segunda-feira, 29 de maio de 2017

In Illo Tempore (2)










     Quando entrei para a PJ em 15 de Janeiro de 1975, o subinspetor Abílio Simão apresentou-me individualmente a todos os colegas da secção.

     Entregaram-me a arma de serviço, uma pistola Star de calibre 7,65 mm, que tinha gravado na culatra a punção (uma estela) da PSP e fazia parte de um lote de armas abatidas daquela entidade policial por serem consideradas obsoletas, mas que serviram para os novos agentes da PJ, e, sem mais delongas, mandaram-me integrar uma equipa numa diligência externa. Aos estagiários que entraram a seguir foram-lhes fornecidas pistolas militares usadas, da marca Walter, de calibre 9 mm, volumosas e pesadas, que tinham de ser transportadas, principalmente no verão, em bolsas de cintura para não se tornarem notadas. Como todos os estagiários tinham cumprido recentemente o Serviço Militar Obrigatório, partiu-se do princípio que estavam habilitados a lidar com armas de fogo. Além do mais, a maioria tinha regressado recentemente da Guerra do Ultramar. Não havia tempo a perder com o ensino teórico/prático porque o combate à criminalidade violenta assim o exigia. Para situações de exceção, soluções de exceção.

    Ao iniciar a minha atividade como agente estagiário fui desde logo contemplado com cerca de 90 inquéritos, selecionados pelos restantes elementos da brigada, sendo que nenhum, não fosse eu um estagiário, se relacionava com investigação de homicídios. Eram antes "chaços" de que os meus companheiros se queriam livrar, relacionados com danos voluntários; difamações; injurias; ameaças de morte; corrupção de alimentos; negligências médicas; abortos clandestinos e ofensas corporais.

     Foi a minha primeira deceção, pelo que desabafei comigo próprio: «Então isto é que é uma secção de homicídios…?»

     A maioria dos casos tinha mais a ver com instrução processual do que propriamente com investigação criminal.

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     Para se ter uma ideia do ambiente que se vivia no PREC, o que a seguir se relata parece-me esclarecedor.

     Poucos dias depois de eu ter entrado na PJ passou defronte da sede uma manifestação de prostitutas vindas da zona dos Anjos/Intendente, empunhando cartazes e gritando palavras de ordem em defesa da sua profissão. Um dos cartazes dizia: «Somos putas, exigimos respeito». Quanto às palavras de ordem recordo-me de «Proteção sim, repressão não» e «assistência social, assistência social». Esta manifestação seguiu pela rua do Conde Redondo e foi-se juntar a uma das muitas manifestações que faziam (ainda se fazem algumas), no percurso entre o Marquês de Pombal e a Praça do Comércio.

     Disseram-me que nos primeiros dias a seguir ao 25 de Abril tinha havido uma outra manifestação de prostitutas, mas de característica espontânea, emocional e humanitária. Tratou-se duma manifestação em que as “meninas” anunciavam borlas ao “soldadinho amigo o povo está contigo”.

     O COPCON invadiu no dia 28 de Maio de 1975 a sede do MRPP detendo centenas de militantes daquele partido, que foram levados para a prisão de Caxias. Posteriormente selecionaram uma parte significativa dos detidos, alegadamente os mais responsáveis pelos crimes que justificaram aquela ação, e entregaram-nos na PJ para que esta polícia elaborasse o necessário expediente e os apresentasse aos JIC (que nessa altura funcionavam no 4º andar do edifício sede), dado o COPCON não ser competente para tal. Enquanto decorria uma ação de luta dos militantes do MRPP, em que uma multidão cercou o edifício sede gritando com os punhos erguidos “abaixo a nova pide, abaixo a nova pide”, com alguns de nós, “os novos pides”, debruçados nas janelas a assistir, os detidos deambulavam pelos corredores entoando cânticos revolucionários e recusavam-se a ser ouvidos formalmente. Perante toda aquela confusão, os juízes acabaram por só exigir que fossem identificados, mas os detidos nem isso aceitaram. Receando uma invasão do edifício, os militares colocaram uma Chaimite junto ao portão (no exterior) do lado do piquete. Após longas horas de “negociações” a situação só foi desbloqueada de madrugada com a identificação dos detidos, que saíram em liberdade.

