Com a publicação, em Março de 2017,
do triplo álbum Triplicate, Bob Dylan completa uma viagem inesperada
pela canção popular americana da primeira metade do século XX.
Aos
seus cinco últimos álbuns — Shadows in the Night (2015)
e Fallen Angels (2016) antecederam Triplicate —, há que juntar Christmas
in the Heart (2009), com canções de Natal, e remontar a Self-Portrait
(1970). Este duplo álbum continha pela primeira vez canções-padrão, os standards,
temas que, pela sua qualidade e popularidade passaram pela voz e pelos
instrumentos de solistas, grupos e orquestras pop, jazz e também clássicas. O
académico dos estudos literários Christopher Ricks analisou Self Portrait
como dedicado, ou resultando, da preguiça, um dos sete pecados mortais que
estariam representados na obra de Dylan, bem como as quatro virtudes cardinais
e as três virtudes teologais (Dylan’s Visions of Sin, 2003). Ricks não
assinala a presença de standards no duplo álbum, uma prática a que Dylan nunca
tinha recorrido, mas poderia fazê-lo por representar o ócio criativo de cantar
outros autores: dez em 24 canções não eram de Dylan. Se a sua carreira de intérprete
começou com uma homenagem a Woody Guthrie logo no primeiro álbum (Bob Dylan,
1962), nele já constavam composições originais. O segundo álbum, The
Freewheelin’ Bob Dylan (1963) era integralmente constituído por originais
de Dylan (acrescidos de um tema popular), uma prática criativa que só se
interrompeu com algum significado em Self Portrait (1970), no qual
interpretava Irving Berlin (“Blue Moon”), mas também Paul Simon (“The Boxer”).
O álbum natalício incluía canções pop ignoradas, mas também temas canónicos.
O
regresso em força de Dylan aos standards não é, porém,
preguiça. No até agora único de dois volumes das suas memórias (Chronicles,
2004), Dylan recordava, dos seus anos de iniciação em Nova York, o contacto com
standards, como gostava deles, como o influenciaram numa época em que ele era
uma esponja da cultura popular e erudita, principalmente dos séculos XIX e XX.
Essa menção não foi, a meu ver, um acaso.
Os
standards são umas poucas centenas de canções, quase todas da
primeira metade do século XX, que, no seu conjunto, são conhecidos como “Great American Songbook”. Foram criadas
para a espectáculos da Broadway e de Harlem, para algumas big bands de
jazz e para Hollywood, logo no início dos anos 30. Algumas foram criadas para
publicação em partitura ou para um intérprete específico. Um dos aspectos que
singulariza os standards é serem canções de grande qualidade musical (letra, música,
ou ambas) e terem sido, na esmagadora maioria, muito populares. A avaliação da
sua qualidade musical ficou definitivamente estabelecida por Alec Wilder no
livro American Popular Song: The Great Innovators 1900-1950 (1972); a
qualidade literária das letras, que Wilder também refere, foi analisada, por
exemplo, por Philip Furia em The Poets of Tin Pan Alley: A History of
America’s Great Lyricists (1990). Os principais compositores de standards são,
consensualmente, Jerome Kern, Irving Berlin, George Gershwin, Richard Rogers,
Cole Porter, Harold Arlen, Vincent Youmans, Arthur Schwartz, a que se devem
juntar autores como W. C. Handy, Burton Lane, Hugh Martin, Vernon Duke, Hoagy
Carmichael, Walter Donaldson, Harry Warren, Isham Jones, Jimmy McHugh, Richard
Whiting, Rube Bloom, Duke Ellington, Fats Waller, Jimmy Van Heusen e, mais
recentemente, Burt Bacharach e Stephen Sondheim.
Outra
característica
dos standards deriva da sua referida qualidade: dezenas, para não dizer
centenas de intérpretes, cantaram, tocaram e gravaram versões (hoje conhecidas
por covers) das mesmas canções, procurando dar um cunho pessoal e
original às suas versões. Basta mencionar Louis Armstrong, Bing Crosby, Billie
Holiday, Lee Wiley, Mabel Mercer, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Nat King
Cole, Frank Sinatra, Peggy Lee, Tony Bennett, Dinah Washington, entre tantos
outros. Os primeiros álbuns — ainda antes dos LPs — inteiramente dedicados a
compositores foram os de Lee Wiley, cada um com temas de Youmans, Berlin, Arlen
e Rogers. A música popular americana, neste período, ficou assim marcada pela
identificação entre as interpretações e os temas dos grandes compositores e
letristas. Os dois pólos são inseparáveis e, neste período, a ordem é arbitrária:
grandes canções para grandes intérpretes; grandes intérpretes para grandes canções.
