sexta-feira, 14 de abril de 2017

Bob Dylan e o Great American Songbook.

 
 

 
Com a publicação, em Março de 2017, do triplo álbum Triplicate, Bob Dylan completa uma viagem inesperada pela canção popular americana da primeira metade do século XX.
         Aos seus cinco últimos álbuns — Shadows in the Night (2015) e Fallen Angels (2016) antecederam Triplicate —, há que juntar Christmas in the Heart (2009), com canções de Natal, e remontar a Self-Portrait (1970). Este duplo álbum continha pela primeira vez canções-padrão, os standards, temas que, pela sua qualidade e popularidade passaram pela voz e pelos instrumentos de solistas, grupos e orquestras pop, jazz e também clássicas. O académico dos estudos literários Christopher Ricks analisou Self Portrait como dedicado, ou resultando, da preguiça, um dos sete pecados mortais que estariam representados na obra de Dylan, bem como as quatro virtudes cardinais e as três virtudes teologais (Dylan’s Visions of Sin, 2003). Ricks não assinala a presença de standards no duplo álbum, uma prática a que Dylan nunca tinha recorrido, mas poderia fazê-lo por representar o ócio criativo de cantar outros autores: dez em 24 canções não eram de Dylan. Se a sua carreira de intérprete começou com uma homenagem a Woody Guthrie logo no primeiro álbum (Bob Dylan, 1962), nele já constavam composições originais. O segundo álbum, The Freewheelin’ Bob Dylan (1963) era integralmente constituído por originais de Dylan (acrescidos de um tema popular), uma prática criativa que só se interrompeu com algum significado em Self Portrait (1970), no qual interpretava Irving Berlin (“Blue Moon”), mas também Paul Simon (“The Boxer”). O álbum natalício incluía canções pop ignoradas, mas também temas canónicos.
         O regresso em força de Dylan aos standards não é, porém, preguiça. No até agora único de dois volumes das suas memórias (Chronicles, 2004), Dylan recordava, dos seus anos de iniciação em Nova York, o contacto com standards, como gostava deles, como o influenciaram numa época em que ele era uma esponja da cultura popular e erudita, principalmente dos séculos XIX e XX. Essa menção não foi, a meu ver, um acaso.
         Os standards são umas poucas centenas de canções, quase todas da primeira metade do século XX, que, no seu conjunto, são conhecidos como “Great American Songbook”. Foram criadas para a espectáculos da Broadway e de Harlem, para algumas big bands de jazz e para Hollywood, logo no início dos anos 30. Algumas foram criadas para publicação em partitura ou para um intérprete específico. Um dos aspectos que singulariza os standards é serem canções de grande qualidade musical (letra, música, ou ambas) e terem sido, na esmagadora maioria, muito populares. A avaliação da sua qualidade musical ficou definitivamente estabelecida por Alec Wilder no livro American Popular Song: The Great Innovators 1900-1950 (1972); a qualidade literária das letras, que Wilder também refere, foi analisada, por exemplo, por Philip Furia em The Poets of Tin Pan Alley: A History of America’s Great Lyricists (1990). Os principais compositores de standards são, consensualmente, Jerome Kern, Irving Berlin, George Gershwin, Richard Rogers, Cole Porter, Harold Arlen, Vincent Youmans, Arthur Schwartz, a que se devem juntar autores como W. C. Handy, Burton Lane, Hugh Martin, Vernon Duke, Hoagy Carmichael, Walter Donaldson, Harry Warren, Isham Jones, Jimmy McHugh, Richard Whiting, Rube Bloom, Duke Ellington, Fats Waller, Jimmy Van Heusen e, mais recentemente, Burt Bacharach e Stephen Sondheim.
         Outra característica dos standards deriva da sua referida qualidade: dezenas, para não dizer centenas de intérpretes, cantaram, tocaram e gravaram versões (hoje conhecidas por covers) das mesmas canções, procurando dar um cunho pessoal e original às suas versões. Basta mencionar Louis Armstrong, Bing Crosby, Billie Holiday, Lee Wiley, Mabel Mercer, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Nat King Cole, Frank Sinatra, Peggy Lee, Tony Bennett, Dinah Washington, entre tantos outros. Os primeiros álbuns — ainda antes dos LPs — inteiramente dedicados a compositores foram os de Lee Wiley, cada um com temas de Youmans, Berlin, Arlen e Rogers. A música popular americana, neste período, ficou assim marcada pela identificação entre as interpretações e os temas dos grandes compositores e letristas. Os dois pólos são inseparáveis e, neste período, a ordem é arbitrária: grandes canções para grandes intérpretes; grandes intérpretes para grandes canções.