     No dia 13 de Dezembro de 1974, Jorge de Brito (proprietário do BIP - Banco Intercontinental Português) e os administradores da Torralta foram presos pelo COPCON por sabotagem económica. O Sindicato dos Bancários organizou desde logo uma ação de luta, em que milhares de pessoas cercaram a PJ exigindo medidas concretas e uma investigação séria e célere. As prisões também foram ilegais, mas os sindicalistas apresentaram o que consideravam como provas contundentes da prática de crimes graves contra a economia do país e, face à hesitação da PJ (era o que afirmavam), exigiam a valorização dessas provas de modo a que os detidos fossem presentes aos JIC.

     Jorge de Brito esteve em prisão preventiva durante um ano e meio, acabando condenado a seis meses de prisão por tráfico de divisas.

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     O ambiente gerado pela revolução em largos setores da população criou uma forte animosidade contra a PSP e, principalmente, a GNR, identificando estas forças de segurança com a repressão do regime deposto, pelo que lhe perderam o respeito, o que levou a um recuo da sua atividade operacional que deu origem a uma sensação generalizada de impunidade e ao disparar da criminalidade.

     A PJ foi a única força policial que saiu da revolução com prestígio e aguentou, sozinha, especialmente durante o período do PREC, o combate ao aumento desmesurado da criminalidade violenta.

    Durante este período tínhamos de recorrer ao COPCON quando necessitávamos de uma força armada para cercar bairros de barracas ou zonas da cidade com grande incidência de criminalidade, como aconteceu, por exemplo, no Prior Velho e no Casal Ventoso, a fim de dar cumprimento a mandatos de detenção e de busca.

     O COPCON não fazia prevenção criminal. A sua principal atividade consistia em responder a pedidos de intervenção do povo vigilante no combate às forças reacionárias que conspiravam contra o 25 de Abril.

     Esta vertente da ação do COPCON deu origem a situações que tiveram tanto de caricatas como de perigosas. Era agente estagiário há poucos dias quando fui à Calçada da Ajuda com dois colegas fazer uma vigilância. Cerca de duas horas depois de chegarmos fomos surpreendidos por um grupo de militares visivelmente nervosos que, de pé em cima dum Unimog, nos apontaram espingardas automáticas G3 e gritaram para que puséssemos as mãos no ar. Dissemos-lhes que éramos agentes da PJ, mas eles a princípio não acreditaram. Encarámos a situação com calma, até que um de nós foi autorizado a identificar-se. Alguém lhes tinha telefonado a dizer que andavam por ali uns indivíduos estranhos, altamente suspeitos de pertencerem a alguma organização contrarrevolucionária.

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     Em resposta à “intentona” spinolista do 11 de Março de 1975, os militares do MFA avançaram para as nacionalizações. Enquanto não se tocou nos interesses económicos e financeiros a “coisa” ia andando, mas com a nacionalização dos bancos, das companhias de seguros e das grandes empresas, a direita radicalizou-se e a violência não se fez esperar. O Norte levantou-se. Entre Julho e Agosto de 1975 houve manifestações, muitas delas encabeçadas por padres, que culminavam na destruição dos centros de trabalho do PCP e de outros partidos de esquerda, assim como no rebentamento de bombas por todo o lado.

     Apesar de serem notícia de primeira página dos jornais e tema principal nos telejornais, com a exposição pública de fotografias e filmagens, a justiça passou ao lado destes actos de vandalismo e violência, que provocaram várias vítimas mortais.

     Um dos casos mais famosos de violência política ocorreu em Abril de 1976, perto de Vila Real, com a explosão duma bomba no carro do padre Max, que estava acompanhado de uma jovem. Ambos morreram em consequência da explosão. Soube-se como tudo se processou e quem foram os autores morais e materiais do crime. No entanto, os cinco arguidos acusados pelo Ministério Público foram absolvidos em dois julgamentos (1997 e 1999) por insuficiência de prova.

     Havia padres que afirmavam do alto do seu púlpito que os comunistas comiam criancinhas ao pequeno-almoço e davam injeções atrás das orelhas dos velhos para que morressem mais depressa. A ser verdade, tratava-se duma versão mais drástica das atuais medidas de austeridade.

