deixaram de defender a necessidade de prever os estados de exceção na
construção do Estado[9]. E ainda que em Kant essa
defesa não se afigure fácil de conciliar com a sua conceção do direito, em
Locke resulta claro que, uma vez que «a lei cimenta aspetos dos mesmos princípios
(do bem público, da lei natural em geral) a que o executivo recorre para a
violar, a prerrogativa de emergência não é exercida na ausência de normas»[10].
No
segundo caso, pelo contrário, o ditador, podendo até ser nomeado de acordo com
as regras constitucionais, não assume poderes temporários e não visa certamente
respeitar a ordem constitucional ou restaurá-la, mas antes alterá-la. O ditador
deixa de estar submetido ao poder soberano, mas antes assume-se ele próprio
como soberano.
É
importante salientar a profunda divergência entre os dois paradigmas: de acordo
com o primeiro, o caso normal prevalece sobre a exceção e esta é apenas usada
para o restabelecer, uma vez superada uma situação de crise; de acordo com o
segundo paradigma, pelo contrário, a norma passa a servir a exceção e esta é
usada para recriar o direito e a sociedade. A crise é uma oportunidade para
superar a norma. Na formulação incisiva de Carl Schmitt «A exceção é mais
interessante que a norma. A norma não prova nada; a exceção prova tudo;
confirma não apenas a norma, mas esta vive apenas da exceção»[11].
O
estabelecimento claro desta contraposição deve-se a Carl Schmitt, através da
distinção entre a ditadura comissarial e a ditadura soberana, e um dos aspetos
mais sombrios da evolução do seu pensamento consiste precisamente no modo como
evoluiu do primeiro para o segundo paradigma[12] e, ao mesmo tempo, criou
as bases intelectuais para minar a distinção entre ambos.
2.
Não custa perceber o apelo da ideia da indistinção entre normalidade e exceção.
Trata-se do apelo essencialmente intelectual da ideia de ditadura soberana que
indistintamente agrada a orientações políticas extremas de direita e de
esquerda.
Numa
primeira fase, esses apelos da ideia de ditadura soberana – em que a norma e a
exceção se tornam indistintas – para a direita e a esquerda são bem
evidenciados nos pensamentos de Carl Schmitt e de Walter Benjamin,
respetivamente. A evolução da ideia de ditadura comissarial da República
romana, em que se encontram os antecedentes dos atuais regimes constitucionais
do estado de exceção, em direção à ideia de ditadura soberana mostra a
aproximação de Carl Schmitt ao regime nazi. Por seu turno, Walter Benjamin, no
texto Sobre a Crítica do Poder como Violência, de 1921, havia
concebido a «possibilidade de o poder, quando não cai sob a alçada do
respetivo Direito, o ameaçar, não pelos fins que possa ter em vista, mas pela
sua simples existência fora do âmbito do Direito»[13]. O seu objetivo consiste
em demonstrar a possibilidade de um poder puro e imediato «para além do
direito», que equivaleria à possibilidade de um poder revolucionário[14]. Benjamin, ao mesmo tempo
que admitia um poder revolucionário à margem do direito, não se coibiu de
criticar aquilo que entendia constituir uma normalização do estado de exceção:
«A tradição dos oprimidos ensina-nos que o “estado de exceção” em que
vivemos é a regra. Temos de chegar a um conceito de história que corresponda
a essa ideia. Só então se perfilará diante dos nossos olhos, como nossa tarefa,
a necessidade de provocar um verdadeiro estado de exceção; e assim a nossa
posição na luta contra o fascismo melhorará»[15]. Também nestas palavras
se deteta a passagem de uma exceção constituída para uma exceção constituinte.
O
apelo da ideia de indistinção entre normalidade e exceção manteve-se, no
entanto, intacto muito depois de passados os tempos conturbados em que
escreveram Schmitt e Benjamin. Hoje é igualmente possível encontrar um apelo da
ideia de exceção que subjuga a norma, ainda que a geografia da delimitação
entre direita e esquerda se tenha tornado mais complexa. Para um autor
influenciado por Benjamin como é Agamben, o que se propõe como alternativa ao
paradigma da exceção permanente é a dimensão negativa da ideia de poder
constituinte. Enquanto a exceção soberana se relacionava em Schmitt e Benjamin
com um poder constituinte, o que agora se propõe é um «poder destituinte».
