domingo, 20 de janeiro de 2013

A memória do Holocausto - 2














Há poucos dias, falei aqui no Malomil da «indústria do Holocausto» e do livro com o mesmo nome de Norman Finkelstein. Doutro teor, mas com um alcance algo similar, é a denúncia de aspectos, por assim dizer, «comerciais» na evocação da memória do Holocausto. «Shoah Business» é o título de um ensaio de Mark Dery, republicado recentemente num livro muito interessante, I Must Not Think Bad Thoughts. Drive-by Essays on American Dread, American Dreams (2012).

O que Mark Dery diz nesse ensaio é relativamente previsível e não anda muito longe do que Tim Cole escreveu já há anos em Selling the Holocaust: From Auschwitz to Schindler. How History is Bought, Packaged and Sold (2000). Substancialmente, Dery e Cole criticam o facto de a Shoah se estar a converter num produto comercial e de alguns lieux de la mémoire do Holocausto se terem transformado em pontos de atracção turística, como acontece com Auschwitz-Birkenau, a Casa de Anne Frank, o Yad Vashem, os museus de Washington ou Dallas. «Dark tourism», é a expressão usada por Cole e Dery, que não hesitam em descrever o actual Museu de Auschwitz como um «parque temático» que, na sua configuração, nada tem a ver com a realidade do complexo de extermínio, com os seus quarenta campos satélites, existente durante a 2ª Guerra. O tour que conduz os visitantes, destinado a produzir o máximo efeito cénico e emocional, culmina no crematório. Ora, o verdadeiro crematório, em ruínas, dista mais de três quilómetros daquele local…
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A par disto, afirma-se que o Holocausto tem sido trivializado e, dizem, «domesticado», em obras cinematográficas de grande êxito e happy endings, como La Vita è Bella (1997), de Roberto Benigni, apodado de «revisionista» por parte de Mark Dery. Sai também maltratado desta crítica o inenarrável Jakob the Liar (1999), de Peter Kassowitz, com Robin Williams. O principal alvo, claro está, é Schindler’s List (1993), de Spielberg. Conta-se, inclusivamente, que, no gueto de Cracóvia, existem tours para visitar os locais em que o filme foi filmado, mais populares do que os locais onde os horrores do Holocausto efectivamente ocorreram. Mais de cinquenta anos depois de os nazis terem industrializado o genocídio, a memória dessa tragédia está, ela própria, a ser industrializada, seja com propósitos políticos, seja com intuitos mercantis.
Nesta mesma linha de denúncia e de crítica, Julie Dermansky associou-se ao cineasta austríaco Georg Steinboeck e, entre 1999 e 2000, produziram uma instalação artística denominada «At Auschwitz», apresentada – note-se – no Hebrew Union College–Jewish Institute of Religion Museum, em Manhattan, Nova Iorque (ver aqui). Nessa exposição mostram-se imagens-vídeo dos visitantes do campo, mais precisamente dos que se encontram na sua cafetaria-restaurante, a comer e a beber, por vezes com a sofreguidão apressada que é própria dos turistas, indiferentes ao facto de se encontrarem num local como aquele. O propósito de Dermansky e Steinboeck é, segundo dizem os próprios, expor «até que ponto a Humanidade pode ser insensível à sua História».
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Julie Dermansky e Georg Steinboeck, At Auschwitz, 1999



Na verdade, não podemos ficar indiferentes ao facto de o edifício que hoje alberga a cafetaria de Auschwitz ser aquele que, há algumas décadas, servia de local onde os recém-chegados ao campo eram registados, numerados com uma infame tatuagem, barbeados, desinfestados e vestidos com os «pijamas» que, aliás, serviram de título a outra obra romanesca de grande êxito, O Rapaz do Pijama às Riscas, de John Boyne, adaptado ao cinema em 2008. Na cafetaria de Auschwitz, onde os turistas hoje se alimentam, tomam café e fazem uma pausa nas suas excursões ao Anus Mundi (o «ânus do mundo», como o campo ficou conhecido), era o exacto local, diz Mark Dery, em que milhares de seres humanos passaram de Mensch a Untermensch. Quem consegue ter fome e saborear uma refeição num sítio como aquele?, pergunta o ensaísta. Não o afirma explicitamente, mas talvez a sua grande questão seja esta: o facto de se conseguir saciar a fome e descansar o corpo num local como Auschwitz demonstra alguma inconsciência do que ali se passou e, sobretudo, do significado profundo daquele lugar, um lugar bem diferente de um museu de pintura ou de um parque de merendas. Daí resulta, em síntese, que o projecto e o propósito que levaram à conversão de Auschwitz em museu, visitável pelos turistas, poderão ter falhado em larga medida – pelo menos, para muitos dos que ali acorrem. Resta saber se seria desejável a alternativa contrária, que consistiria em fechar Auschwitz ao público. Poder-se-á tentar introduzir alguns paliativos, normas e regras que impeçam os abusos da comercialização, alguns dos quais bastante evidentes, sobretudo, segundo creio, nos Estados Unidos. Isto, por exemplo:


«My Name Is Refugee», aqui







Este ursinho de peluche e esta caneca encontram-se à venda na loja do United StatesHolocaust Memorial Museum, em Washington D.C. O boneco de peluche, chamado Refugee, evoca a histórica verídica de uma criança judia com o seu ursinho, mas, convenhamos, é um excesso de merchandising… Há pin’s com borboletas, velas, brincos, azulejos com a inscrição «You Are My Witness» e até uma caneca com os pedagógicos dizeres «Think About What You Saw». Em Israel, o Yad Vashem é mais comedido: uns pin’s, uns porta-chaves, uns candelabros. Pelo menos na loja online. Uma ou outra coisa impressiona, como um boné e uma t-shirt do museu, mas nada de excessivo. O Museu de Aushwitz-Birkenau, pelo menos na sua loja online, só vende livros.

Há muitos anos, estive em Dachau e nada de vi de merchandising. É certo que este fenómeno ainda não tinha invadido os hábitos de consumo, mas, de resto, pouco por ali havia. Nem me recordo de sequer existir uma loja ou uma livraria. O «apoio ao visitante» era esquálido, como esquálido era todo o campo, que percorri sozinho com um mapa (mal) impresso numa folha A-4. Junto aos diversos pontos, pouca ou nenhuma informação. Apenas junto ao crematório vi um guia do local, um ancião que explicava para que serviam aqueles fornos a um pequeno grupo de visitantes. Em pleno Agosto, quase nenhuns ou poucos turistas. Mas não havia silenciamento ou revisionismo: em várias salas, uma exposição sobre os horrores do nazismo, com imagens aterradoras de mortes em massa e experiências «médicas» em judeus ou ciganos. Exibiam-se as bandeiras dos países que tiveram cidadãos mortos em Dachau. Vi a bandeira portuguesa, acompanhada de cinco ou seis nomes de vítimas. Nunca ninguém se interessou por saber e estudar quem foram os portugueses que ali perderam a vida?


Fila à porta da Casa de Anne Frank, Amesterdão


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O ano passado, visitei a Casa de Anne Frank, em Amesterdão, integrada agora num complexo mais vasto, de arquitectura moderna. À porta, filas intermináveis. Com bilhetes previamente comprados na Net, entrámos e visitámos a casa. Lá dentro, uma exposição sóbria e serena. Na loja, o famoso diário em várias línguas. É nestas ocasiões que sentimos orgulho em ser portugueses: a edição lusitana do Diário de Anne Frank, da Livros do Brasil, era, de longe, a mais feia de todas as que estavam à venda na loja. E eram muitas, muitíssimas, as edições disponíveis, de várias línguas e diversos países do mundo. Vende-se livros, muitos livros, alguns postais, fotografias ampliadas, uma réplica do famoso diário com as folhas em branco, para que cada qual o use como caderno de apontamentos e pensamentos. No Museu disponibilizam gratuitamente um folheto muito informativo e completo sobre a história de Anne Frank, o Holocausto, o destino dos judeus. Vocacionado para um público infanto-juvenil, abundantemente ilustrado, o folheto está escrito numa linguagem simples e directa, sem exaltações nem excessos. Na caixa da loja, à saída, perguntei se não vendiam lápis, borrachas, agendas, etc., tendo recebido da funcionária uma polida mas orgulhosa resposta, já muito treinada e, pelo que percebi, bastante habitual: Sorry, sir, we don’t have merchandising. A Leonor, que já tinha lido duas vezes o Diário de Anne Frank, ia contando a história à Margarida, interessadíssima por tudo o que via. Fiquei com a Joana, um caso mais complicado. A Joana não é nada destas coisas e, coitadinha, já vinha um pouco massacrada do Rijksmuseum. Quando lhe perguntei o que achara, resmungou: «Isto é só mortos!». De Amesterdão inteira, a Casa de Anne Frank foi o sítio que a Margarida mais gostou de visitar.
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Fotografia de António Araújo