     Só com a derrota do COPCON e da extrema-esquerda militar no dia 25 de Novembro de 1975 é que esta conjuntura se alterou.

     Nesse dia tinha ido com o subinspetor Lobão para a Zona de Rio Maior. A certa altura começou a ser transmitida repetidamente uma mensagem vinda da central rádio da PJ:

- Atenção a todas as viaturas, regressem à base imediatamente.

     Quando passámos pelo viaduto junto ao RALIS vimos militares daquela unidade a montar peças de artilharia viradas para Norte, de onde vinha uma coluna militar da Escola Prática de Cavalaria em direção à Capital, comandada por Salgueiro Maia.

     Naquela altura andava no ar a possibilidade da situação político/militar descambar numa guerra civil. Felizmente que tal não aconteceu.

 

O dia-a-dia

     Reservávamos normalmente dois dias por semana para ouvirmos pessoas de manhã à noite a fim de pôr em dia o expediente, para nos restantes dias procedermos a diligências externas.

     Chamávamos as pessoas convocadas através de um comunicador interno. A sala de espera era no hall do primeiro andar junto à escada principal. Para além de bancos de correr em madeira havia na sala de espera uma cabina telefónica pública. Quando começaram as apreensões de droga decidiu-se transformar aquele espaço num armazém para estupefacientes. Colocaram-se os bancos no corredor e a cabine telefónica passou a ser utilizada para guardar a droga mais valiosa, pelo que, como medida de segurança, foi montado um cadeado. A certa altura o espaço deixou de ser suficiente dado as apreensões de droga aumentarem vertiginosamente, pelo que tivemos de a transportar à mão para uma sala de maiores dimensões no segundo andar. Pelo caminho iam caindo pedaços de droga, o que chamou a atenção dos passantes, mas ninguém se atreveu a dobrar a espinha.

     O armazém da droga, antes sala de espera, passou então a ser o gabinete de apoio administrativo às duas secções de homicídios - 2ª e 3ª.

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     Quando havia um processo de homicídio contra desconhecidos que logo à partida apresentasse sinais de complexidade investigatória, o que nem sempre se confirmava posteriormente, os agentes da brigada suspendiam o que andavam a fazer para se concentrarem na investigação do crime. Se o caso fosse particularmente grave podia ser mobilizada toda a secção e alguns agentes da outra, o que chegou a acontecer algumas vezes. Especialmente nos primeiros três dias, enquanto a situação se mantinha “quente”, era mister trabalhar intensamente, sem preocupações de horário, para se agarrar a ponta do novelo que nos levaria à solução do crime. Os investigadores mais experientes diziam que as testemunhas principais, as que fazem prova direta, eram mais importantes que os próprios autores dos crimes. Estas testemunhas não podiam ser largadas pelos agentes sem serem inquiridas formalmente. Nem que fosse à mão. Vi colegas cometerem o erro de palmatória de as convocar para o dia seguinte. Nestes casos, o normal era a sua versão dos factos já não ser a mesma.

     Quando se dava o arrefecimento emocional, uma consequência do passar do tempo, sem que houvesse pistas credíveis, a investigação prosseguia somente com o titular do inquérito e o grupo de que fazia parte. Claro que não tinha de ser sempre assim, dependia da dimensão e complexidade dos casos, mas este era o procedimento base.

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     Dos trinta anos da minha carreira, vinte foram passados sem telemóveis nem computadores, que só surgiram em meados da década de noventa.

     Também foi a partir de meados da década de noventa que foi possível identificar suspeitos através do ADN.

     Nos homicídios, as escutas telefónicas a telefones fixos nem sequer eram consideradas, pelo que raramente foram postas em prática. Apesar de todas estas “limitações” (na perspetiva atual), não deixámos de deslindar crimes de comprovada complexidade e obter resultados com elevados índices de êxito no combate à criminalidade.

     Antes dos computadores, as antigas máquinas de escrever mecânicas foram substituídas por máquinas de escrever eletrónicas com cabeça rotativa, que se mantiveram ao serviço durante alguns meses. Quando foram substituídas pelos processadores de texto ALL-IN-ON (Spectrum 48k) estavam praticamente novas. Estes processadores de texto também tiveram curta duração até serem substituídos pelos computadores.

