quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Sob o signo de Eusébio.

 
 
 
 
 
 
 

Pouco ou nada entendo de futebol. Penso que isto não me diminui nem me favorece. Tudo o que se conhece e se sabe é enriquecimento. Mas poucas devem ser as pessoas com capacidade e tempo suficiente para atender todas as solicitações que a vida moderna lhes oferece. Enfim, pertenço àqueles que não veem desafios de futebol, nem nos estádios nem na televisão, aliás coisa que não possuo. Apesar disso voltei duma viagem ao estrangeiro com a sensação de a ter feito sob o signo de Eusébio.
Foi na última semana de Julho que passámos a fronteira da França para a Alemanha. O funcionário, ao revistar os nossos passaportes, exclamou:
− Portugueses? Bravo! Eusébio! Eusébio!
Olhámo-lo com estranheza. Não compreendíamos tal manifestação. Vendo-nos assim, estupefactos, tornou-se ainda mais barulhento, quase tanto como os turistas alemães que viajam em magotes compactos por este mundo fora:
− «Messieurs! Señores! Verstehen Sie nicht? Eusebiio!»
E ilustrou a palavra com o gesto de um pontapé no ar.
Ah, o Eusébio! Pois claro, claro! Oferecemos-lhe um sorriso: quem não conhecia Eusébio?
Numa pequena estalagem de Estugarda, onde entrámos à hora do jantar, perguntámos à dona se não nos podia arranjar alguma coisa para comer. Estava a ver, na televisão, o desafio entre Portugal e a Rússia. Apontou, sorrindo, para o Eusébio e despachou-nos, rapidamente, com a desculpa de que pouca coisa tinha na despensa – na melhor das hipóteses, umas fatiazinhas de chouriço e pão – e que, se descêssemos a rua e atravessássemos a avenida, encontraríamos um bom restaurante. Era óbvio que não se queria privar do espectáculo.
         A rua e a avenida estavam despovoadas. Coisa estranha na cidade de Estugarda, àquela hora. Provavelmente, a população encontrava-se absorvida pelo desafio. O bom restaurante era uma cervejaria. Também ali se estava a ver o jogo; e nós, enquanto comíamos, víamos também. O locutor salientava alguns nomes com nítido carinho. Entre eles o de Eusébio. E os fregueses da cervejaria repetiam, com o mesmo carinho:
         – Eusébio, Eusébio…
         Depois, numa outra cidade da Alemanha. Assistíamos a uma comemoração particular, num hotel de primeira. Havia mais de cem convidados, entre os quais representantes do governo, de vários organismos oficiais, de corporações, etc. Felicitaram-nos pela nossa bela equipa de futebol e, sobretudo, pelo Eusébio. Um velho conhecido – aliás bastante racista no que respeita aos negros, o que nos levava muitas vezes a ardentes discussões – confessou que sentia uma verdadeira ternura por «esse moço, esse Eusébio».
         E, no fim do banquete, mal tinham acabado os brindes, numeroso grupo correu para a sala onde havia um aparelho de televisão a fim de assistir ao desafio Portugal-Inglaterra.
         Na Áustria, no hall do nosso hotel, travei conversa com um engenheiro checo.
          – Portugal? – cismou – Mas eu sei alguma coisa de Portugal!
         – Talvez tenha lido um livro, um artigo? Ou visto um filme? – ajudei.
         Não, não tinha. Meti, então, um pouco hesitante:
         – Eusébio?
         – Isso! – exclamou. – Eusébio, que grande artista! O rei do futebol. Uma maravilha!
         Na pacata Suíça, onde bem se pressente que os trabalhadores estrangeiros – e entre os portugueses – não são lá grandemente estimados, vi muito suíço desconsolado com a vitória final da Inglaterra. Também ninguém queria que os alemães tivessem ficado em primeiro lugar, não; quem devia ter ganho era a simpática equipa portuguesa, com aquele grande virtuoso do jogo, o Eusébio. Que pena!
         Em Zurique, um motorista de táxi perguntou-me se eu alguma vez vira Eusébio. Disse-lhe que sim, ainda há pouco, na televisão, em Estugarda.
         – Mas nunca o viu em Portugal? – perguntou.
         – Não, não tenho televisão em casa.
         Insistiu:
         – O que queria saber é se já o viu em carne e osso.
         Tive de o desiludir: não, nunca o vira em carne e osso e, para me justificar, expliquei-lhe que vivia no Porto e ele em Lisboa.
         – Mesmo assim… – retorquiu com certa estranheza.
         Podia reproduzir mais conversas no género, mas o espaço concedido a um artigo deste teor não mo permite. Devo só confessar que, por várias vezes, me senti deslocada neste mundo por não saber falar com desenvoltura e entusiasmo sobre futebol e sobre Eusébio.
         Mea culpa.
 
 
 Ilse Losa
In: Diário Popular, de 6 de Outubro de 1966
 

2 comentários:

  1. Extraordinário! Como é que o António teve conhecimento deste texto?

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    1. Está exposto na exposição - que já aqui anunciei, e que é magnífica - sobre Eusébio, na Biblioteca Nacional.
      Cordialmente,
      António Araújo

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