sábado, 8 de abril de 2017

Memórias Perdidas - 17




 
 
         Suculentíssimas memórias perdidas, estas de Raúl Morais. O autor, é certo, por vezes força a nota ruralista, retratando porventura a traços demasiado carregados, grossos ou grosseiros, o viver na sua terra de Izeda, e a boçalidade circundante. Muita expressão d’antanho, muito regionalismo, muita prosa ao estilo telúrico aquiliniano ou torguiano, mas um portentoso testemunho autobiográfico. Outra coisa não seria de esperar de quem, nos idos de 1977, publicara o livro de poesia Auto do Custo da Penúria da Vida do Povo, um ano depois de ter participado na antologia lírica J. C. Falhou um Penalty. Na crónica, Sermões às Fragas, do mais recente 2000, e a monografia erudita Izeda – Pedaços da sua História, de 1996.
         O livro é dedicado aos seus pais, apresentando-se o autor, com louvável humildade, como um «obscuro garatujador de Izeda». Seu pai era ferreiro de profissão, na senda de familiar tradição de «ferreiros, mui valentes, amigos da pinga, com propensão para a poesia repentista uns, e para a filosofia nua e crua outros». Órfão ainda criança, o pai de Raúl aprendeu o ofício em Macedo de Cavaleiros. Por seu turno, a mãe, Delmira de Jesus (segundo os registos, mas Belmira na voz do povo), era natural de Carocedo. «Aos vinte anos, um rapaz de Parada armou-lhe um filho», Norberto, meio-irmão de Raúl. Ainda jovem, já mãe, Delmira/Belmira veio para Izeda, para criada do Dr. Valente e depois do Padre António. Antes estivera em Bragança, como ama de um menino de filha rica, chamado Raúl. Daí ter dado este nome ao filho do homem com quem depois se casou, corria o ano de 1943: Zé Ferreiro, de Izeda. Casado o casal, foi este viver para a casa de um homem chamado João Baptista Rodrigues, de alcunha o Maça, sendo aí que Zé Ferreiro instalou a sua fornalha-oficina.
         Raúl conheceu apenas um dos seus tios paternos, João Pedro, que, apesar de pouco dado a missas e padres, veio em 1967 de terras de França. Motivo: pagar uma promessa à Senhora do Aviso. Recuemos no tempo para lembrar que, quando Raúl nasceu, uma mulher desconhecida entrou na casa paterna, deitando-lhe mau-olhado. Nunca mais se ouviu falar daquela mulher malfazeja, mas Raúl, desde então, virou bicho – testemunho dado, muitos anos depois, por seu vizinho e amigo, Sr. Sousa Pinto, distinto mestre da Banda de Música da Colónia Correccional de Izeda. Os pais de Raúl, como é natural, ficaram aterrados com os desmandos do seu menino, e acabaram por ir consultar o Padre João de Baqueixe, dado «os padres de Izeda não se darem a tais práticas». O Padre João passou um escrito e logo os berreiros do petiz Raúl pararam naquele preciso instante, preparando-se no acto o baptismo da criança, que teve como padrinho o Sr. Alferes Caseiro que, entre múltiplas actividades, foi correspondente do jornal O Século.
         A mais antiga recordação de infância de Raúl é uma briga na taberna da tia Elisa Pinga – e crê-se não ser preciso dizer mais nada. Tudo não passou de uma refrega das fortes entre o meio-irmão de Raúl, Norberto, e o Zé Pereira, o «Zirra». Mas, chamada a mãe de Norberto, logo ali se concluiu não passar tudo de uma brincadeira de rapazes. E assim se passou a infância de Raúl, idade feliz. Seu pai era «um bom-serás», calmo, tranquilo, que só uma vez lhe pregou duas cinturadas por não querer beber o caldo. Um homem regrado, Zé Ferreiro: até ao meio-dia, só bebia aguardante; depois disso, voltava-se para o vinho. No Verão de 1954, Zé Ferreiro caiu a um poço, por acidente ou azar. Buscou internamento, cuidado hospitalar, indo ao ponto de, para o efeito, escrever ao doutor Salazar. Surtiu efeito o expediente, pois enviada a missiva e era Zé Ferreiro internado no Sanatório das Penhas da Saúde, Serra da Estrela. Libertado do sanatório, cometeu Zé Ferreiro um deslize fatal. Sabendo que o Benfica – o Benfica de Colunas, Águas e Costa Pereira – se deslocava à Covilhã para defrontar o clube local, fez-se Zé Ferreiro à estrada. Contemplou os seus ídolos, mas morreu do esforço.
         Sendo a vida madrasta, os amigos de Zé Ferreiro foram rareando com o avançar da doença e subsequente passamento. Até o barbeiro da terra, o Francisco Xaráco, logo se esquivou a fazer-lhe a barba e a cortar-lhe o cabelo. Raúl ia anotando num caderno os nomes dos (poucos) amigos que nunca o abandonaram. Foram eles o Ti Francisco Quaresma, o Amadeu Estanislau, o Fermentãos, o Sabino Rato, o Sr. Francisco Veiga. Para que conste.