Isto é, em contraste com a afirmação de um poder constituinte independente de
uma relação com o poder constituído, que reproduz a estrutura governamental da
exceção, o «poder destituinte» descreve uma força que pretende desativar
a máquina governamental[16]. Uma boa amostra de
exercício do «poder destituinte» são as reflexões de Agamben sobre a
presente pandemia acima comentadas[17].
3.
Estas últimas considerações introduzem já o terceiro ponto que mostra o
desgoverno da ideia de normalização da exceção. Este pode ser ilustrado através
de um artigo recente do politólogo David Runciman, da Universidade de
Cambridge. Nesse artigo, o autor sente a necessidade de sublinhar que «sob
um bloqueio, as democracias revelam o que têm em comum com outros regimes
políticos: aqui também a política é, em última análise, sobre poder e ordem»[18]. A pergunta que
imediatamente se impõe colocar é: podia alguém alimentar seriamente dúvidas
sobre essa característica comum? A resposta, por estranho que pareça, é
afirmativa. Como foi possível chegar a um ponto em que a democracia se
despolitiza? A resposta a esta questão passa pela importância crescente das
comissões de peritos, dos tribunais, dos bancos centrais independentes, de toda
uma estrutura administrativa cujo peso na vida política das democracias
constitucionais se torna evidente, em especial na Europa[19]. A evolução da situação
política e económica na Europa, desde o final da Segunda Guerra Mundial tem
alimentado a ilusão de que é possível viver sem política, isto é, de que é
possível viver não apenas sem o exercício do poder, entendido como uso da
força, mas também sem a participação política dos cidadãos e do seu sacrifício
em prol do bem comum. De resto, cabe salientar que foi precisamente um
movimento de despolitização na teoria do Estado, presente nas teorias de
juristas como Hans Kelsen e Hugo Krabbe, que levou em parte Carl Schmitt a
radicalizar a sua noção de política.
Simplesmente,
a despolitização dos regimes democráticos não encontra equivalente nos regimes
autoritários e o modo como estes têm lidado com a pandemia, aliás sem
preocupações com o recurso a regimes de exceção sujeitos a garantias
constitucionais, mostra uma eficácia e determinação muitos superiores[20]. Por parte destes não
existe qualquer dúvida de que estão em causa, no modo como lidar com a
pandemia, questões de poder e ordem. Cabe, aliás, realçar que as inovações da
tecnologia digital que na Europa foram muitas vezes saudadas como permitindo
promover a democracia e derrubar regimes ditatoriais, têm na realidade sido
mobilizadas por estes no sentido oposto. A tecnologia parece estar
simultaneamente a enfraquecer a democracia e a fortalecer a autocracia[21].
O
discurso da normalização da exceção deve, pois, ser rejeitado. Não só esse
discurso encontra a sua matriz numa ideia de exceção soberana que urge
combater, como ainda se mostra essencialmente avesso à compreensão política da
democracia. Em acréscimo, não parece que possa ajudar alguma coisa, neste
momento, «imaginar soluções democráticas assentes na democracia
participativa ao nível dos bairros e das comunidades e na educação cívica
orientada para a solidariedade e cooperação», como sugere Boaventura de
Sousa Santos.
2 2. A exceção e a liberdade
Aquilo
que realmente importa é, pois, discutir os problemas concretos de limitação das
liberdades no âmbito da declaração de estado de emergência. Neste âmbito, a discussão
porventura mais relevante do regime do estado de emergência em Portugal
consiste em apurar qual o concreto direito de liberdade que é afetado pela
declaração de estado de emergência: o direito à liberdade física previsto no
artigo 27.º da Constituição, ou o direito de deslocação consagrado no artigo
44.º.
