Geralmente,
nesta rubrica Memórias Perdidas
fala-se de gente desconhecida, anónimos que quiseram legar à posteridade – e
sob a forma de livro! – as marcas da sua existência efémera. Não é o caso destas
Digressões Autobiográficas. O autor,
Fernando Aguiar-Branco, foi uma figura pública sobejamente conhecida, nos meios
forenses e não só. Foi um homem do Norte – o que, só por si, define um carácter,
pelo menos para quem se assume como tal., na inteireza do seu modo de ver o mundo. Aguiar-Branco, aliás, parece ter
interiorizado essa premissa, assimilando uma noção íntima, pessoal e intransmissível,
de honra. Talvez alguns a considerem
antiquada, passadista. Mas ela atravessa de fio a pavio estas memórias da sua
vida, a um ponto tal que a podemos considerar o eixo à roda do qual tudo o
resto gira, tudo anda e se move, em ritmo compassado. Como se disse, esta noção de pundonor poderá
parecer antiquada; mas, em várias ocasiões, Fernando Aguiar-Branco confessa
sentir orgulho – honra, diríamos nós – em ser antiquado, até no que ao vestuário
tange. Um dia, após o 25 de Abril, cruzou-se no Chiado com o general Câmara Pina,
«e ambos íamos vestidos à moda antiga». O general de chapéu, o causídico com
fato de três peças. Em quase todas as fotografias o vemos assim, quase dando a
impressão, porventura acertada, que até aos domingos o Dr. Aguiar-Branco
apertava o nó da gravata distinta.
Quanto
ao mais, que mais interessa, o percurso de vida de um advogado, de alguém que
sempre sonhou cursar Direito, seguindo a tradição familiar que anos volvidos
transmitirá aos seus filhos. Os pais, diz, «dominavam briosamente o português»,
não admirando por isso que estas Digressões
Autobiográficas estejam muitíssimo bem escritas, num estilo refinado e
elegante, que acusa, aqui e acolá, a formação jurídica do autor, o qual não
desdenha utilizar de quando em vez um ou outro termo próprio do jargão das
comarcas e das peças judiciais.
Porventura
com excesso de humildade (ou desarmante e invulgar honestidade), confidencia ter
sido um sofrível aluno da instrução primária – ou pior do que isso. Mesmo no
liceu ou na Faculdade (de Coimbra, pois claro), Fernando Aguiar-Branco não se
terá distinguido como um estudante de excepção, segundo o relato do próprio.
Conquistou direito a acomodar-se na República dos Kágados e o seu nome chegou a
ser ventilado para presidente da Associação Académica. Não tem pejo em
confessar que, aquando da eleição para a presidência dessa ilustre agremiação,
foi o único a votar contra o nome de Francisco Salgado Zenha. E de braço no ar, à vista de todos. Como, de resto,
não tem problemas em proclamar-se admirador de Salazar, entusiasta da Mocidade
Portuguesa (onde obteve alta graduação), crítico da mudança de nome da Ponte
Salazar para Ponte 25 de Abril – sustentava que a Revolução dos Cravos nada
fizera pela ponte, razão evidente para que esta, ao menos, fosse rebaptizada
tão-só como «Ponte Sobre o Tejo». Também critica o facto de as estátuas ou referências a Salazar e a outras figuras do Estado Novo praticamente terem desaparecido da paisagem portuguesa, rural mas sobretudo urbana.
Desengane-se,
porém, quem julgar que estamos perante um saudosista do antigo regime. Fernando
Aguiar-Branco mostra-se um conservador-liberal, que defendia a ordem de outrora mas não
deixou, na altura certa, no tempo que exigia coragem, de reclamar contra certos
atropelos à liberdade. Foi deputado à Assembleia Nacional, mas entraria em
conflito com Marcello Caetano – e, uma vez mais, por uma questão que, segundo
ele, não era tanto política quanto de cortesia epistolar.
Estamos
perante o retrato de um membro da burguesia nortenha, mesclada com aquilo que
restava e resta da fidalguia de província, com casas solarengas e quintas
verdejantes. Nasceu em Coimbra, na freguesia de Almedina, por um acaso
académico: seus pais cursavam as Faculdades de Direito e de Letras. O pai de
Fernando, ao contrário do filho, não tinha vocação de jurista, razão pela qual
abandonou a prática do Direito, dedicando-se ao ensino – do português e do
latim –, tendo produzido dois dicionários que, durante anos, foram obras de
referência para gerações inteiras. Também sua mãe – personalidade fortíssima,
pelo que percebemos – foi publicando manuais escolares, no domínio das línguas (português,
francês, inglês). É aliás a referência materna que, aparentemente, prepondera
na trajectória de Fernando Aguiar-Branco e, antes dele, de seus pais: «não
havendo família do lado paterno, a vivência de meus Pais e filhos veio a
desenrolar-se, a partir de 1925, nas terras de onde era oriunda a família de
minha Mãe: na região do Minho (Vila Nova de Famalicão e Guimarães) e, de
passagem, em Montalegre».
Após
passar pelo liceu Alexandre Herculano e pelo Colégio Almeida Garrett (onde foi
marcado profundamente pelas lições de Filosofia do Padre Avelino Soares),
Fernando segue para a Lusa Atenas. A sua estada em Coimbra foi passada na
República dos Kágados, como se disse, e Fernando não foi, a crer nas suas
palavras, um estudante brilhante. Mas, do mesmo passo, não se entregou à boémia. Cumpriu o curso, entre colegas
que, segundo ele, eram maioritariamente «filhos de proprietários agrícolas, de
funcionários públicos e da média burguesia». E acrescenta: «destes extractos
sociais provinham os estudantes de Coimbra, na busca de uma licenciatura que
lhes emprestaria prestígio social e também melhorias patrimoniais». Na época,
uma das funções mais almejadas era a magistratura judicial, que, apesar do
sacrifício da eterna errância de comarca em comarca, compensava os juízes com
«o respeito, a todos os títulos merecido, que lhes tributavam as populações e
os poderes públicos». O mundo de ontem.