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     Há hoje quem entenda que por esta altura a PJ era uma polícia de amadores, que funcionava na base de meia-dúzia de intuitivos. Normalmente este tipo de opiniões vem de quem galgou os patamares da carreira até ao topo sem nunca ter sido polícia. Dizem que ao entrarem para a PJ “encontraram” uma polícia arcaica e quando se reformaram “deixaram” uma polícia moderna e sofisticada.

     A investigação criminal não está desligada da sociedade. A sua evolução segue a par, na melhor das hipóteses, da evolução da sociedade em que está inserida.

     Quanto à intuição, penso que é indispensável à investigação criminal. Mesmo com as atuais tecnologias o fator humano não pode ser totalmente substituído pela técnica.

     Por outro lado, é bom que se diga que não éramos amadores, mas profissionais que, num esforço de autodidatismo e aproveitamento do saber empírico que o dia-a-dia proporcionava, lográmos alcançar níveis de conhecimento especializado em áreas relacionadas com a psicologia, a sociologia e a antropologia forense, entre outras.

 

As instalações

     O edifício sede da PJ foi construído com materiais de qualidade. Para além de um pé direito alto, tem corredores espaçosos e janelas largas.     

     O mobiliário das brigadas era composto por secretárias e armários em madeira de boa qualidade, estes com persianas verticais. As secretárias tinham tampos largos cobertos com vidro grosso transparente e apesar de serem antigas estavam muito bem conservadas. Tinham forma de L em que a parte mais curta era um suporte rebaixado para máquinas de escrever e onde podiam ser colocados os modernos computadores. As cadeiras de secretária eram em madeira, giratórias e bastante confortáveis. Para as pessoas se sentarem havia sofás individuas simples e confortáveis.

     Um dia fomos surpreendidos com a substituição de todo o mobiliário, exceto os armários do hall de entrada das brigadas, por secretárias de contraplacado com laminite a imitar madeira e armários em metal da pior qualidade. Havia quem alegasse que era por uma questão estética… O novo mobiliário era tão mau que teve de ser substituído por outro, um tudo-nada melhor, num curto espaço de tempo.

     Durante vários anos cada vez que mudava a direção da polícia mudava o mobiliário e a decoração. A justificação que davam para estas despesas era de que a PJ tinha um orçamento anual e caso não o gastasse na totalidade no ano seguinte baixava de valor. Caso assim fosse, será que não haveria outras necessidades bem mais importantes onde gastar o dinheiro? Mas isso era o que diziam os más-línguas do costume.

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     Das particularidades curiosas de então, vistas hoje - como a de haver um engraxador a tempo inteiro no hall de acesso ao piquete, ou uma tipografia no rés-do-chão por baixo da escola - vou apenas referir a barbearia, que se situava num recanto, próximo de onde hoje se encontra a sede da ASFIC. Era a única construção existente em cima da placa da garagem. Em 1986 foram construídos sobre a placa vários gabinetes para o ministério público, que têm hoje outras utilidades, e a secção de transportes.

     A barbearia tinha um telefone que nós utilizávamos para marcar a hora do corte de cabelo, evitando assim esperas inúteis. O barbeiro, senhor Pinto, trabalhava de manhã na Penitenciária de Lisboa ou na Zona Prisional e de tarde na PJ. Ao cortar cabelos a criminosos de manhã e a polícias à tarde, já não falando dos guardas prisionais, o senhor Pinto, em minha opinião, deveria ser uma das pessoas mais bem informadas do país. Morreu subitamente quando seguia num comboio de regresso à Amadora, onde residia. Com a sua morte a barbearia foi desativada.

 

A Formação

     O curso de Formação de Agentes Estagiários que frequentei só começou cerca de três meses depois de ter iniciado funções. As aulas eram ministradas na parte da manhã. De tarde íamos trabalhar.

