Assim
que, da forma atribulada que todos conhecemos, a vitória nos Óscares do filme
Moonlight foi anunciada houve logo quem apontasse o facto histórico de pela
primeira vez ter ganhado um filme com protagonistas negros que não abordava
directamente as questões do racismo e da escravatura, ao contrário do que tinha
acontecido com Miss Daisy, Colisão ou 12 Anos Escravo. Esta curiosidade poderia
levar-nos a pensar que Moonlight é um filme pós-racial, assente sobre as
crostas de feridas antigas mas que já não doem. No entanto, convocados pelo
realizador Barry Jenkins a testemunhar a via dolorosa de Little/Chiron/Black, a
sua luta interior e exterior para afirmar o domínio do seu corpo, percebemos
que embora o filme não encene nenhum conflito inter-racial, nem reavive a
memória da escravatura, é uma obra sobre a história do corpo negro na América,
uma história longa e cruel, física e espiritual.
Contar
a história
Na
Guerra Civil Americana (1861-1865) morreram 600 mil soldados. No início da
guerra havia escravos. Quando a guerra acabou, homens, mulheres e crianças
negros eram livres. Mas a realidade não se muda por decreto, nem de um dia para
o outro. No sul esclavagista, a derrota não significou uma instantânea promoção
dos negros. Pelo contrário, as forças da resistência à nova realidade
mostraram-se com toda a fúria, reclamando o regresso a um mundo idealizado e
ordeiro onde os privilégios dos brancos e a condição inferior dos negros eram
naturais. A guerra não acabou, transferiu-se para um novo campo de batalha, o
do corpo negro.
A
história americana pode ser lida e contada de muitas maneiras, mas uma das
maneiras de contar a América após a guerra civil é através da narrativa da
reconquista do corpo negro porque no centro da maioria das lutas cívicas esteve
sempre o domínio sobre o corpo negro. Um corpo que no tempo da escravatura
tinha sido completamente objectificado, dominado, controlado, castigado, numa
cultura que determinava em que espaços era aceitável a sua presença, o que
significava também em que actividades, em que relações, em que posição. Com o
fim da escravatura, surgiram outros mecanismos de controlo que visavam no fundo
prolongar o estado das coisas. A liberdade do negro só era aceitável se os
limites à sua presença no espaço público (que também é um lugar da imaginação)
pudessem ser definidos pelos brancos.
A
Justiça Popular e os Linchamentos
Quando
os brancos se viam incapazes de estabelecer os limites da recém-conquistada
liberdade dos negros recorriam à violência, na maior parte das vezes através
dessa instituição profundamente americana
do linchamento. Os linchamentos já existiam antes do fim da escravatura
e, em várias ocasiões, ocorriam quando circulavam rumores de uma iminente
revolta dos escravos que geravam o pânico na população branca. Como conta
Philip Dray no magnífico At the Hands of Persons Unknown (às mãos de
desconhecidos, pois na maioria das vezes a turba protegia-se de modo a tornar
impossível a identificação dos agressores), “o crescimento do movimento
abolicionista no norte exacerbou os receios sulistas de que estariam à beira do
temido apocalipse” da rebelião negra. Após a guerra e com o fim da escravatura,
a conquista de direitos políticos por parte dos negros e a ascensão económica e
social de uma parte da população que, até então, estava praticamente remetida
às barracas das plantações, reforçaram os temores dos brancos que foram
simbolicamente projectados no tabu definitivo, quase inominável, do sexo entre
um homem negro e uma mulher branca: “A ansiedade provocada pela ideia do sexo
inter-racial era tão grande que deu origem à ideia de que ter sexo com uma
mulher branca era o verdadeiro objectivo por trás de todas as aspirações do
negro, que a educação, o dinheiro, qualquer tipo de realização era, para o
homem negro, um mero degrau de acesso ao quarto e ao nirvana definitivo da
intimidade com mulheres brancas.” Para os brancos, o envolvimento voluntário de
uma branca com um negro era inconcebível, daí que abundassem as acusações de
violação e daí também que, sendo um tema tão sensível e que mexia com as
emoções colectivas como nenhum outro, tenha passado a ser a justificação
preferencial para os linchamentos. Mesmo quando o crime de que o negro era
acusado não tinha que ver com qualquer tipo de abuso sexual arranjava-se
maneira de “sexualizar” o crime para estimular o desejo de vingança da turba.