Fotografia de António Araújo




Em Paris, no Mémorial de la Shoah, existe, além de apertadas medidas de segurança, aquela que é, sem dúvida, a mais rica livraria sobre o Holocausto que já vi. De álbuns para crianças às obras mais sérias e pesadas, passando pelos inevitáveis Auschwitz expliqué à ma fille, de Annette Wieviorka (de que existe tradução portuguesa), e o extraordinário I Was a Child of Holocaust Survivors, de Bernice Eisenstein (de que existe tradução castelhana…), há de tudo na livraria do Mémorial de la Shoah. Adereços e objectos, não vi.
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É possível que esta sobriedade grave, que encontrei na Casa de Anne Frank ou no Mémorial de la Shoah, se devam precisamente ao propósito de estabelecer um contraste com alguns excessos de massificação turística que me dizem existir em Auschwitz ou abusos de gift-shoppingque encontramos no Museu de Washington. Tudo se resume, portanto, a uma questão de equilíbrio e de bom senso.



Fotografia de António Araújo 
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Em todo o caso, há questões que se colocam e para as quais não existe uma resposta definitiva. Desde logo, a pergunta mais evidente de todas: poderia ser doutra forma? A curiosidade de milhões pelo Holocausto é uma consequência lógica, mais do que natural, do facto de aquele ter passado a integrar a cultura de massas à escala planetária, um fenómeno que só começou a desenhar-se em meados/finais da década de 60, aprofundando-se nos anos vindouros com a série televisiva Holocaust (1978), o filme documental Shoah (1985) ou Schindler’s List (1993). Auschwitz e Anne Frank fazem parte da cultura de massas – e isso é uma realidade irreversível e indestrutível. No ponto a que chegámos, a alternativa seria o apagamento forçado ou uma utópica obnubilação da memória (a qual seria, ademais, indesejável). É difícil, se não impossível, impedir que multidões se precipitem sobre os campos de arame farpado e os crematórios. O que ali ocorre não é muito diferente do que se passa na Capela Sistina, ameaçada pelo dióxido de carbono da respiração de milhões de turistas. A partir do momento em que o Holocausto se tornou um produto cultural, como os frescos de Miguel Ângelo ou a Gioconda de Leonardo, é difícil parar a vaga avassaladora do turismo de massas, que voos low cost e autocarros climatizados regurgitam diariamente sobre os pontos de visita que, não por acaso, é classificada de «obrigatória». Perante a avalancha de turistas, é também impraticável não criar condições mínimas de acolhimento, como casas-de-banho ou cafetarias. Novamente, tudo se resume a uma das mais raras qualidades humanas: o bom senso.

Aliás, é curioso que tenha sido Theodor Adorno, um dos principais teorizadores do nascimento da «indústria da cultura», a afirmar que depois de Auschwitz não há poesia. São duas realidades que convergem, mesmo que discordemos desta última afirmação de Adorno e mesmo que nos repugne a conversão de certos locais em pontos de atracção turística de massas, naquilo que o turismo tem enquanto expressão de consumo acrítico e acéfalo.