     Tivemos o privilégio de ter um corpo docente de luxo, composto pelo Dr. Laborinho Lúcio (Código Penal); Dr. Mário Gomes Dias (Código de Processo Penal); Dr. Bento Garcia Domingues (Técnica e Tática de Investigação Criminal e Instrução Processual); Dr. Arsénio Nunes (Medicina Legal – foi o último curso que lecionou e as aulas tiveram lugar no próprio IML), Dr. Santos Silva (Diretor do Laboratório de Polícia Científica) e quadros da PJ especializados em diversas áreas. Também tivemos de tirar um curso de dactilografia numa escola privada situada defronte do Arquivo de Identificação.

     Para se poder avaliar o espírito do tempo, exigimos que a nota final do curso fosse substituída por aprovado, ou reprovado. E assim foi. Claro que fomos todos aprovados. A fim de repor alguma justiça, apraz-me dizer que o Fino, um colega madeirense, foi o melhor aluno do curso.

     A Escola da Polícia Judiciária situava-se na sede, mais precisamente no primeiro andar logo a seguir ao túnel. Foi transferida em finais de 1977 para o Estabelecimento Prisional de Lisboa (Penitenciária) e daqui para a Quinta do Bom Sucesso, Barro, Loures, em 1981, onde ainda se encontra.

 

Os transportes

     As empresas de transportes públicos resistiram desde sempre ao que está determinado no artº 11 do Decreto-lei 35042, de 20 de Outubro de 1945, que criou a PJ: «será facultada a entrada livre das autoridades e agentes da Polícia Judiciária (…) em todos os lugares (…) onde seja permitido o acesso ao público mediante (…) a apresentação de bilhete que qualquer pessoa possa obter». Logo, os transportes públicos deveriam estar incluídos. Porém, só em 1956 foi possível obter um acordo com a Carris para que fossem fornecidos aos funcionários de investigação passes renováveis semestralmente. Na altura todos ficaram com o seu passe da Carris. Só que, este quantitativo inicial manteve-se sempre fixo. Com a entrada progressiva de novos agentes, a certa altura eram mais o que não tinham passe do que os que tinham.

     Para o metropolitano, inaugurado em 1959, foi criada a “faixa azul”, mais conhecida por “cavaleiro azul”. Tratava-se de uma pequena moldura de cartolina azul, encaixada num dos topos do cartão de livre-trânsito, para permitir que os agentes da secção central, do furto, burlas e mais alguns tivessem acesso gratuito ao metropolitano. 

     Esta situação de bizarra anormalidade ainda se manteve até ao início dos anos setenta (1972?).

     Quando entrei para a PJ em Janeiro de 1975, o cartão de livre-trânsito continuava a não ser válido para os transportes públicos, pelo que tínhamos de ter sempre à mão moedas para pagar os bilhetes: de 5 e 8 tostões nos elétricos (o transporte mais utilizado), 10 tostões nos autocarros e 15 tostões para o metropolitano.

    A nacionalização das empresas de transportes públicos no pós-25 de Abril permitiu reivindicações que culminaram em 1976 com um acordo de validação do cartão de livre-trânsito para o setor.  

    Para reavermos o nosso dinheiro escrevíamos numa Informação de Serviço os números dos inquéritos relacionados com as diligências em que foram utilizados transportes públicos e juntávamos-lhe os respetivos bilhetes. Estas informações tinham de ser previamente assinada pelo subinspetor da brigada para podermos receber na tesouraria o que nos era devido. Mas não se pense que a devolução do nosso dinheiro se processava sem o agente-tesoureiro Abreu refilar. Era da sua natureza. Uma vez chegou a recusar o pagamento de um bilhete de elétrico com a alegação que estava sujo de terra, dando a entender que o agente o tinha apanhado do chão. Sempre que tinha de proceder a qualquer pagamento extra-ordenado, como ajudas de custo ou refeições de serviço, havia discussão pela certa. Acusava-nos de estarmos a enganá-lo, mesmo com a aprovação do chefe de brigada ou do inspetor da secção. Quando requisitávamos esferográficas, por exemplo, exigia que fosse por troca, ou seja, para que nos desse uma esferográfica nova, tínhamos de lhe entregar a usada. Era ele que fornecia o papel químico, papel para a máquina de escrever, impressos, lápis, borrachas, etc., ou seja, a tesouraria também funcionava como economato, que só se autonomizou nos anos 80. Acusava-nos sempre de sermos uns gastadores e nunca nos entregava a totalidade do material solicitado. Tinha um complexo obsessivo de dúvida quanto à honestidade dos agentes. A única maneira de o levar à certa era contar-lhe uma anedota ordinária ou dizer-lhe uma piada porca. Ele ria-se e tornava-se humano.