Foi
o que aconteceu a Sam Hose, a 23 de Abril de 1899. Hose foi acusado de matar o
patrão após uma discussão. Nos dias seguintes, com Hose em fuga às autoridades,
surgiram rumores de que, após o homicídio do patrão, o homem teria violado a
mulher deste e atacado a filha bebé. Quando foi capturado pelas autoridades, o
seu destino já estava traçado. A multidão armada pegou nele e levou-o para
perto da casa do antigo patrão. Aí, cortaram-lhe as orelhas, os dedos e os
órgãos sexuais, regaram-no com querosene, amarraram-no a uma árvore e
queimaram-no vivo. Alguns dos restos de Hose foram vendidos como recordações em
lojas locais, uma prática bastante comum nos linchamentos que geravam uma maior
comoção pública e aos quais acorriam milhares de pessoas das localidades mais
próximas.
O
caso de Ell Persons teve um impacto ainda maior na opinião pública não só
porque ocorreu 18 anos depois do linchamento de Hose, em 1917, mas pela forma
“civilizadíssima” como tudo decorreu. Persons foi acusado de matar uma rapariga
branca de 16 anos. Após a sua captura, juntou-se uma multidão de
aproximadamente três mil pessoas, entre as quais muitas crianças. Não faltavam
os vendedores ambulantes que, nestas ocasiões festivas, aproveitavam para fazer
negócio. De manhã, a mãe da rapariga assassinada chegou ao local onde seria
feita “justiça”: “Quero agradecer a todos os meus amigos que tanto se
esforçaram em meu nome. Que o preto sofra o que a minha menina sofreu, só que
dez vez mais!” A turba reagiu: “Vamos queimá-lo!” E a mãe deu o aval
definitivo: “Sim, queimem-no no sítio onde ele matou a minha menina.” Ell
Persons ainda pediu a palavra, olhou para a multidão e não conseguiu dizer
nada. A sua indecisão foi interrompida pelo grito de uma mulher: “Queimem-no!”
Despejaram gasolina à volta dele e dois homens apressaram-se a cortar-lhe as
orelhas, como era hábito. Outros tentaram levar outras “recordações” mas foram
impedidos. Alguns dos espectadores queixaram-se de ter sido usada demasiada
gasolina e de, em consequência, o preto ter sido queimado depressa demais.
Agoniadas pelo cheiro a carne queimada muitas pessoas vomitaram. A cabeça de
Persons foi cortada e colocada num poste perto da ponte e depois levada para a
baixa de Memphis. Foram vendidas fotografias da cabeça a que tinham sido
cortadas as orelhas, o nariz e o lábio inferior a 25 cêntimos cada.
A
memória dos linchamentos é recuperada de forma grotesca e satírica por Paul
Beatty no brilhante The Sellout, livro que venceu o Man Booker Prize no ano
passado. Em traços gerais, o livro é sobre um homem negro, o narrador, que
desafia as convenções ao defender o regresso da escravatura. Um dos amigos do
narrador é um velho actor negro, Hominy Jenkins, que no passado tinha
trabalhado com os irmãos Marx e com outras figuras da idade de ouro de
Hollywood, embora se tivesse limitado a desempenhar os papéis menores que, na
época, estavam destinados aos negros. Órfão da antiga glória, um dia Hominy
tenta enforcar-se. É o narrador que o encontra com os pés quase a tocar no chão
e a cara azulada. Hominy faz-lhe um pedido: “Corta-me o pénis e enfia-mo na
boca” (um procedimento habitual dos linchamentos). O narrador liberta-o:
“Libertei a rainha do drama do auto-linchamento” e Hominy então reflecte sobre
a condição do negro na América: “Foi sempre assim desde que pusemos os pés
neste país. Há sempre alguém a ser chicoteado ou mandado parar e revistado,
tenha feito alguma coisa errada ou não.” Quando o narrador lhe diz que Hominy já
não é um escravo e que ele não é o seu dono, ele responde-lhe: “por vezes temos
de aceitar quem somos e agir em conformidade. Eu sou um escravo. Eu é que eu
sou. É o papel que nasci para representar. Um escravo que por acaso é actor.
Mas ser negro não tem nada que ver com o Método. Lee Strasberg podia ensinar-te
a ser uma árvore, mas não te podia ensinar a ser um preto.”
O
advogado e ativista James Weldon Johnson, que investigou o linchamento de
Persons, em retrospectiva, pensando na forma civilizada e ordeira como tudo
tinha decorrido, com a presença de homens, mulheres e crianças, na diferença
entre o sofrimento físico da vítima e a degradação moral de toda aquela
comunidade, chegou à conclusão de que a “questão racial passa[va] pela salvação
do corpo da América negra e da alma da América branca.” Sempre que se pensa o
racismo na América passa-se obrigatoriamente pela questão do corpo negro: onde
está, como é representado, que movimentos pode fazer, que espaço pode ocupar, o
que tem de fazer para evitar ser destruído.