A
relevância desta determinação parece ser a seguinte: o direito de deslocação
não prevê qualquer restrição expressa, mas também não a exclui, pelo que a
mesma seria em princípio admissível; pelo contrário o direito à liberdade
física do artigo 27.º da Constituição apenas prevê restrições nos casos nele
previstos, não se incluindo aí a quarentena, ou o confinamento de pessoas
suspeitas de contágio epidémico. Nessa medida, seria possível entender que o
direito à liberdade não é suscetível de restrição pelo legislador para estes
efeitos e, nessa medida, pode apenas ser suspenso mediante declaração de estado
de emergência ou de sítio[22].
Repare-se,
antes de mais, que a opção entre os dois entendimentos tem consequências
radicalmente opostas numa declaração de estado de emergência: para o primeiro
entendimento, segundo o qual o que está em causa é o direito protegido pelo
artigo 27.º e este não admite restrições para além daquelas que nele estão
expressamente contempladas, a declaração de estado de emergência não pode
deixar de o contemplar; para o segundo entendimento, pelo contrário, uma vez
que se sustenta que está primariamente em causa a liberdade de deslocação, que
em qualquer caso sempre admite restrições, não se torna necessário suspender o
artigo 27.º, que careceria de uma justificação especialmente forte.
Com
é sabido, o artigo 27.º estabelece que ninguém pode ser privado da sua
liberdade a não ser que tenha cometido um crime, ou ainda quando se verifiquem
determinadas circunstâncias entre as quais não se inclui, pelo menos de forma
expressa, o internamento compulsivo de portador de doença contagiosa ou o
confinamento de pessoas suspeitas de contágio em qualquer espaço.
Assim,
a declaração de estado de emergência que incluísse a suspensão do direito à
liberdade previsto no artigo 27.º seria, de acordo com um dos entendimentos
atrás mencionados, a única forma de tornar efetiva a quarentena de pessoas ou o
internamento compulsivo de doentes sem atentar contra Constituição.
Ora
no decreto presidencial esta questão foi antes enquadrada no âmbito da
suspensão do direito de deslocação e de fixação em qualquer parte do território
nacional, previsto no artigo 44.º da Constituição. Segundo o decreto
presidencial, podem ser impostas pelas autoridades públicas competentes as
restrições necessárias a este direito para «reduzir o risco de contágio e
executar as medidas de prevenção e combate à epidemia, incluindo o confinamento
compulsivo no domicílio ou em estabelecimento de saúde, o estabelecimento de
cercas sanitárias, assim como, na medida do estritamente necessário e de forma
proporcional, a interdição das deslocações e da permanência na via pública que
não sejam justificadas, designadamente pelo desempenho de atividades
profissionais, pela obtenção de cuidados de saúde, pela assistência a
terceiros, pelo abastecimento de bens e serviços e por outras razões
ponderosas, cabendo ao Governo, nesta eventualidade, especificar as situações e
finalidades em que a liberdade de circulação individual, preferencialmente
desacompanhada, se mantém».
Uma
vez que o direito à liberdade do artigo 27.º da Constituição não foi suspenso
no decreto presidencial de declaração do estado de emergência, isso
significaria que o mesmo continua a limitar a atuação dos poderes públicos
neste domínio.
Em
relação a esta argumentação, cabe começar por salientar que a mesma implica, se
levada até às últimas consequências, que será apenas possível impor em Portugal
a quarentena a uma pessoa suspeita de ser portadora de doença contagiosa em
caso de declaração de estado de emergência. Esta não é, certamente, uma conclusão
aceitável.
Aceitá-la
implica, antes de mais, concluir também pela inconstitucionalidade de um
conjunto de diplomas legislativos aparentemente em vigor no nosso ordenamento.
Em
primeiro lugar, a Lei da Bases da Saúde determina que a autoridade de saúde
deve «desencadear, de acordo com a Constituição e a lei, o internamento ou a
prestação compulsiva de cuidados de saúde a pessoas que, de outro modo,
constituam perigo para a saúde pública»[23].