     Esta situação só melhorou com a entrada do escriturário Dourado, que era uma excelente pessoa, para adjunto do Abreu.

     Ao contrário do forreta do Abreu, o senhor Martinho, tesoureiro da Diretoria Geral, era um ser humano de exceção. Estava sempre disponível para ajudar os funcionários, inclusive emprestando-lhes dinheiro (com o aval do diretor), contra a assinatura de um vale.

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     Até 1976 a frota de viaturas da PJ era tão diminuta que no parqueamento interior (único) havia espaço de sobra, a tal ponto que até se podiam estacionar automóveis particulares dos funcionários.

     Algumas das viaturas destinadas a apoiar a investigação criminal estavam a cargo de motoristas profissionais, pelo que, quando necessitávamos dos seus serviços tínhamos de os requisitar. Mais tarde esses motoristas foram distribuídos pelas secções. O primeiro que nos coube em sorte foi o Afonso e a seguir o Ricardo. Ambos tinham particularidades muito curiosas. O Afonso, por exemplo, adorava comer cabeças de peixe e conduzia “em cima” do carro da frente, o que lhe deu alguns amargos de boca. Sempre que outros condutores faziam asneira, por vezes da grossa, ele nunca protestava: limitava-se a soprar. Quanto ao Ricardo, tinha a particularidade de ser um brincalhão incorrigível. Por exemplo: parava a viatura que conduzia junto dos "almeidas" da câmara municipal, que levavam consigo os carrinhos para transporte de lixo e tratava-os por colegas: «o colega sabe-me indicar onde fica a rua…».

     Como os motoristas profissionais não chegavam para as encomendas, quando necessitávamos de uma viatura sem motorista tínhamos, para a garantir, dada a sua exiguidade, de nos plantar desde muito cedo à porta do gabinete do subinspetor Teixeira de Araújo (o "pai dos gatos") para a requisitar, o que também acontecia quando necessitávamos de Walkie-talkies. Claro que esta tarefa era, naturalmente, reservada aos agentes mais novos.

 

As comunicações

     Ainda sou do tempo em que tínhamos de andar munidos de moedas de 5 tostões para utilizarmos nas cabinas telefónicas ou em telefones públicos de estabelecimentos comerciais para podermos comunicar, porque a PJ não tinha telecomunicações. Antes do 25 de Abril a única polícia que tinha telecomunicações era a PIDE. A PSP e a GNR tinham um sistema de comunicações interno fixo, cuja rede fazia a ligação com as respetivas “esquadras” ou “postos”.

     Nas operações militares do 25 de Abril coube à Marinha a ocupação da sede da PIDE/DGS. O António Roque e o Victor Manuel Russo Alves, ambos na época marinheiros radiotelegrafistas, bem como o grumete radiotelegrafista Lourenço, foram destacados para o edifício da PIDE/DGS a fim de assegurarem a continuidade das comunicações no âmbito da rede de telecomunicações da Interpol. Mais tarde, já em Maio, foram admitidos, como tarefeiros, os ex-marinheiros radiotelegrafistas José Imaginário e Francisco Patrício.

     Até à sua integração na PJ, este serviço de telecomunicações foi chefiado pelo primeiro-sargento Reis, que continuou na Armada até passar à reserva, sendo então substituído pelo subinspetor Cruz Passos.

     A reativação do GNI teve a colaboração de três técnicos da PIDE/DGS que estavam detidos na Penitenciária de Lisboa: Faustino, Marques e Castro.

     O transporte dos detidos para a sede da PIDE/DGS, onde antes trabalhavam, e o seu regresso à cadeia era efetuado diariamente por agentes da PJ. Tanto estes técnicos como outros, oriundos da PIDE, entraram mais tarde por concurso para os quadros da PJ. 

     Portugal era o único país em que a Interpol era controlada por uma polícia política, o que contrariava o Estatuto (art.º 3) desta Organização Internacional de Polícia Criminal.