A
Destruição do Corpo Negro
Isso
explica que o corpo seja a questão central do livro Entre Mim e o Mundo, de
Ta-Nehisi Coates, vencedor do National Book Award em 2015, uma longa carta
escrita pelo autor ao filho adolescente: “Digo-te agora que a questão de saber
como se deve viver dentro de um corpo negro, dentro de um país perdido no
Sonho, é a questão da minha vida […] é uma questão profunda, pois a América
vê-se como obra de Deus, mas o corpo negro é a prova mais clara de que a
América é obra dos homens. […] Na América destruir o corpo negro é uma tradição
– é um legado.”
Esse
legado de destruição entranhou-se decisivamente na cultura negra. Desde logo,
nas relações entre pais e filhos. “[O]s negros amam os filhos com uma espécie
de obsessão. Acho que todos nós preferiríamos matar-vos com as nossas mãos a
ver-vos mortos pelas ruas que a América construiu”, escreve Coates, ecoando
desta forma a solução brutal da protagonista do romance Beloved, de Toni
Morrison, que prefere matar a filha a permitir que ela viva e sofra como
escrava.
Em
Errata, o seu livro de memórias, George Steiner escreve o seguinte: “Cada pai
judeu é, num ou noutro momento da sua vida e paternidade, um Abraão para um
Isaac naquela caminhada de três dias até ao monte Moriah. […] Quando concebe um
filho, um judeu sabe que pode estar a legar àquela criança uma herança de
terror, de um destino sádico. […] Ao conceber um filho, um pai judeu, seja na
Rússia, na Europa, nas ruas de Hébron ou junto a uma sinagoga de Paris, torna a
criança culpada.”
Há
um idêntico sentimento de culpa nos pais negros na América, o de trazer um
filho ao mundo num lugar em que “carrega[s] um corpo mais frágil do que
qualquer outro”, como escreve Coates ao filho. Se, como diz Steiner, a criança
judia carrega, aos olhos dos outros, o pecado original por simplesmente
existir, na América o negro também parte em desvantagem porque “o preço a pagar
por um erro é mais alto para ti do que para os teus conterrâneos, e, para que a
América consiga justificar-se, a história da destruição de um corpo negro tem
de começar sempre com o erro dessa pessoa, real ou imaginado” (Entre Mim e o
Mundo).
Esta
consciência da fragilidade do corpo negro dentro de uma história de ataques
sistemáticos condicionou a educação e o comportamento de gerações e gerações de
negros. Qualquer atitude fora dos padrões de submissão e obediência definidos
pelos brancos podia ser entendida como insolência e ameaça, logo, como
justificação para a violência. Responder a um insulto, fazer gestos mais bruscos,
olhar o outro nos olhos, exigir respeito, eram comportamentos que podiam, de um
momento para o outro, abrir as portas do inferno e fazer recair sobre o corpo
negro a violência pronta a explodir da população branca. Por exemplo, os espancamentos com chicote,
um dos instrumentos de terror preferidos do Ku Klux Klan, visavam acima de tudo
lembrar a nova geração de negros – já nascida em liberdade, menos submissa,
mais afirmativa – do antigo estatuto: “o velho negro aquiescente dos tempos da
escravatura tinha dado lugar aos seus descendentes mais assertivos e, por medo,
os brancos tinham procurado novas maneiras de manter a sua hegemonia.” A
consciência do perigo levou os pais negros a “suprimir energicamente aquelas
qualidades dos seus filhos – a auto-confiança, a curiosidade, a ambição – que
poderiam ser erradamente interpretadas pelos brancos como insolência ou
arrogância.”
Claro
que sempre houve excepções e negros que, ao longo da história, não tiveram
receio de afirmar a sua vontade e liberdade enquanto indivíduos. Um dos mais
importantes e carismáticos foi o pugilista Jack Johnson, o primeiro negro a
conquistar o título mundial de pesos-pesados. Numa época em que as leis de
segregação racial eram o lado suave dos linchamentos, Johnson gabava-se de sair
com mulheres brancas. Foi casado três vezes e sempre com mulheres brancas. Após
o casamento com Lucille Cameron, em 1912, dois pastores dos estados do Sul
apelaram ao linchamento de Johnson, que chegou a ser condenado a uma pena de
prisão efectiva acusado de “transportar mulheres de um Estado para o outro com
intenções imorais”. Para escapar à prisão, Johnson fugiu com Lucille para a
Europa. No entanto, nunca perdeu a sua dignidade de homem livre: “quero
declarar que não sou um escravo e que tenho o direito a escolher a minha
companheira sem a autorização de qualquer homem. Tenho olhos e tenho um coração
e quando não forem eles a dizer-me quem devo ter como companheira quero que me
mandem para um asilo de lunáticos”, disse ele em tribunal.