         O ambiente social, musical, cinematográfico e até político mudou com a chegada dos anos 60. Os filhos da geração da Guerra queriam, ou precisavam, de música diferente da dos seus pais e avós. Chegaram Elvis Presley, The Beatles, Rolling Stones, o rhythm & blues, o rock & roll  — nomes e estilos que simplificam a menção de outros importantes modelos musicais na revolução musical de então. Bob Dylan foi um deles e um dos mais importantes. A mudança do gosto da maioria do jazz e pop-pazz para o rock &roll e o novo pop foi devastador para os autores e intérpretes da era dos standards. Cantores como Sinatra, Peggy Lee, Mel Tormé ou Ella Fitzgerald incorporaram canções e arranjos dos novos estilos no seu repertório com resultados desastrosos. Passada a época da perplexidade, todos regressaram aos standards, aceitando passar de protagonistas a intérpretes de standards, ainda geniais, mas de segundo plano em notoriedade e vendas.
         A partir de 1962, Dylan fez a revolução criando o seu próprio mundo novo musical; acrescentando à composição de música e letras a interpretação primordial e quase sempre definitiva dos seus próprios temas. A principal semelhança entre Dylan e os grandes compositores da primeira metade do século foi o de todos terem criado um cânone que outros cantam e tocam. A obra de Dylan distingue-se ainda por, diferentemente de todos os outros, ser um cânone por si só. A quantidade de canções de qualidade — centenas — ou de enorme qualidade — umas larguíssimas dezenas — entre o milhar que criou até hoje, singulariza-o na história da música popular e, a bem dizer, na história da música tout court. Antes dele, e numa época tão diferente, quer a nível musical, quer de sistema de criação, produção, registo, distribuição, interpretação e tipo de apresentação pública, só Franz Schubert (1797-1828) criou um cancioneiro, chamemos-lhe assim, de proporções comparáveis ao de Dylan, quer em quantidade, quer, mutatis mutandi, em qualidade. Dylan compôs em vários géneros e em todos eles criou standards: folk, blues, rock, country, religioso, pop, épico, balada, valsa, etc.
         O que fez Dylan nestes últimos cinco álbuns? Como já referi, preencheu-os totalmente com standards, a que juntou canções de menor nomeada do mesmo período que certamente lhe agradaram pelo “tom” da época, por se ajeitarem ao seu gosto pessoal, ao seu estilo interpretativo e à unidade estilística de cada álbum. O primeiro dos cinco discos foi preenchido com canções que Sinatra interpretou, e não sem bons motivos. Sinatra foi um dos mais brilhantes cantores, para muitos o mais brilhante, do período que coincidiu como os standards — e os standards contribuíram para Sinatra ser o mestre que foi. Não por acaso, um autor define standard como uma canção que Frank Sinatra tenha cantado (Will Friedwald, Sinatra! The Song Is You. A Singer’s Art, 1995). Muita gente julga e escreve, erradamente, que são “canções de Frank Sinatra”, quando ele foi “apenas” um dos seus poucos ou muitos intérpretes —pois  a esse ponto chega o grau de identificação de standards com Sinatra. Deste modo, Dylan entrou na sua fase standards (depois de tantas outras fases) pisando chão seguro. E, de facto, há pelo menos duas canções no álbum que só por terem sido gravadas por Sinatra e há muito quase esquecidas se podem considerar standards em sentido amplo (Why Try to Change Me Now e Full Moon and Empty Arms).
         No segundo álbum de standards, Fallen Angels, Dylan já não escolheu de acordo com o modelo Sinatra-standards, muito embora, claro está, Sinatra tenha cantado todas ou quase todas as canções nele incluídas.
         Finalmente, Triplicate é o apogeu e, estou em crer, a etapa final da fase standards de Dylan. Desta vez, três discos, 30 canções. A edição em LPs apresenta-se como um álbum semelhante aos da era anterior ao LP e ao vinil. Remete para elementos dos álbuns de discos de 78 rotações, nos tipos tipográficos, no cartão, na encadernação. O triplo álbum inclui um texto sobre as escolhas e as interpretações incluídas, o que, julgo, quase nunca aconteceu na longa carreira de Dylan e o aproxima dos discos de jazz e pop-jazz a partir dos anos 50, quando grandes críticos ou músicos eram convidados a escrever textos para a contracapa. Quanto ao conteúdo, Dylan juntou ao grupo restrito de músicos que o acompanhou nos dois álbuns anteriores arranjos para mais instrumentos, que acrescentam o som de orquestra em vários temas e, portanto, também o aproximam dum modelo prevalecente nos anos 30-60.
