domingo, 27 de março de 2016

O Homem resgata o Anjo.


 
 

 

 
A Procissão do Senhor dos Desamparados em Soutelinho da Raia:
o Homem resgata o Anjo
 
 
 
         As duas festas principais de Soutelinho da Raia eram (e são) a do Senhor dos Desamparados, celebrada todos os anos no primeiro domingo de Junho, e a de Santo António, padroeiro da freguesia, celebrada todos os anos no dia 13 de Junho.
       
Dada a proximidade da celebração dessas duas festas, praticamente da procissão constavam os mesmos andores e os mesmos figurantes. Entre os andores, ocupavam lugar de relevo, como é natural, o do Senhor dos Desamparados e o de Santo António, levados, cada um deles, aos ombros possantes de quatro briosos valentões da terra, vestidos de opas roxas, levando na mão livre uma longa e grossa vara de madeira fina, muito bem trabalhada, com uma espécie de gancho dourado na parte superior, em que de longe em longe sustentavam o andor, para breve alívio dos ombros cansados e doridos.
       
Só tendo assistido uma vez, desde o tempo de eu menino, à festa do Senhor dos Desamparados, há cerca de uns vinte e cinco anos, confesso que não recordo em pormenor – o que deveras lamento – todos os aspectos da procissão que passo a evocar. Sei que ela tinha início junto da capelinha do Senhor dos Desamparados, localizada no cimo da aldeia, e terminava junto da mesma capelinha, depois de percorrer a rua principal até à Lama e de voltar pelo mesmo caminho; sei que havia os andores mencionados acima e que havia figurantes do Velho e do Novo Testamento, a começar por Adão e Eva e a acabar por Maria Madalena, passando por São João Baptista, vestido com uma bela pele de ovelha, e levando, preso por um cordel, um cordeirinho branco e manso, como todos os cordeirinhos; passando por Abraão e Isaac (os garotos chamávamos a Isaac o menino com o molho dos guiços, o que em nada fazia diminuir o terror e a piedade que nos inspirava, cada vez que o austero e sisudo Pai Abraão, de barbas grisalhas a cair-lhe até ao peito, simulava cortar-lhe uma orelha com um facalhão descomunal que levava na mão direita); passando por Verónica, pelas três Marias e por muitos anjinhos. Lembro-me que o papel de Adão e de Eva era feito por um rapaz e por uma rapariga dos seus vinte e tal anos, os quais iam supostamente nus, cobertos apenas por folhas de hera, espetadas com alfinetes invisíveis num pano muito branco que lhes cobria a nudez do corpo. Lembro-me também que Adão levava uma enxada ao ombro e que Eva levava uma roca e uma cestinha muito linda. Enquanto Eva fazia cantar o fuso, com os requintes de uma exímia e briosa fiandeira, Adão, de seis em seis passos, ou coisa assim, dava uma enxadada, muito ruidosa, nos seixos da rua empedrada. Recordo-me que as Três Marias, entre as quais se contava minha mãe, em cumprimento de promessa, naturalmente, caminhavam descalças, cabisbaixas, tristes, lacrimosas, trajando um vestido roxo, da cor da túnica do Senhor dos Desamparados, a arrastar pelas pedras da calçada e com os cabelos a cair-lhes pelas espaldas, até à cintura. Recordo-me que um pouco mais atrás (as Três Marias iam imediatamente a seguir ao andor) caminhava Maria Madalena, também com um ar muito compungido e de rosto banhado em lágrimas, com uma vasta e longa cabeleira loura e com um rico vestido, que faziam a inveja das moças casadoiras da aldeia.
 
Uma das recordações mais vivas que tenho na memória de uma das procissões do Senhor dos Desamparados, dos tempos da minha meninice, é a de ter visto o meu irmão mais novo, o Alfredo, de uns três ou quatro anos de idade, vestido de anjinho, certamente em cumprimento de alguma promessa feita por minha mãe ou minha avó. De cabeleira loura, toda cacheada, de vestido alvinitente e roçagante, a varrer o pó da calçada, e de asas brancas, como as de todos os anjos, ia imediatamente à frente do andor do Senhor dos Desamparados.
 
Dá-se o início da procissão, com um valente e tonitruante morteiro, a subir enviesado e a rabiar pelos ares de um céu azul, com o rufar lento e majestoso dos tambores, e com os primeiros compassos de uma marcha fúnebre, tocada pela Banda Flaviense ou pela Banda da Torre (não me lembro bem), e o meu irmãozinho, o Alfredo (ou o Fredo, como lhe chamávamos os irmãos e os rapazes da terra), começa a assustar-se, de meter dó. Voltava-se para trás e dava com os olhos infantis e inocentes na figura trágica, sangrenta, de túnica roxa, de cabelos desgrenhados e empastados de sangue, do Senhor dos Desamparados ou Senhor dos Passos; olhava para o ar e dava com os foguetes a ribombar e a estralejar. Que fazer então? Chorar desesperado, desconsoladamente, à espera de dois braços amigos que fossem libertá-lo desse pavor insólito e confrangedor. Mas, em vez desses braços amigos e libertadores, aparecia-lhe pela frente a cara feia e autoritária do Marranicas, auto-encarregado de pôr ordem nos anjinhos, e o medo e as lágrimas e o choro convulso do Fredo iam num crescendo de cortar o coração. Perante tamanha aflição por parte da pobre criancinha, o meu irmão mais velho, o Artur, dá um enorme safanão no Marranicas, que, indiferente ao sofrimento e ao choro convulso da pobre criança, queria obrigá-la a todo o custo a desempenhar até ao fim o seu papel de anjo, pega do Fredo ao colo, retira-o da procissão e consola-o com as palavras, o carinho e os afagos que só um irmão mais velho pode e sabe administrar.
 
À distância dos anos, firmemente creio que Deus, o doce Redentor da humanidade, na sua eterna sabedoria e infinita bondade, lá saberia dar por aceita e cumprida a promessa que a criança inocente tinha sido chamada a cumprir, mercê da incúria involuntária e bem-intencionada de adultos que, num momento de misteriosa e indizível aflição, não tiveram a suficiente lucidez mental para prever que os olhos e os ouvidos de uma criança de entre três e quatro anos poderiam não estar preparados para enfrentar impávidos a figura trágica de um Cristo sangrento e os estrondos fumegantes e furibundos de morteiros descomunais e trovejantes.
                                                                                   
 António Cirurgião
 
 

 

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