A
dada altura do curso, pensou Fernando empregar-se numa empresa pública, prática
que, segundo ele, era muito seguida na época por colegas seus do curso liceal,
oriundos de «boas famílias». Empregavam-se na Gazcila ou na Sacor com o pomposo
nome de «inspectores» e tinham vida feliz, com elevada remuneração e pouco
trabalho a fazer. A tentação era grande, mas a mãe cortou-a cerce. Para as
despesas do curso, em lugar de se empregar, passou o jovem Fernando a contar
com uma mesada do seu tio-avô Félix, sacerdote e conservador do Registo Predial
em Santo Tirso. Por intermédio do doutor Abel Andrade, lente da Faculdade de
Direito, enviava o tio Félix para Coimbra a mesada de Fernando; fazia-o por vale
postal, «pois não era homem de cheques». Mais: «habituara-se, como era próprio
de seu tempo, a pagar tudo em moeda corrente. Confiava pouco nos bancos.
Receava que falissem». O mundo de hoje.
Tendo
apoiado os nacionalistas na Guerra Civil de Espanha, Fernando alinhou com os
Aliados durante a 2ª Guerra, que viveu intensamente em Coimbra. Nessa altura –
mais precisamente, em 1943 – foi sondado para «aderir ao comunismo», convite
que declinou de imediato, e com veemência. A aversão ao comunismo, como se
depreende destas memórias, prolongar-se-ia pelos anos fora, porventura até à
morte. Era um homem da «direita moderada e conservadora, que respeita e defende
os direitos e garantias fundamentais dos homens e dos povos e que repele os
regimes totalitários».
Terminado
o curso, regresso ao Porto. «A cidade do Porto, na década de quarenta, era
ainda um burgo pequeno e com mentalidade e hábitos de vida bastante rurais.
Todos se conheciam e sabia-se, com facilidade, por ser patente, quem era
abastado, intelectual, político, profissional de relevo ou influente por
qualquer outro motivo. A cidade vivia na dependência de meia dúzia de famílias,
com poderes de influência». Terá mudado assim tanto, a Invicta?
Uma
fotografia mostra-o a percorrer as ruas da cidade, impecavelmente hirto, de
chapéu na cabeça e pasta na mão. Já um senhor, com apenas 25 anos de idade. Era então
funcionário da Câmara Municipal do Porto, onde, segundo ele, «a rotina e a
responsabilidade reinavam». O horário era contínuo: entrava-se às 11 da manhã e
saía-se às 5 da tarde, sem intervalo para almoço. Mas, chegando a uma da tarde,
claro está, cada um sacava da sua marmita e lá ia matando a fome, em horário de
expediente; o odor e a higiene das salas de trabalho, naturalmente,
ressentiam-se desta prática, para horror do jovem e ordeiro Fernando. Logo que pôde, partiu
dali. Sabendo da existência de uma vaga no Instituto Nacional do Trabalho e
Previdência, concorreu ao lugar, beneficiando do apoio pessoal do Dr. Veiga de
Macedo que lhe prometeu ir interceder junto de Oliveira Salazar. Se o fez ou não, não
sabemos – mas o autor tem o cuidado de nos informar que, havendo candidatos
mais classificados academicamente e que contavam com o apoio de cinco
governadores civis, foi ele quem acabou por ser nomeado, corria o ano de 1948. A
seguir, a vida do foro e, em resultado dela, a presidência da Fundação António
de Almeida.
Católico,
nunca se aproximou do CADC de Coimbra, que considerava demasiado conservador
para seu gosto. Não admira, pois, a ligação que depressa estabeleceu com D.
António Ferreira Gomes, mal este assumiu os destinos da diocese do Porto (e, mais tarde, com D. Manuel Martins).
Estávamos em 1952, anos antes da famosa carta ao Presidente do Conselho. Aguiar-Branco
mostra-se aqui um liberal, no sentido portuense da palavra, e essa marca é
visível quando integrou os órgãos directivos da Ordem dos Advogados na cidade
do Porto, promovendo conferências e palestras de nomes como Francisco Sá
Carneiro, Francisco Salgado Zenha, Figueiredo Dias, Eduardo Correia, José
Beleza, Rui Alarcão ou Mota Pinto. Previa-se uma conferência de outro advogado,
Jorge Sampaio. Estava agendada para o dia 25 de Abril de 1974...
A
revolução apanha Fernando Aguiar-Branco em Lisboa, onde se encontrava hospedado
no Hotel Avenida Palace. Logo que pode, ruma ao Porto, confortado por saber que
o golpe não implicava «domínio comunista» do país. «A partir da revolução, a
minha acção política terminou», diz Aguiar-Branco; ainda assim, integrará as
comissões de candidatura de Mário Soares e, depois, de Jorge Sampaio. A sua
vida concentrava-se agora na Fundação António de Almeida. As últimas reflexões
do seu livro são dedicadas a questões filosóficas sobre Deus, a vida, a morte.
E assim terminam estas digressões autobiográficas, retrato de uma existência
passada, como um dia será a de quem acabou de ler estas linhas.
António Araújo
Escapou-me aqui qualquer coisa... que fez o senhor de notável na vida, para além de andar de chapéu de três peças?
ResponderEliminarEscapou-me aqui qualquer coisa... que fez o senhor de notável na vida, para além de andar de chapéu de três peças?
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