Em
segundo lugar, a Lei de Bases da Proteção Civil estabelece que a declaração da
situação de calamidade pode «estabelecer a mobilização civil de pessoas, por
períodos de tempo determinados»; «a fixação, por razões de segurança dos
próprios ou das operações, de limites ou condicionamentos à circulação ou permanência
de pessoas, outros seres vivos ou veículos»; «a fixação de cercas
sanitárias e de segurança»[24].
Em
terceiro lugar, a lei que institui o Sistema de Vigilância em Saúde Pública
atribui ao membro do Governo responsável pela área da saúde a competência para
tomar medidas de exceção indispensáveis em caso de emergência em saúde pública,
incluindo a restrição, a suspensão ou o encerramento de atividades ou a
separação de pessoas que não estejam doentes, meios de transporte ou
mercadorias, que tenham sido expostos, de forma a evitar a eventual
disseminação da infeção ou contaminação. Para além disso, o mesmo diploma
atribui ainda ao membro do Governo responsável pela área da saúde, sob proposta
do diretor geral da Saúde, como autoridade de saúde nacional, a competência para
emitir orientações e normas regulamentares no exercício dos poderes de
autoridade, com força executiva imediata, no âmbito das situações de emergência
em saúde pública com a finalidade de tornar exequíveis as normas de contingência
para as epidemias ou de outras medidas consideradas indispensáveis cuja
eficácia dependa da celeridade na sua implementação. Estas medidas devem ser
aplicadas com critérios de proporcionalidade que respeitem os direitos,
liberdades e garantias fundamentais, nos termos da Constituição e da lei[25].
Não
é simplesmente crível que todas estas disposições normativas sejam
inconstitucionais por violação do artigo 27.º da Constituição. E isto por uma
razão simples: para além da possibilidade de limitação deste direito, em
nenhuma de tais disposições, tal como no decreto presidencial que declarou o
estado de emergência, está em causa, em primeira linha, a liberdade física do
artigo 27.º, mas antes a liberdade de deslocação do artigo 44.º.
A
primeira tarefa que se impõe consiste, pois, em esclarecer em que termos se
articulam as liberdades previstas nos artigos 27.º e 44.º da Constituição. A
liberdade física do artigo 27.º já foi definida como «o direito a não ser
detido, aprisionado, ou de qualquer modo fisicamente confinado a um determinado
espaço, ou impedido de se movimentar»[26]. Para além disso, a
garantia constitucional em causa abrangeria a privação total ou parcial da
liberdade, isto é, no primeiro caso, «o confinamento coativo a um espaço
relativamente limitado (como um estabelecimento prisional, o edifício de um
tribunal ou de entidade policial ou de um hospital)» e, no segundo caso, «qualquer
outra forma de impedimento à deslocação da pessoa de ou para qualquer lugar que
lhe seria jurídica e faticamente acessível»[27].
Por
seu turno, o direito de deslocação parece envolver a liberdade de movimentação
dentro de todo o território nacional, a liberdade de passagem e de livre
permanência em qualquer lugar público, a liberdade de circulação pelas vias
públicas e a liberdade de fixação em qualquer parte do território nacional,
envolvendo a liberdade de escolha de residência e lugar de atividade profissional[28].
Uma
vez assim delimitados pela nossa doutrina mais significativa os dois direitos em
causa torna-se clara a íntima conexão entre o respetivo âmbito de proteção, mas
afigura-se mais difícil compreender aquilo que os separa. Para o efeito, torna-se
necessário começar por precisar o significado da liberdade física que parece
estar subjacente a ambos os direitos.
É
necessário ter presente, antes de mais, que o âmbito de proteção da liberdade
protegida pelo artigo 27.º parece ser apenas a liberdade de movimento em face
de ameaças físicas que visem impedi-las. Assim, a proibição de abandonar um
lugar, bem como a obrigação de se manter nele, surge apenas como uma restrição
à liberdade do artigo 27.º quando for acompanhada do recurso à força ou da sua
ameaça. No entanto, bem vistas as coisas, qualquer restrição à liberdade pode
ser acompanhada do recurso à força ou da sua ameaça, em face do monopólio
estatal da força pública.