         Estas escolhas, quer no conteúdo musical, quer no embrulho do produto, são significativas porque são uma assunção total da equivalência desta fase de Dylan aos criadores dos standards e aos grandes intérpretes da sua época dourada. Nesse sentido, é legítimo, como faz Tom Piazza no texto que acompanha Triplicate, analisar as interpretações de Dylan como se fossem de Sinatra, Ella Fitzgerald ou Sarah Vaughan: pela atenção às letras, pela capacidade de introduzir inflexões novas neste ou naquele ponto, nesta ou naquela frase, isto é, pela individualidade estilística do intérprete. Dylan sabe perfeitamente que as suas interpretações, com a sua voz de um homem vivido de 75 anos, não comparam em beleza do timbre com as de Sinatra, por exemplo. Mas ele não está nesse campeonato. Atacando os monstros sagrados do “Great American Songbook” com uma desarmante humildade, está no campeonato da interpretação original, que pretende deixar e deixa uma marca de individualidade nos standards — e que se junta à galeria dos que as cantaram. Numa entrevista ao jornalista televisivo Walter Cronkite, Frank Sinatra disse: “Espero que um destes dias alguém aprenda a fazer [a minha arte], para que não morra onde está.” Dylan, que conviveu com Sinatra nos últimos anos da sua vida, deixa o seu contributo para essa continuidade.
         Um dos aspectos mais marcantes destes álbuns é a dicção perfeita, para, como sucedia na época dourada, respeitar as letras e transferir para os ouvintes a unidade perfeita entre palavras e música nos standards. Pode dizer-se, sem exagero, que Dylan aplica aqui uma dicção muito mais compreensível do que nas suas próprias canções ao longo de décadas.
         A escolha das canções em Triplicate segue a dos dois álbuns anteriores: standards clássicos e outros mais obscuros e esquecidos. Quanto aos clássicos, nota-se a ausência de temas de George Gershwin e de Cole Porter, provavelmente por opção de gosto pessoal e por querer Dylan optar por temas mais esquecidos, sendo aqueles dois compositores autores de standards ainda hoje dos mais populares na cultura mainstream. Justifica-se o que Dylan escreveu no seu website sobre Shadows in the Night: “não me vejo de maneira nenhuma a cobrir [cover] canções em qualquer modo. Já foram muito cantadas [covered]. Enterradas, na verdade. O que eu e a minha banda estamos basicamente a fazer é a desenterrá-las [uncovering them]. A tirá-las da sepultura e a trazê-las à luz do dia”.
         Que o faça depois dos 70 anos é significativo. Note-se que no universo pop-jazz muitos intérpretes de topo cantaram até idade avançada (Kay Starr, Maxine Sullivan, Mel Tormé, Ella Fitzgerald, Bing Crosby, Frank Sinatra, Peggy Lee, Charles Aznavour e ainda Tony Bennett, que cantou recentemente quando fez 90 anos). O “som ‘velho’” de cantores de idade avançada na actual  era de cantores miúdos faz parte deste universo jazz e pop-jazz (Will Friedwald, Jazz Singing: America’s Great Voices from Bessie Smith to Bebop and Beyond, 1992), mas também doutros estilos (Johnny Cash, Aretha Franklin, Odetta, John Lee Hooker, Willie Nelson).         
         Entretanto, ao gravar meia centena de standards, Dylan faz muito mais do que procurar revelar a sua maturidade interpretativa como cantor: nas suas palavras, ele desenterra essas canções. No âmbito da sua carreira, isso significa pô-las a par das suas ou vice-versa. Dito de outra forma, significa que Dylan se coloca a si mesmo num fluxo criativo de que ele foi ao mesmo tempo um involuntário demolidor, com a sua revolução dos primeiros anos da década de 60, mas também um continuador. O que ele nos diz é que a ruptura é menos importante do que a continuidade: depois de Harold Arlen, Cole Porter ou Irving Berlin — Bob Dylan. Depois de Sinatra, o homem que cantou os standards dos anos 20-50, Dylan — por mais estranho que pareça — é o homem que faz e canta standards desde 1962. Cantou primeiro os dele, agora os do “Great American Songbook”. Esse livro tem dois testamentos, o antigo, pré-Dylan, e o novo, o de Dylan, também já antigo, mas ambos novos como tudo o que tem qualidade.
        
Eduardo Cintra Torres
Caxias, 8 de Abril de 2017
           

 
 

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