Notas bárbaras (Diário ocasional)
18 de Agosto
Esta manhã enviei aos amigos uma curta mensagem
sobre a nossa chegada ao Maine, para onde a Leonor e eu viemos passar dez dias
como eremitas a trabalhar descansando ou a trabalhar descansando. De imediato,
eu recebia dos Açores, da Maria João Ruivo, este e-mail docemente piadético:
Essa de
virares eremita durante dez dias não consigo encaixar muito bem. Desculpa. Não
é que desconfie de ti, mas convenhamos. Sempre hás-de encontrar aí uma
velhinha, neta do dono da tasca do canto do Pico da Pedra e vais acabar por
levá-la a jantar fora. Também é enorme, contigo, a hipótese de dares de caras
com um iatista turco, que leu um livro teu e que gostaria de fazer um ensaio,
mas precisa de umas dicas. Lá irás ao encontro dele às 6 da manhã, porque ele
zarpa às 8h. Ou então, sei lá, o ardina que por aí passa é originário ali das
bandas do Faial, parente (embora de sangue vermelho) da minha cunhada Graça e
tu sentirás uma vaga obrigação de lhe pagares um copo. Podia imaginar mais umas
coisas, mas já chega.
Li-o à Leonor, que comentou: Como ela te
conhece tão bem!
Pois nem de propósito. Poucas horas depois,
desta vez sem qualquer culpa da minha parte, a Maria João teria mais uma para
juntar ao seu rol. Já conto.
Vergílio Ferreira, que lembro com saudade,
sentir-se-ia ofendido se lhe falasse do que acabo de presenciar como de “a
minha aparição”. As dele, eram superiormente metafísicas, as minhas, mais do
que banalíssimas, se bem que “banal” não seja propriamente termo para caber
nesta.
Tínhamo-nos refastelado num almoço de lagosta,
aqui no Maine ao preço dos chicharros em S. Miguel, ou das sardinhas em Lisboa.
Dera um salto ali ao Robinson’s Whorf a encomendar duas, juntamente com um par
de maçarocas de milho cozido. Tudo por dezassete dólares, algo como 13 euros. O
vinho branco de acompanhamento trouxémo-lo de Providence: um patriótico e
modesto “Monte Velho”, desde ontem a refrescar no frigorífico. A Leonor subiu
para o primeiro andar (só trabalha lá em cima por ser mais ampla a vista da
baía) e eu fiquei a terminar a crónica para o JL. De repente, um toque à
porta. Soltei o meu Come in! e súbito deparou-se-me uma aparição sob a
forma de mulher saída de um filme americano dos anos vinte. Bem, pela idade que
aparentava, seria da década de quarenta, mas o estilo era de vinte, ou se
calhar descolou-se mesmo do quadro “La Promenade”, de Monet, sei lá, um
cruzamento dela com “My Fair Lady” e talvez uma Mary Poppins de branco, se bem
que batidas todas pelo vento das décadas. Esbelta, magra e alta, toda alva,
chapéu de abas largas, vestido rendado a cobrir os sapatos, um sotaque
indecifrável no inglês doce, sorridente e melado. Na mão, um ramo de flores em
rebento. A acompanhá-la, um irrequieto pequeno cão.
Perguntou-me se eu não seria o professor da
Brown, poeta (?) e antigo professor do Robert (sim, o dono desta casa, agora a
leccionar na Georgia, onde as aulas já começaram). E onde estaria a minha
colega e mulher Leonor?
Eu a chamá-la e ela sem aparecer. Fui lá cima.
Ainda em robe, por gestos declarou-se-me fora de circulação social. Desci e
expliquei que a encontrara a dormir.
Ficámos ali na conversa. Soube que se chamava
Sonia e era holandesa, há muito nos States. Vinha saudar-nos e convidar-nos
para jantar em sua casa um dia destes.
Agradeci-lhe a simpatia e prometi transmitir o
convite à Leonor. Que vínhamos para trabalhar, mas apreciávamos a gentileza. Se
me permitisse, eu tirava-lhe umas fotos porque achava divinal aquela sua
aparição assim sem mais diante de mim. Ela posou e eu bati fotos várias, uma
amostra das quais segue em anexo. A lady desapareceu ágil e grácil como
veio e eu fui logo verificar as fotografias para ter a certeza de que não
sonhara e havia mesmo captado imagens reais. Não se tratava de uma visão
alucinada.
Onésimo Teotónio de Almeida
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