A
verdade é que a liberdade física não significa a não vinculação a qualquer
dever que restrinja a movimentação do corpo da pessoa. Assim, a obrigação de
estar num determinado lugar deve ser objeto de uma diferenciação: o dever de,
até um determinado momento, fazer algo num determinado lugar deixa ao obrigado
a liberdade de escolher quando cumprir o dever. Tal obrigação não interfere com
a liberdade da pessoa, uma vez que o âmbito de proteção desta última
corresponde à liberdade de movimento enquanto tal e não à liberdade em face de
um dever de atuação que se encontre relacionado com o movimento físico da
pessoa. Todavia, se estiver em causa um dever de atuar num determinado momento,
já será possível sustentar que é afetada a liberdade da pessoa na sua dimensão
negativa[29].
Quanto
ao direito de deslocação do artigo 44.º pode dizer-se que o mesmo significa a
liberdade de fixar residência ou deter-se temporariamente em qualquer ponto do
território nacional. Este direito tem também uma dimensão negativa: não está em
causa apenas o direito de escolher qualquer ponto do território para se fixar
de modo permanente ou temporariamente, mas também o direito de não o fazer. Parece
claro que se tivermos em mente sobretudo a dimensão de escolha de qualquer
lugar para a pessoa se deter temporariamente, mas também a recusa de o fazer, a
violação da liberdade do artigo 27.º implica uma violação do artigo 44.º.
Surge
deste modo a questão de saber em que casos a permanência da pessoa num
determinado lugar é protegida pelo artigo 27.º e em que casos o é pelo artigo
44.º. A este propósito, pode afirmar-se que o artigo 27.º se limita à proteção
da pessoa perante qualquer supressão ou redução da sua liberdade de movimento
de âmbito penal, caindo os restantes casos de movimento da pessoa sob a
proteção do artigo 44.º[30]. De resto, é esta inserção
do artigo 27.º no âmbito dos direitos fundamentais de âmbito penal que
justifica a rigidez do respetivo regime. A liberdade do artigo 27.º é a
liberdade cuja restrição pode ser decretada por um tribunal, ou tendo em vista
a sua confirmação por uma decisão judicial.
Mas
há três considerações adicionais que devem aqui ser salientadas. Em primeiro
lugar, a questão que nos devemos colocar é a de saber qual o sistema que mais
protege a liberdade física dos cidadãos: considerar que os direitos de
liberdade devem ser objeto de restrição em primeira linha através da lei, ou
objeto de suspensão em estado de emergência. Na verdade, uma visão abrangente
do direito de liberdade do artigo 27.º poderá significar a exclusão de grande
número das respetivas restrições do alcance do legislador, mas significará
também confiar a sua máxima restrição ao regime de exceção do artigo 19.º da
Constituição, que poucos tribunais se encontrarão em condições de eficazmente
controlar.
Em
segundo lugar, as medidas de confinamento por razões de saúde devem também ser
enquadradas à luz do disposto no artigo 64.º da Constituição e, nessa medida,
devem ser consideradas como exprimindo um dever dos cidadãos na defesa da saúde.
Sem querer recuperar a este propósito a velha teoria das «relações especiais
de poder»[31],
à luz das quais se justificava tradicionalmente a afetação dos direitos de
pessoas inseridas em certas categorias, como os militares, é preciso ter
presente que as medidas de confinamento em vigor são absolutamente fundamentais
na perspetiva da sustentabilidade do serviço nacional de saúde.
É
por essa razão – isto é, pela sua proximidade ao exercício de deveres
fundamentais dos cidadãos – que as mesmas não devem ser aproximadas de uma
liberdade concebida essencialmente como limitada pela aplicação de penas de
prisão.
Em
terceiro e último lugar, mesmo que não queiramos ver as medidas de confinamento
como expressão de um dever fundamental de defesa da saúde que recai sobre todos
os cidadãos, não podemos deixar de atentar na diferença da situação da pessoa
que é objeto de restrição do seu direito de liberdade física, previsto no
artigo 27.º, e a situação do doente sujeito a medidas de confinamento. Estas
últimas têm um carácter de exceção que claramente não assiste às primeiras,
carácter esse que se distingue (em claro paralelismo com as situações de
exceção constitucional) pelo objetivo de restabelecer o mais rapidamente
possível a situação de saúde.
