Foi, de facto, uma vida tricontinental, esta de António Martins Rachinhas.
Nascido
no concelho de Águeda (mais precisamente, em Aguieira, freguesia de Valongo do
Vouga) em 13 de Fevereiro de 1937, António Rachinhas, nestas suas memórias, e
porventura com a ajuda de um grande genealogista, reconstituiu a sua árvore de
costados até 1530. Não se julgue, porém, que é seu intuito reivindicar
pergaminhos nobiliárquicos ou reclamar títulos de fidalguia. Depois de
apresentar os seus antepassados remotos, António fala-nos da sua parentela
próxima, como seu avô, «um humilde lavrador», que sempre se recusou em vender
um pinhal chamado «Os Carvalhos do Rachinhas». Se o fizesse, dizia, era o mesmo
do que vender o nome da família. Seu pai, Manuel Ferreira Rachinhas, toda a
vida foi carteiro; diariamente, fizesse chuva ou sol, o Sr. Rachinhas percorria
de bicicleta 50 quilómetros, nas freguesias de Aguada de Cima e de Belazaima do
Chão; um pormenor enternecedor: para entrar nos quadros dos CTT, teve Manuel de
fazer exame da 4ª classe, pois só havia na infância dura concluído a 3ª classe –
o filho António ajudou-o na matéria em que tinha mais dificuldades, as contas
da Aritmética. Em contrapartida, era exímio em apontar os significados das
palavras; sempre que ia ao barbeiro, este, também interessado em etimologias e
significados, perguntava sempre a Manuel o que queria dizer isto ou aquilo. Evidenciou-se
também como caçador de mão cheia, sendo as suas proezas venatórias enaltecidas
no jornal Soberania do Povo e
conquistando o merecido título de «Átila dos coelhos». Manuel criava raposas em
casa, para o ajudar na caça dos láparos – ou, quando crescidas, oferecia-as aos
amigos.
Foi
neste ambiente que nasceu António, vendo a luz na «barraca da eira», uma casa
onde se guardavam os cereais precisamente… junto à eira. A sua infância foi
marcada pelo falecimento de seu avô e por um acidente doméstico, quando o lume
doméstico chegou a um dos suspensórios dos seus calções, deixando-o com uma
queimadura funda, no braço esquerdo, que a sua madrinha, «D. Celeste», logo
tratou com uns emplastros feitos de folhas de jarro bravo aquecidas ao fogo e
embebidas em azeite. Curou-se o petiz, que depois marchou para a Arrancada,
onde teve uma mestra marcante, a D, Beatriz de Jesus de Araújo Moura. De
seguida, a «Universidade de Águeda», nome por que ficou conhecida a Escola
Industrial e Comercial, onde António concluiu o curso comercial, corria o ano
de 1952. Observa, acertadamente: «é uma pena que se tenha acabado, de certa
maneira, com os cursos técnico-profissionais intermédios e penso que o País
muito se veio a ressentir desse facto».
Concluído
o curso, e passada a tormenta da 2ª Guerra, que adensou as privações de
famílias como as de António Rachinhas, empregou-se por pouco tempo, graças a
uma «cunha» de seu pai junto a um companheiro de caça, na firma de ferragens
Silva & Irmão, Sucrs., Lda. No ano seguinte – 1953, portanto – vemo-lo
partir para Angola, embarcando na Rocha Conde de Óbidos. Como nunca tinha vindo
a Lisboa, foi acompanhá-lo ao navio «Moçambique» o seu tio e padrinho, Joaquim
Ferreira Rachinhas. Mas, antes do embarque, foram ambos assistir a uma partida
de futebol, uma refrega entre o Sporting e o Torino a contar para a Taça
Latina. Para a ida a África, recebera António (ou, melhor, o seu pai) uma
«carta de chamada», vinda de António Martins Nogueira, cunhado do pai do jovem
António que se encontrava há já bastantes anos em Angola, onde era proprietário
de uma empresa de construção civil. Foi na casa do tio-empreiteiro que António ficou,
mas dela não parece ter guardado uma boa recordação. Ainda trabalhou uns tempos
na firma do tio, ao escritório, onde pontificavam como guarda-livros o Sr.
Fernando Pereira Constâncio, de Silvalde, Espinho, e como empregado o Sr. Hélio
de Arede, natural de Talhadas, Sever do Vouga. Para o exercício das suas
funções deslocava-se António com frequência aos diversos «postos
administrativos» existentes nos variados musseques de Luanda, como o musseque Rangel,
onde vivia a maioria dos operários, o musseque Burity ou o musseque Sambizanga.
Regressava ao escritório por volta das cinco, seis da tarde e jantava
invariavelmente bacalhau cozido com batatas e hortaliça-. «Foi assim durante os
onze anos que ali estive, mas felizmente não enjoei o prato e ainda hoje gosto
muito».
Graças
a um empenho do tio junto de um enfermeiro (de seu apelido Boavida), foi António
dispensado do serviço militar. Continuou por África, vindo a Portugal para
casar, na Igreja de São Pedro de Valongo do Vouga, aos dias quatro do mês de
Outubro de 1964. A noiva, claro está, era natural da mesma freguesia, tendo por
nome Luciana. Ainda hoje não se arrepende António – de modo algum! – da sua
opção matrimonial («Não será a mulher perfeita, mas andará muito perto disso»).
Mal casou, voltou a Angola, na companhia da mulher, de quem teve duas filhas, a
Maria Celeste e a Paula Alexandra. Ambas nascidas em Luanda. António voltará a
Portugal mais duas vezes, em 1969 e em 1973, e saudará o 25 de Abril, mas não o
modo como se desenrolou o processo de descolonização. À cautela, a família veio
para a metrópole, mas em Abril de 1975, Luciana Rachinhas volta a Angola,
juntando-se ao marido (as filhas ficaram em Aguieira com os avós paternos).
Acabou o casal por ter de regressar a Portugal, com grandes dificuldades.
António conseguira enviar duas mobílias por intermédio dum conterrâneo que era
funcionário da Confabril, uma empresa associada à CUF e, portanto, proprietária
de barcos de carga. Mas foi o cabo dos trabalhos localizar os seus haveres nos
contentores acumulados à beira-Tejo.
A
vida, como aconteceu a tantos, foi recomeçada no Brasil. Belo Horizonte, o
último vértice do triângulo tricontinental; aí esteve António Rachinhas e
família de 1976 a 1977, ano em que regressou a Portugal, desta feita em
definitivo. A última parte das memórias de António Rachinhas são dedicadas a
Valongo do Vouga, por onde tudo começou. Fala com especial carinho da Escola EB
2/3 que aí foi edificada e, nas últimas páginas do livro, exibe sem falsas
modéstias os diplomas dos cursos que fez na vida. Ingressou na política local,
onde foi deputado municipal e aí, ao que reza o Soberania do Povo, proferiu uma frase que o irmana com um malogrado
mas muito famoso Presidente norte-americano. Disse António: «Não se espere que Valongo faça tudo
aos valonguenses. Cada valonguense deverá fazer algumas coisa por Valongo!!».
Saborosíssimas memórias, marcas uma vida feita. A
certeza de que António Martins Rachinhas pode dizer, como poucos: «Ich bin ein
valonguer».
António Araújo
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