         Aos poucos, Raúl ia crescendo, em corpo e sabedoria. Pouca informação chegava à Izeda da época. Televisão, nada. Rádios? Os da Casa do Povo, do Quartel da Guarda Republicana, do Sousa Pinto e do Deodoro Touças (do Botequim). A este último teve Raúl de dizer que era adepto do Porto para que pudesse ouvir os relatos. Diferente e mais ecuménica atitude era a do Sr. Sousa Pinto, que a 13 de Maio colocava o rádio na varanda para que as pessoas escutassem a transmissão das celebrações litúrgicas de Fátima. Chegava a vir gente das aldeias vizinhas. Alguns julgavam que quem falava estava dentro do aparelho de rádio, por certo acomodado numa posição algo desconfortável. Outro pretexto de convívio, bem mais profano, eram os dias de feira, altura em que vários tendeiros do Campo de Víboras pernoitavam em casa dos pais de Raúl; eram eles a Tia Branca, o «Coimbrês» (assim chamado por ser da zona de Coimbra, mais precisamente de Figueiró dos Vinhos), o Manuel Nato, o António Cinzel, etc. Para brincadeiras infanto-juvenis, diz Raúl com graça, tinham vários estádios olímpicos ao seu dispor: o largo sobranceiro à Escola, o caminho ao lado do Cemitério, o Largo do Toural, a eira de Vilarelhos e a do tio Antero, o Salgueiro, o Cruzeiro, a Santa Catarina, os Pelames, o Adro e o campo da bola da Colónia. O cabo dos trabalhos era quando escolhiam para recinto desportivo o adro da igreja. O Ti João Sacristão não perdoava a canalha, dando-lhe «umas boas lapadas, autênticos ferrungões». Depois de os sovar, corria-os à pedrada, quando já iam em fuga pelo quintal do Sr. Fernandes. Andou Raúl na escola, pois claro. No entanto, chegado à terceira classe, como foi o único da turma a conseguir resolver um problema complexo (de aritmética?), o Prof. Oliveira carregou forte e feio nos colegas de Raúl, que o ameaçaram à séria se acaso tivesse a veleidade de voltar os pés na escola. Destacaram-se na acção punitiva o Júlio Anes e o Fernando Teles. Mas Raúl, sabe-se lá por que bulas, conseguiu concluir a instrução primária, cujo diploma reproduz neste seu Álbum de Saudades.
         Feita a instrução primária – e com grande pena do próprio –, foi Raúl empregado numa latoaria, como aprendiz de João Herculano Santos, «Petisco». Antes disso, ainda tentou ser sapateiro, com mestre Fernando Ribeiro, pois sua mãe considerava os ofícios de ferreiro e carpinteiro demasiado puxados para a débil constituição física de seu filhinho. E o resto se passou entre a aprendizagem da latoaria, as apanhas furtivas de cerejas no mês de Maio, os jogos de damas com o vizinho Gualter Ramiro Venâncio Correia, a sueca batida, os bilhares do Ti João Cidres e do Ti Manuel Félix e sobretudo, por cima de tudo, os matraquilhos. Lembra-se Raúl de, numa noite, estar a jogar os matrecos das 22 horas às 8 da manhã do dia seguinte, numa maratona em que foi acompanhado pelo Nazero, pelo irmão deste, o Galo, e pelo Luís Laurindo. À época, já Raúl era um dos rapazes mais corpulentos da sua criação, força que brotava do corpo mas também do espírito. Iniciou as primeiras quadras, no encalço da tradição familiar («herdei esta vocação de meus avós, todos analfabetos»). Deveu o despertar desta veia lírica a um antigo professor, Armando Couto, que lhe deu a conhecer os versos de Cesário Verde. Nasceu um poeta. A par disso, um leitor ávido, que aos onze anos herdara de seu irmão – que foi para Angola em 1958 – um velho volume descapado de O Fidalgos da Casa Mourisca; além de um fato de corpo inteiro, com que fez exame de quarta classe na Escola da Estação de Bragança. Ah, e um tabuleiro de damas, para as horas de ócio. Muitas delas passadas na companhia do vinho ou doutras bebidas mais carregadas, responsáveis por «monumentais bebedeiras» − «protagonizei brutalidades contra mim mesmo que deixavam as do Flávio Bumba envergonhadas». Que brutalidades perpetrou Flávio Bumba é algo que o autor, com decoro, deixa na penumbra. Mas certo e sabido, porque ele o confessa, é que um dia apanhou uma bebedeira que durou quinze dias, por alturas de uma passagem de ano mais celebrada. Não admira, pois, que estivesse apto para assumir o cargo de ajudante de Duarte Ferreiro, que era ferreiro. E também não admira que um dia, numa arranca de batatas na horta de Golpilheiras, na companhia de sua irmã, do tio António Catarino e do Soquinha, haja ajoujado tanto o burro de carga que este caiu, inerte e triste.
         Chegava o tempo da ida às sortes. Por estas memórias se tem uma pálida ideia da importância do serviço militar obrigatório. «Quando fui para a tropa só tinha andado uma vez de comboio» (de Rossas para Bragança, na companhia do seu tio João Pedro). A tropa fez um homem de quem até aí era, nas suas próprias palavras, «acanhado por natureza». Teve atritos (e amizades) logo à entrada, quando receberam os mancebos do Norte:
         «- Cá estão os gajos da terra do “prejunto”.
         - Queres “prejunto”, queres, sacana?»
        