O
ambiente social, musical, cinematográfico e até político
mudou com a chegada dos anos 60. Os filhos da geração da Guerra queriam, ou
precisavam, de música diferente da dos seus pais e avós. Chegaram Elvis
Presley, The Beatles, Rolling Stones, o rhythm & blues, o rock &
roll — nomes e estilos que simplificam a
menção de outros importantes modelos musicais na revolução musical de então.
Bob Dylan foi um deles e um dos mais importantes. A mudança do gosto da maioria
do jazz e pop-pazz para o rock &roll e o novo pop foi devastador para os
autores e intérpretes da era dos standards. Cantores como Sinatra, Peggy Lee,
Mel Tormé ou Ella Fitzgerald incorporaram canções e arranjos dos novos estilos
no seu repertório com resultados desastrosos. Passada a época da perplexidade,
todos regressaram aos standards, aceitando passar de protagonistas a intérpretes
de standards, ainda geniais, mas de segundo plano em notoriedade e vendas.
A
partir de 1962, Dylan fez a revolução criando o seu próprio
mundo novo musical; acrescentando à composição de música e letras a interpretação
primordial e quase sempre definitiva dos seus próprios temas. A principal
semelhança entre Dylan e os grandes compositores da primeira metade do século
foi o de todos terem criado um cânone que outros cantam e tocam. A obra de
Dylan distingue-se ainda por, diferentemente de todos os outros, ser um cânone
por si só. A quantidade de canções de qualidade — centenas — ou de enorme
qualidade — umas larguíssimas dezenas — entre o milhar que criou até hoje,
singulariza-o na história da música popular e, a bem dizer, na história da música
tout court. Antes dele, e numa época tão diferente, quer a nível musical,
quer de sistema de criação, produção, registo, distribuição, interpretação e
tipo de apresentação pública, só Franz Schubert (1797-1828) criou um
cancioneiro, chamemos-lhe assim, de proporções comparáveis ao de Dylan, quer em
quantidade, quer, mutatis mutandi, em qualidade. Dylan compôs em vários
géneros e em todos eles criou standards: folk, blues, rock, country, religioso,
pop, épico, balada, valsa, etc.
O
que fez Dylan nestes últimos cinco álbuns? Como já referi,
preencheu-os totalmente com standards, a que juntou canções de menor nomeada do
mesmo período que certamente lhe agradaram pelo “tom” da época, por se
ajeitarem ao seu gosto pessoal, ao seu estilo interpretativo e à unidade estilística
de cada álbum. O primeiro dos cinco discos foi preenchido com canções que
Sinatra interpretou, e não sem bons motivos. Sinatra foi um dos mais brilhantes
cantores, para muitos o mais brilhante, do período que coincidiu como os
standards — e os standards contribuíram para Sinatra ser o mestre que foi. Não por
acaso, um autor define standard como uma canção que Frank Sinatra tenha cantado
(Will Friedwald, Sinatra! The Song Is You. A Singer’s Art, 1995). Muita
gente julga e escreve, erradamente, que são “canções de Frank Sinatra”, quando
ele foi “apenas” um dos seus poucos ou muitos intérpretes —pois a esse ponto chega o grau de identificação de
standards com Sinatra. Deste modo, Dylan entrou na sua fase standards
(depois de tantas outras fases) pisando chão seguro. E, de facto, há pelo menos
duas canções no álbum que só por terem sido gravadas por Sinatra e há muito
quase esquecidas se podem considerar standards em sentido amplo (Why Try to
Change Me Now e Full Moon and Empty Arms).
No
segundo álbum
de standards, Fallen Angels, Dylan já não escolheu de acordo com o
modelo Sinatra-standards, muito embora, claro está, Sinatra tenha cantado todas
ou quase todas as canções nele incluídas.
Finalmente,
Triplicate
é o apogeu e, estou em crer, a etapa final da fase standards de Dylan.
Desta vez, três discos, 30 canções. A edição em LPs apresenta-se como um álbum
semelhante aos da era anterior ao LP e ao vinil. Remete para elementos dos álbuns
de discos de 78 rotações, nos tipos tipográficos, no cartão, na encadernação. O
triplo álbum inclui um texto sobre as escolhas e as interpretações incluídas, o
que, julgo, quase nunca aconteceu na longa carreira de Dylan e o aproxima dos
discos de jazz e pop-jazz a partir dos anos 50, quando grandes críticos ou músicos
eram convidados a escrever textos para a contracapa. Quanto ao conteúdo, Dylan
juntou ao grupo restrito de músicos que o acompanhou nos dois álbuns anteriores
arranjos para mais instrumentos, que acrescentam o som de orquestra em vários
temas e, portanto, também o aproximam dum modelo prevalecente nos anos 30-60.