     As comunicações da PIDE/DGS, embora de tecnologia rudimentar, eram bastante eficazes. Integravam uma rede nacional (incluindo as colónias) e uma internacional. À exceção de dois excitadores Drake e cinco telexes, a restante aparelhagem foi construída manualmente pelos técnicos daquela polícia. A tecnologia militar de comunicações era incomparavelmente mais sofisticada, mas de eficácia semelhante.

     O GNI voltou a estar operacional cerca de duas semanas depois do 25 de Abril com um comunicado dirigido à sede da Interpol, então em Paris, enviado pelo radiotelegrafista António Roque:

     - «Informação estação rádio de Lisboa está aberta a todo o tráfico internacional das nove horas às dezassete horas viva a revolução».

     Todas as transmissões eram efetuadas em código Morse através do indicativo radiotelegráfico CST 63, já existente. Só em 1977 é que este indicativo foi mudado para CSJ.

     O GNI, assim como todo o material de comunicações existente na sede da PIDE/DGS, só foi transferido para a PJ em Outubro de 1974 e ficou instalado no 4º piso entre o LPC e os JICs.

     Para além do GNI, os militares também quiseram entregar à PJ o controlo de fronteiras, função esta que ainda exerceu durante cerca de três meses, mas a direção da polícia recusou alegando que não havia meios.

     Entretanto, corria o ano de 1975 quando foram instalados, nas poucas viaturas existentes, equipamentos de comunicação rádio da General Electric (GE), em VHF, ligados a um emissor montado no torreão da PJ, com transmissores no Monsanto, Arrábida, Coimbra e Porto, e recetores instalados numa sala do 4º andar ao lado do GNI. Este sistema foi montado pelos técnicos Castro e Marques com a colaboração do engenheiro Simões Carneiro, consultor técnico contratado pela PJ.

     A Divisão de Telecomunicações da PJ só foi criada em 1977.

     Antes da implementação definitiva dos telemóveis, que ocorreu em meados da década de noventa, tínhamos um bip ligado a um telefone fixo para podermos ser contactados a qualquer hora, principalmente quando estávamos em serviço de prevenção.

     Até esta altura, para podermos comunicar uns com os outros quando da execução de operações externas que visavam detenções ou buscas em locais problemáticos, utilizávamos walkie talkies.

 

Escutas telefónicas

     Pelo que apurei junto dos mais antigos, a instalação de escutas telefónicas na PJ ocorreu em meados de 1964 por iniciativa do diretor de então, Dr. Orlando Gomes da Gosta, mas “não tiveram suporte legal”, pois não houve: lei, decreto ou simples despacho ministerial que as legitimasse. Pelo que se constou na altura, foram solicitações informais do diretor junto do ministro da Justiça, Dr. Antunes Varela, e “a coisa foi cozinhada de modo confidencial” (expressão de Dias Brito).

     O espaço físico para o efeito consistia em dois pequenos gabinetes, de igual dimensão, situados na mesma prumada: um no 1º andar, ao lado do gabinete do diretor, e o outro no 2º andar, na Secção Central, ao lado do gabinete do inspetor-adjunto Dr. Bento Garcia Domingues. Ambos tinham uma secretária e um par de auscultadores que se ligavam a três fichas de parede designadas por x, y, z. Estas fichas correspondiam a três conjuntos duplos de fios (dois fios para cada telefone), por onde se encaminhavam as chamadas efetuadas ou recebidas pelos telefones em escuta, que chegavam à PJ através de um cabo ligado à Central Telefónica da APT (empresa “inglesa”, que foi resgatada pelo Estado em 1968 dando origem à empresa pública TLP), situada na rua Andrade Corvo. O gabinete do 1º andar era de utilização geral, enquanto o do 2º andar era de uso exclusivo da “Brigada Especial”.

     Em termos comparativos, a central dos TLP da Trindade encaminhava para a sede da PIDE 56 linhas telefónicas para o mesmo efeito.[1] 

     As escutas em telefones fixos efetuadas na PJ antes do 25 de Abril não eram gravadas. Os agentes escreviam manualmente o que consideravam com interesse para a investigação. Tinha mais a ver com recolha de informações do que uma forma de obter/produzir prova.