         A partir daí, houve de tudo: um castigo que obrigou Raúl e o seu pelotão a ficarem de pé, em sentido, até às duas da manhã; um bilhete para o Braga e o Benfica. A história é deliciosa: o capelão prometeu sortear entradas para o jogo entre os mancebos que fosse à missa… Raúl teve a ventura de, graças a isso, ir assistir a uma disputa com Eusébio, Simões e Coluna. Também confessa ter tido sorte com o seu comandante de pelotão, o aspirante Laranja. O mesmo se não dirá, quando já estava em Tancos, com o capitão para-quedista Perestrelo («um homem desumano»), compensado em bondade pelo capitão Pelicano («um homem humano»). Em Tancos, Raúl Morais entregou-se de alma e coração ao halterofilismo, indo ao ponto de furtar uns halteres da base aérea, levando-os para Izeda. Mais grave foi o caso de um atentado com explosivos colocados no hangar por um activista do PCP, o que, além de prejuízos de milhares de contos, levou a PIDE a investigar o caso; nada tendo a ver com o assunto, Raúl acaba por ser interpelado, sem danos de maior. Pôde, então, entregar-se ao convívio com os seus camaradas d’armas, entre os quais se destacava o portentoso Corrêa, menino que fumava nada mais nada menos do que oito maços de cigarro/dia, além de estoirar motorizadas graças à choruda mesada que seu pai lhe dava.
         No dia 1 de Julho de 1971, Raúl Morais faz a trouxa, entrega-a na base e reingressa na vida civil. Pouco depois, despede-se de sua mãe, desfeita em lágrimas, e vai para França, a salto. Em Paris, vai pernoitar a casa do cunhado, em Neuilly Plaisance. Começa a trabalhar numa «fabriqueta de farrapos velhos», onde o seu chefe, um espanhol curtido por anos de emigração, o tratava mal. Daí passa para uma fábrica de móveis. Propriedade de um velho italiano. «Parecia a Organização das Nações Unidas», espanta-se o moço de Izeda ao ver que ali trabalhavam portugueses, franceses, espanhóis, italianos, jugoslavos, árabes, africanos. Na secção das cadeiras trabalhavam várias mulheres portuguesas e «o chefe era um preto vaidoso e prepotente», que as tratava mal. Raúl meteu-se ao barulho, pondo-o na ordem devida. Nestas memórias, curiosamente, todos os chefes ou capatazes das fábricas de França são retratados como desumanos e abusadores, desprezando Raúl, acima de tudo, um encarregado de obras de origem argelina que maltratava os seus operários.
         O 25 de Abril apanha-o em França. O nosso memorialista só regressa de Paris em Julho de 1974, mas já lá vamos. Antes disso, começara a sua carreira literária, indo ao ponto de escrever ao Ministro da Educação, na altura Veiga Simão, solicitando apoio oficial para publicação de um livro de poemas. Corre tudo, no seu afã publicador. Escreve à Gulbenkian, a jornais clandestinos da oposição, todos lhe fecham as portas, Acabará por escrever dois artigos no jornal Fronteira, publicado em Bruxelas, que só mais tarde soube pertencer à LUAR. Uma fotografia de 1975, no entanto, mostra-o em plena actividade cultural-revolucionária, em Macedo do Mato, com Francisco Fanhais e Zeca Afonso, entre outros.
         Em 1975, Raúl Morais filia-se no Partido Socialista, sendo coordenador da secção local, que contava com 100 inscritos. O presidente da junta, Domingos Manuel Rodrigues, homem do antigo regime desencantado com a revolução, deixara de mandar proceder à limpeza do largo da feira. Logo Raúl e alguns camaradas se juntam para proceder à limpeza – ou, melhor dizendo, para quem o fizesse, por vinte escudos. E o povo começou a dizer: «O Raúl é que era a pessoa indicada para presidente da Junta». Meu dito, meu feito. Realizadas as eleições na Escola, é escolhida a comissão administrativa, com Raúl Morais à presidência, José Fernando Cameirão como secretário e Amílcar Augusto Gonçalves como tesoureiro. Les jeux sont faits.
         A partir daí, foram três mandatos como presidente da Junta de Freguesia e uma vasta obra literária, em verso. Como nos finais felizes, um casamento. Celebrado a 1 de Janeiro de 1977, na Capela de Santo Apolinário. Chovia a cântaros, o noivo ficou todo enlameado, mas contente com a sua noiva, Ilda de Jesus Brás, oriunda de famílias ainda mais pobres do que a de Raúl. Do enlace nasceu e cresceu uma filha, Marília, e assim se conta, a pinceladas muito largas, os trabalhos e os dias de Raúl Morais, álbum de saudades.
 
António  Araújo  
      
 
  
 
                  
 

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