O
Presidente da República atuou, pois, com a preocupação de não considerar os
cidadãos como pessoas em prisão domiciliária, ainda que por motivos de doença
contagiosa, mas antes como pessoas na plenitude dos seus direitos à proteção da
saúde e deveres de a defender e promover.
Lisboa,
29 de março de 2020
Miguel Nogueira de Brito
[1] Neste sentido,
cf. Boaventura de Sousa Santos, “Vírus:
tudo o que é sólido se desfaz no ar”, in jornal Público, 18 de março de 2020,
disponível em https://www.publico.pt/2020/03/18/mundo/opiniao/virus-solido-desfaz-ar-1908009 , último acesso
em 21 de março de 2020.
[2] O Decreto do
Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março.
[3] Cf. Jorge Reis
Novais, “Estado de Emergência – Quatro notas jurídico-constitucionais sobre o
Decreto Presidencial”, in Observatório Almedina, 19 de março de 2020,
disponível em https://observatorio.almedina.net/index.php/2020/03/19/estado-de-emergencia-quatro-notas-juridico-constitucionais-sobre-o-decreto-presidencial/, último acesso em
21 de março de 2020.
[4] Cf. Giorgio
Agamben, Stato di Eccezione, Bollati Boringhieri, Turim, 2003 (cf. Estado
de Exceção, tradução do original italiano de Miguel Freitas da Costa,
Edições 70, Lisboa, 2010).
[5] Cf. G. Agamben, Stato di Eccezione, cit., p. 111.
[6] Cf. Giorgio
Agamben, “Lo stato d’eccezione provocato da un’emergenza immotivata”, in Il
Manifesto, edizione del 26.02.2020, disponível em https://ilmanifesto.it/lo-stato-deccezione-provocato-da-unemergenza-immotivata/, último acesso em
21 de março de 2020. Tradução de Luisa Rabolini disponível em http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/596584-o-estado-de-excecao-provocado-por-uma-emergencia-imotivada, último acesso em
21 de março de 2020.
[7] Cf. Giorgio
Agamben, “Contagio”, 11 marzo 2020, disponível em https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-contagio, último acesso em
22 de março de 2020.
[8] Cf. Giorgio
Agamben, “Chiarimenti”, 17 marzo 2020, disponível em https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-chiarimenti, último acesso em
22 de março de 2020.
[9] Cf. John Locke, Two Treatises of Government, Second
Treatise, Cap. XIV, §§ 159 e ss., pp. 374-380 (cf. a edição de
Peter Laslett, Cambridge University Press, 1988); Kant, Sobre a Expressão Corrente:
Isto Pode Ser Correto na Teoria, mas de Nada Vale na Prática (1793),
tradução de Artur Morão, p. 30, disponível em https://www.marxists.org/portugues/kant/1793/mes/corrente.pdf, último acesso em
28 de março de 2020.
[10] Cf. Nomi Claire Lazar, States of Emergency in Liberal Democracies,
Cambridge University Press, Cambridge, 2009, p. 73 (sobre Kant, cf. pp. 57 e
ss.).
[11] Cf. Carl Schmitt, Politische Theologie. Vier Kapitel zur Lehre von
der Souveränität, Zweite Ausgabe, Duncker & Humblot, München und
Leipzig, 1934, p. 22.
[12] Cf. Oren Gross, “The Normless and Exceptionless Exception: Carl
Schmitt’s Theory of Emergency Powers and the ‘Norm-Exception’ Dichotomy”, in Cardozo
Law Review, Vol. 21, 2000, pp. 1840-1841.
[13] Cf. Walter
Benjamin, “Sobre a Crítica do Poder como Violência”, in O Anjo da
História, edição e tradução de João Barrento, Assírio & Alvim,
Lisboa, 2008, p. 52.
[14] Cf. Walter
Benjamin, “Sobre a Crítica do Poder como Violência”, cit., pp. 70-71.