Independentemente
de casos excepcionais, como o de Jack Johnson (e ele também um exemplo de como
a emancipação dos negros passava, e muito, pela afirmação do corpo), essa
vulnerabilidade criou uma cultura de medo que, por sua vez, criou a cultura de
resposta ao medo de que fala Ta-Nehisi Coates: uma cultura (e um medo) que
estava nos “rapazes extravagantes do meu bairro, nos seus grandes anéis e
medalhões, nos seus quispos largos e sobretudos com golas de pêlo, a sua
armadura contra o mundo. […] Recordo agora esses rapazes e tudo o que vejo é
medo, vejo-os reunindo força contra os fantasmas dos velhos dias de má memória,
quando as turbas do Mississípi cercavam os seus avôs e pegavam fogo ao corpo
negro para depois lhe cortar os ramos.” Coates conta como viveu com esse medo
ao longo da sua adolescência, enredado num problema sem resolução satisfatória:
“Se não fosse violento o suficiente, tinha de pagar com o meu corpo. Se fosse
demasiado violento, tinha de pagar com o meu corpo.”
A
Salvação do Corpo Negro
É
este o paradoxo que emerge subtilmente em Moonlight através da história do
protagonista desde a infância – em que ele paga com o corpo por não ser
violento o suficiente – passando pela adolescência – em que paga com o corpo
por ser demasiado violento – até à idade adulta em que usa o corpo como
armadura para se proteger desse mundo que fareja a sua vulnerabilidade e que a qualquer momento o pode atacar. Para
Black, reinventar-se enquanto pessoa significar reinventar o próprio corpo, um
corpo musculado, forte, sólido. Só o corpo pode libertar o corpo. O amigo, que
o reencontra muitos anos depois, diz-lhe: “Agora és um duro” e “esse não és tu”
e ele responde-lhe, como quem revela o segredo do disfarce perfeito,
“construí-me do zero.”
A
história dos negros na América, da cultura popular à cultura das ruas, da
violência enquanto estilo de vida à glorificação do corpo no hip-hop (em que os
grilhões dos escravos são ostensivamente trocados pelas correntes de ouro), da
construção da personalidade na ausência da figura paterna (esse vazio que tudo
absorve e que também está em Moonlight), é uma luta pela afirmação do corpo
travada em terrenos complexos, onde a segurança pode ser garantida pela
invisibilidade ou pela visibilidade, em que os mitos retrógrados na cabeça dos
brancos sobre a apetência sexual dos negros pode ser usada contra eles, em que
o corpo já não é o campo de batalha mas a arma de arremesso.
Para
quê falar em transcendência ou no espírito quando isso quer apenas dizer que
ainda não se consegue garantir a segurança do corpo? Jesus Cristo disse “não
temais os os que matam o corpo e não podem matar a alma.” Mas e se a alma e o
corpo forem um só? “Acreditava, e acredito ainda, que somos os nossos corpos,
que a minha alma é a voltagem de que os meus neurónios e nervos são os
condutores, e que o meu espírito é a minha carne”, escreve Ta-Nehisi Coates,
“acredito que, quando eles destroem o corpo, destroem tudo, e sei que todos nós
– cristãos, muçulmanos, ateus – vivemos com medo desta verdade.” Essa verdade é
a fonte de todos os medos e esse medo é a essência da experiência negra na
América. Na história de Moonlight, na pequena história de Little/Chiron/Black,
está concentrada a grande história da destruição e da salvação do corpo negro
na América.
Bruno Vieira Amaral
Só falta mesmo a magistral canção de Billy Holliday que melhor ilustra este tema:
ResponderEliminarhttps://www.youtube.com/watch?v=h4ZyuULy9zs
E talvez uma referência a um ensaio incontornável sobre o tema, de Philip Dray: "At the Hands of Persons Unknown: the Lynching of Black America" (Nova Iorque: Random House, 2002).
ResponderEliminarO autor conclui que entre entre 1882 e 1944, pelo menos 3417 negros foram linchados nos EUA, cifra que corresponde à média arrepiante de mais de um linchamento por semana.