Resta saber, em todo o caso, se a crítica aos excessos de mercantilização do Holocausto, perfeitamente legítima e em larga medida pertinente, não visa alcançar uma inatingível «sacralização» da memória da Shoah. Selling the Holocaust, assim se chama o livro de Tim Cole. Pois também existe Selling Jerusalem: Relics, Replics, Theme Parks (2006), um extraordinário relato, da autoria de Annabel Jane Wharton, sobre o modo como, desde a Idade Média, o Ocidente se «apropriou» de Jerusalém sob várias formas, desde as relíquias às réplicas, passando por parques temáticos ou espectáculos. Há alguma semelhança entre a análise de Wharton e a de Tim Cole. A crítica à mercantilização da crença religiosa, sobretudo no campo católico, é antiga e bem fundada, assumindo por vezes aspectos caricaturais, como n’A Relíquia, de Eça. Por seu turno, a crítica à «mercantilização» do Holocausto leva implícita a ideia de que a evocação da Shoah deve ser objecto de um trabalho da memória que a preserve intacta, seja da negação do revisionismo, seja da invasão das multidões consumistas. Ora, essa ideia assenta numa convicção, numa fé secular, de que o Holocausto, em si mesmo, possui a capacidade de ser imune aos ditames do capitalismo e da produção cultural de massas. No fundo, parte-se do pressuposto de que em torno do Holocausto seria possível construir uma «religião civil» protectora da sua integridade. Acontece, porém, que a mercantilização da Shoah acaba por contrariar esse pressuposto, demonstrando a inevitabilidade da sua integração num mundo e num tempo em que o consumo cultural de massas é hegemónico e avassalador. O que questionei no ensaio de Finkelstein, aqui, aplica-se também à denúncia do «comercialismo» de Auschwitz feito por Tim Cole em Selling the Holocaust ou a Julie Dermansky e Georg Steinboeck. Aliás, e sem querer usar argumentos ad hominem (ou ad feminam…), muitos dos trabalhos da fotógrafa engagé Julie Dermansky também acabam, de certo modo, por se «aproveitar» do facto de existirem locais evocativos da memória, de Nova Iorque pós 11/setembro a Nairobi. Talvez mesmo sem se aperceber desse facto, singelo mas decisivo, Julie Dermansky também faz parte da «indústria da memória». E, porventura, exercendo o papel mais conveniente de todos: o de consciência crítica. Esteve no Iraque, nos locais dos massacres do Ruanda, no Haiti após o terramoto, em Nova Orleães depois da passagem do Katrina. Fotografou o movimento Occupy Wall Street, os derramamentos de petróleo nos oceanos, o vazio desolador que envolve a cidade de Detroit. Tem obra feita, certamente meritória. Produziu vários livros, entre os quais um «relicário» das vítimas do Katrina: Revenants: A New Orleans Reliquary, Post-Katrina Photographs (2008), com imagens da sua autoria e um poema de Ann McGarrell. A pergunta será ousada e provocatória, mas imperiosa: na substância que diferença existe entre o livro Revenants: A New Orleans Reliquary e o ursinho de peluche Refugee? Apenas uma: o público-alvo. Um é descaradamente comercial e destina-se às multidões que enchem o museu de Washington; outro é intelectualmente mais sofisticado, surgindo sob as vestes da «denúncia», do «testemunho», da«memória». Mas existe um denominador comum: ambos se alimentam do voyeurismo do trágico.
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Julie Dermansky e Ann McGarrell, Revenants, 2008, aqui

Com Ann McGarrell, Julie Dermansky fez uma exposição de objectos resgatados das casas destruídas de Nova Orleães, pelo furacão Katrina: bonecas, livros de crianças, molduras com fotografias… Se existe uma ética da memória, como referiu Avishai Margalit num extraordinário ensaio com esse nome, ela deve valer para todas as vítimas, tanto as do III Reich como as do furacão Katrina. Nem se afirme, em contrário, que num caso estamos perante uma exploração comercial sem escrúpulos e, no outro, perante uma denúncia militante em nome de valores e princípios morais superiores. Se a evocação da memória é um imperativo ético, ninguém pode reclamar para si o monopólio da verdade – e, muito menos, da superioridade, intelectual ou moral.


António Araújo



3 comentários:

  1. Esse «Dark tourism» é obsceno.
    O que relata é uma infâmia, magoa, é inqualificável.
    E haver quem 'explique'? - 'explicar'?! depois de tudo o que já se leu e viu, ouviu e reviu, ainda há necessidade de palavras, de ruído, de coisas ao redor daqueles locais de sofrimento inaudito?!
    Cafetaria em Auschwitz ? "lá"?!
    inacreditável...
    é melhor encerrarem tudo, sob um espesso manto de vergonha.

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  2. Eu percebo que as pessoas tenham de comer, beber, descansar mas não poderiam não ter usado as instalações existentes para isso? Construir outras, sei lá...se calhar sou uma exagerada mas parece-me falta de respeito pela memória de quem não foi respeitado em vida...só fiz o périplo das visitas em Budapeste e o peso no coração é tão grande, tão grande que comer ou descansar seria a ultima coisa em que poderia pensar...
    Em Budapeste (Peste) também não vi merchandising.

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  3. Ainda não este seu texto todo, mas faço tenções de o fazer. Também já visitei a casa de Anne Frank, que acho uma homenagem muito digna, e Auschwitz, mas não me lembrava da cafetaria (se calhar ainda não havia quando lá fui). É de facto de gosto duvidoso...

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