sexta-feira, 7 de abril de 2017

Memórias Perdidas - 16


 






Foi, de facto, uma vida tricontinental, esta de António Martins Rachinhas.
Nascido no concelho de Águeda (mais precisamente, em Aguieira, freguesia de Valongo do Vouga) em 13 de Fevereiro de 1937, António Rachinhas, nestas suas memórias, e porventura com a ajuda de um grande genealogista, reconstituiu a sua árvore de costados até 1530. Não se julgue, porém, que é seu intuito reivindicar pergaminhos nobiliárquicos ou reclamar títulos de fidalguia. Depois de apresentar os seus antepassados remotos, António fala-nos da sua parentela próxima, como seu avô, «um humilde lavrador», que sempre se recusou em vender um pinhal chamado «Os Carvalhos do Rachinhas». Se o fizesse, dizia, era o mesmo do que vender o nome da família. Seu pai, Manuel Ferreira Rachinhas, toda a vida foi carteiro; diariamente, fizesse chuva ou sol, o Sr. Rachinhas percorria de bicicleta 50 quilómetros, nas freguesias de Aguada de Cima e de Belazaima do Chão; um pormenor enternecedor: para entrar nos quadros dos CTT, teve Manuel de fazer exame da 4ª classe, pois só havia na infância dura concluído a 3ª classe – o filho António ajudou-o na matéria em que tinha mais dificuldades, as contas da Aritmética. Em contrapartida, era exímio em apontar os significados das palavras; sempre que ia ao barbeiro, este, também interessado em etimologias e significados, perguntava sempre a Manuel o que queria dizer isto ou aquilo. Evidenciou-se também como caçador de mão cheia, sendo as suas proezas venatórias enaltecidas no jornal Soberania do Povo e conquistando o merecido título de «Átila dos coelhos». Manuel criava raposas em casa, para o ajudar na caça dos láparos – ou, quando crescidas, oferecia-as aos amigos.
Foi neste ambiente que nasceu António, vendo a luz na «barraca da eira», uma casa onde se guardavam os cereais precisamente… junto à eira. A sua infância foi marcada pelo falecimento de seu avô e por um acidente doméstico, quando o lume doméstico chegou a um dos suspensórios dos seus calções, deixando-o com uma queimadura funda, no braço esquerdo, que a sua madrinha, «D. Celeste», logo tratou com uns emplastros feitos de folhas de jarro bravo aquecidas ao fogo e embebidas em azeite. Curou-se o petiz, que depois marchou para a Arrancada, onde teve uma mestra marcante, a D, Beatriz de Jesus de Araújo Moura. De seguida, a «Universidade de Águeda», nome por que ficou conhecida a Escola Industrial e Comercial, onde António concluiu o curso comercial, corria o ano de 1952. Observa, acertadamente: «é uma pena que se tenha acabado, de certa maneira, com os cursos técnico-profissionais intermédios e penso que o País muito se veio a ressentir desse facto».
Concluído o curso, e passada a tormenta da 2ª Guerra, que adensou as privações de famílias como as de António Rachinhas, empregou-se por pouco tempo, graças a uma «cunha» de seu pai junto a um companheiro de caça, na firma de ferragens Silva & Irmão, Sucrs., Lda. No ano seguinte – 1953, portanto – vemo-lo partir para Angola, embarcando na Rocha Conde de Óbidos. Como nunca tinha vindo a Lisboa, foi acompanhá-lo ao navio «Moçambique» o seu tio e padrinho, Joaquim Ferreira Rachinhas. Mas, antes do embarque, foram ambos assistir a uma partida de futebol, uma refrega entre o Sporting e o Torino a contar para a Taça Latina. Para a ida a África, recebera António (ou, melhor, o seu pai) uma «carta de chamada», vinda de António Martins Nogueira, cunhado do pai do jovem António que se encontrava há já bastantes anos em Angola, onde era proprietário de uma empresa de construção civil. Foi na casa do tio-empreiteiro que António ficou, mas dela não parece ter guardado uma boa recordação. Ainda trabalhou uns tempos na firma do tio, ao escritório, onde pontificavam como guarda-livros o Sr. Fernando Pereira Constâncio, de Silvalde, Espinho, e como empregado o Sr. Hélio de Arede, natural de Talhadas, Sever do Vouga. Para o exercício das suas funções deslocava-se António com frequência aos diversos «postos administrativos» existentes nos variados musseques de Luanda, como o musseque Rangel, onde vivia a maioria dos operários, o musseque Burity ou o musseque Sambizanga. Regressava ao escritório por volta das cinco, seis da tarde e jantava invariavelmente bacalhau cozido com batatas e hortaliça-. «Foi assim durante os onze anos que ali estive, mas felizmente não enjoei o prato e ainda hoje gosto muito».
Graças a um empenho do tio junto de um enfermeiro (de seu apelido Boavida), foi António dispensado do serviço militar. Continuou por África, vindo a Portugal para casar, na Igreja de São Pedro de Valongo do Vouga, aos dias quatro do mês de Outubro de 1964. A noiva, claro está, era natural da mesma freguesia, tendo por nome Luciana. Ainda hoje não se arrepende António – de modo algum! – da sua opção matrimonial («Não será a mulher perfeita, mas andará muito perto disso»). Mal casou, voltou a Angola, na companhia da mulher, de quem teve duas filhas, a Maria Celeste e a Paula Alexandra. Ambas nascidas em Luanda. António voltará a Portugal mais duas vezes, em 1969 e em 1973, e saudará o 25 de Abril, mas não o modo como se desenrolou o processo de descolonização. À cautela, a família veio para a metrópole, mas em Abril de 1975, Luciana Rachinhas volta a Angola, juntando-se ao marido (as filhas ficaram em Aguieira com os avós paternos). Acabou o casal por ter de regressar a Portugal, com grandes dificuldades. António conseguira enviar duas mobílias por intermédio dum conterrâneo que era funcionário da Confabril, uma empresa associada à CUF e, portanto, proprietária de barcos de carga. Mas foi o cabo dos trabalhos localizar os seus haveres nos contentores acumulados à beira-Tejo.
A vida, como aconteceu a tantos, foi recomeçada no Brasil. Belo Horizonte, o último vértice do triângulo tricontinental; aí esteve António Rachinhas e família de 1976 a 1977, ano em que regressou a Portugal, desta feita em definitivo. A última parte das memórias de António Rachinhas são dedicadas a Valongo do Vouga, por onde tudo começou. Fala com especial carinho da Escola EB 2/3 que aí foi edificada e, nas últimas páginas do livro, exibe sem falsas modéstias os diplomas dos cursos que fez na vida. Ingressou na política local, onde foi deputado municipal e aí, ao que reza o Soberania do Povo, proferiu uma frase que o irmana com um malogrado mas muito famoso Presidente norte-americano. Disse António: «Não se espere que Valongo faça tudo aos valonguenses. Cada valonguense deverá fazer algumas coisa por Valongo!!».
 Saborosíssimas memórias, marcas uma vida feita. A certeza de que António Martins Rachinhas pode dizer, como poucos: «Ich bin ein valonguer».
 
António Araújo
 

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