[15] Cf. Walter
Benjamin, O Anjo da História, organização e tradução de João Barrento,
Autêntica Editora, Belo Horizonte, 2012, p. 10 (tese VIII de Sobre o
Conceito de História).
[16] Cf. Giorgio Agamben, “What Is a Destituent Power?”, in Environment
and Planning D: Society and Space, 2014, volume 32, pages 65-74. Cf.,
ainda, Jiri Priban, Sovereignty in Post-Sovereign Society: A Systems Theory
of European Constitutionalism, Routledge, London and New York, 2016, pp.
47-48.
[17] A influência de
Schmitt sobre o pensamento conservador na época posterior à Segunda Guerra
exigiria maiores desenvolvimentos. Cf., no
entanto, Thomas Biebricher, “Sovereignty, Norms, and Exception in
Neoliberalism”, in Qui Parle: Critical Humanities and Social Sciences,
Volume 23, Number 1, Fall/Winter 2014, pp. 77-107; William E. Scheuerman, “The
Unholy Alliance of Carl Schmitt And Friedrich A. Hayek”, in Constellations,
Volume 4, No. 2, 1997, pp. 172-188.
[18] Cf. David Runciman, “Coronavirus has not suspended politics – it has
revealed the nature of power”, in The Guardian, 27 March 2020,
disponível em https://www.theguardian.com/commentisfree/2020/mar/27/coronavirus-politics-lockdown-hobbes, ultimo acesso em 28 de março de 2020.
[19] Cf. Nadia Urbinati, “Unpolitical Democracy”, in Political Theory,
Vol. 38, No. 1, February 2010, pp. 65-92; Philip Pettit, “Depoliticizing
Democracy”, in Ratio Juris, Vol. 17, No. 1, March 2004, pp. 52–65.
[20] Vejam-se a este
propósito as considerações de Byung-Chul Han no El País, edição de 21 de março
de 2020, disponível em https://elpais.com/ideas/2020-03-21/la-emergencia-viral-y-el-mundo-de-manana-byung-chul-han-el-filosofo-surcoreano-que-piensa-desde-berlin.html, último acesso em
22 de março de 2020.
[21] Cf. Andrea Kendall-Taylor, Erica Frantz e Joseph Wright, “The Digital
Dictators: How Technology Strengthens Autocracy”, in Foreign Affairs,
March/April 2020, pp. 103 ss.
[22] Julgo ser este o
principal argumento desenvolvido por Jorge Reis Novais no seu texto citado na
nota 2, supra.
[23] Cf. Base 34, n.º
2, alínea b), da Lei n.º 95/2019, de 4 de setembro. De resto, idêntica
disposição constava já da Base XIX, n.º 2, alínea c), da anterior lei de bases,
aprovada pela Lei n.º 48/90, de 24 de agosto.
[24] Cf. artigo 21.º
da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho.
[25] Cf. artigo 17.º
da Lei n.º 81/2009, de 21 de agosto.
[26] Cf. Gomes
Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada,
Tomo I, 4.ª ed., Coimbra Editora, 2007, p. 184.
[27] Cf. Jorge Miranda
e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Vol. I, 2.ª ed.
revista, Universidade Católica Editora, 2017, p. 466.
[28] Cf. Jorge Miranda
e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Vol. I, cit., p. 681.
[29] Cf. Bodo Pieroth e Bernhard Schlink, Grundrecht Staatsrecht II,
28.ª ed., C. F. Müller, Heidelberg, 2012, p. 104.
[30] Cf. Bodo Pieroth e Bernhard Schlink, Grundrecht
Staatsrecht II, cit., p. 209. Repare-se, aliás, que também na
constituição alemã existe uma clara conexão entre a liberdade física prevista
no artigo 2.º, n.º 2, segundo parágrafo e a privação de liberdade no plano
criminal prevista no artigo 104.º.
[31] Cf. J. M. Sérvulo
Correia, “As Relações Jurídicas Administrativas de Prestação de Cuidados de
Saúde”, pp. 39-40, disponível em https://www.icjp.pt/sites/default/files/media/616-923.pdf, último acesso em
29 de março de 2020.
Sem comentários:
Enviar um comentário