Estas
escolhas, quer no conteúdo musical, quer no embrulho do
produto, são significativas porque são uma assunção total da equivalência desta
fase de Dylan aos criadores dos standards e aos grandes intérpretes da sua época
dourada. Nesse sentido, é legítimo, como faz Tom Piazza no texto que acompanha Triplicate,
analisar as interpretações de Dylan como se fossem de Sinatra, Ella Fitzgerald
ou Sarah Vaughan: pela atenção às letras, pela capacidade de introduzir inflexões
novas neste ou naquele ponto, nesta ou naquela frase, isto é, pela
individualidade estilística do intérprete. Dylan sabe perfeitamente que as suas
interpretações, com a sua voz de um homem vivido de 75 anos, não comparam em
beleza do timbre com as de Sinatra, por exemplo. Mas ele não está nesse
campeonato. Atacando os monstros sagrados do “Great American Songbook” com uma
desarmante humildade, está no campeonato da interpretação original, que
pretende deixar e deixa uma marca de individualidade nos standards — e que se
junta à galeria dos que as cantaram. Numa entrevista ao jornalista televisivo
Walter Cronkite, Frank Sinatra disse: “Espero que um destes dias alguém aprenda
a fazer [a minha arte], para que não morra onde está.” Dylan, que conviveu com
Sinatra nos últimos anos da sua vida, deixa o seu contributo para essa
continuidade.
Um
dos aspectos mais marcantes destes álbuns é a dicção
perfeita, para, como sucedia na época dourada, respeitar as letras e transferir
para os ouvintes a unidade perfeita entre palavras e música nos standards. Pode
dizer-se, sem exagero, que Dylan aplica aqui uma dicção muito mais compreensível
do que nas suas próprias canções ao longo de décadas.
A
escolha das canções em Triplicate segue a dos
dois álbuns anteriores: standards clássicos e outros mais obscuros e
esquecidos. Quanto aos clássicos, nota-se a ausência de temas de George
Gershwin e de Cole Porter, provavelmente por opção de gosto pessoal e por
querer Dylan optar por temas mais esquecidos, sendo aqueles dois compositores
autores de standards ainda hoje dos mais populares na cultura mainstream.
Justifica-se o que Dylan escreveu no seu website sobre Shadows in the Night:
“não me vejo de maneira nenhuma a cobrir [cover] canções em qualquer modo. Já foram
muito cantadas [covered]. Enterradas, na verdade. O que eu e a minha banda
estamos basicamente a fazer é a desenterrá-las [uncovering them]. A tirá-las da
sepultura e a trazê-las à luz do dia”.
Que
o faça
depois dos 70 anos é significativo. Note-se que no universo pop-jazz muitos intérpretes
de topo cantaram até idade avançada (Kay Starr, Maxine Sullivan, Mel Tormé,
Ella Fitzgerald, Bing Crosby, Frank Sinatra, Peggy Lee, Charles Aznavour e
ainda Tony Bennett, que cantou recentemente quando fez 90 anos). O “som ‘velho’”
de cantores de idade avançada na actual
era de cantores miúdos faz parte deste universo jazz e pop-jazz (Will
Friedwald, Jazz Singing: America’s Great Voices from Bessie Smith to Bebop
and Beyond, 1992), mas também doutros estilos (Johnny Cash, Aretha
Franklin, Odetta, John Lee Hooker, Willie Nelson).
Entretanto,
ao gravar meia centena de standards, Dylan faz muito mais do que procurar
revelar a sua maturidade interpretativa como cantor: nas suas palavras, ele
desenterra essas canções. No âmbito da sua carreira, isso
significa pô-las a par das suas ou vice-versa. Dito de outra forma, significa
que Dylan se coloca a si mesmo num fluxo criativo de que ele foi ao mesmo tempo
um involuntário demolidor, com a sua revolução dos primeiros anos da década de
60, mas também um continuador. O que ele nos diz é que a ruptura é menos
importante do que a continuidade: depois de Harold Arlen, Cole Porter ou Irving
Berlin — Bob Dylan. Depois de Sinatra, o homem que cantou os standards dos anos
20-50, Dylan — por mais estranho que pareça — é o homem que faz e canta
standards desde 1962. Cantou primeiro os dele, agora os do “Great American
Songbook”. Esse livro tem dois testamentos, o antigo, pré-Dylan, e o novo, o de
Dylan, também já antigo, mas ambos novos como tudo o que tem qualidade.
Eduardo
Cintra Torres
Caxias,
8 de Abril de 2017
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