     A sistematização das escutas telefónicas na PJ só ocorreu com a massificação dos telemóveis. Para a sua execução técnica o telemóvel sob escuta era associado a um telefone fixo. Quando o telemóvel alvo era acionado, o telefone fixo correspondente tocava. O operador levantava o auscultador (cujo microfone estava desligado para evitar interferências sonoras) e encostava-o a um gravador vulgar para registar a conversação.     

     Porém, com o aumento exponencial das escutas telefónicas (só na área da investigação criminal relacionada com o combate ao tráfico e consumo de drogas chegou a haver cerca de 100 telefones fixos conectados a outros tantos telemóveis sob escuta) acontecia com frequência não se detetar a tempo qual o telefone que estava a tocar e perdia-se o registo da conversação. Foi inspirado num aparelho utilizado pela polícia espanhola que um técnico de comunicações da PJ, engenheiro Pina Batista, criou um equipamento (conhecido por pinamómetro) que fazia dispensar o levantamento do auscultador do telefone fixo acionando automaticamente o gravador.  

 

O método

     Não quero passar sem referir um tema que me parece andar esquecido há muito tempo: «o método». O modo de investigar não tinha só a ver com a intuição, como muitos afirmam, dado haver uma linha de conduta que ia passando dos agentes mais velhos para os mais novos que se baseava na experiência. Quando iniciei a minha carreira os agentes mais antigos diziam que os bons profissionais não se formavam em menos de dez anos.

     O método tinha, e ainda tem, várias vertentes que se baseiam na experiência adquirida no esforço de procurar compreender os outros, tendo em conta a sua origem social, a sua profissão, o local de nascimento, o de residência e a etnia; na análise do local do crime; na integração no meio e na criação de empatias para conseguir filtrar o essencial para a constituição da prova.

     Quando os interlocutores, por várias razões, se mostram retraídos em abordar os factos relacionados com a investigação, há toda a conveniência em encaminhar o diálogo para uma conversa tranquila sobre temas de interesse comum de modo a criar empatias. Não será de admirar se o interlocutor a dado momento desabafar sobre questões problemáticas relacionadas com a sua vida privada, na procura de compreensão ou solução das mesmas. Há muita gente que perante uma autoridade próxima da sua condição, como pode ser o caso dos agentes/inspetores da PJ, sente necessidade em desabafar os seus problemas pessoais. O investigador deve colaborar dando a sua opinião sincera na procura de soluções. Este modo de agir vai com certeza facilitar a abordagem da matéria criminal em investigação.

     Só a experiência de vida nos dá o traquejo necessário para compreender a personalidade das pessoas com quem nos confrontamos. Os diversos extratos sociais a que pertencem podem ser distinguidos pelo vocabulário, pelas profissões, pela maneira de vestir, pelo modo de ocupação dos tempos livres, pela casa onde habitam, pela zona de residência, pelo tipo de conduta ou pelos valores manifestados. Mas em termos psicológicos, o polícia de investigação criminal tem por formação e deformação profissional passar o tempo a tentar descortinar o caráter dos outros (é o que se chama na gíria “tirar o talhe”).

     A experiência fez com que desenvolvesse uma linha de pensamento baseada numa observação atenta, tendo por princípio que os criminosos não são pessoas muito diferentes de mim. Por isso o raciocínio sobre o modus operandi deve partir de ideias simples, tendo em vista o modo de agir do homem comum.

     Esta é a base. A evolução da investigação pode alterar, ou não, a convicção inicial da envolvente do crime. O investigador deve evitar ideias fixas sobre o modus operandi, mas tem toda a conveniência em manter uma linha de rumo para não se deixar dispersar. Deve porém ter a flexibilidade necessária para pôr em dúvida, ou até mesmo alterar a sua linha de pensamento quando surgirem sinais de sentido diferente.

     Em minha opinião, o “método” começou a declinar quando as escutas telefónicas passaram a ser o instrumento de trabalho dominante na investigação criminal.

 

A análise do local do crime

     A observação do local do crime tem de ter, por princípio, a racionalidade do modus operandi.

     Até 1982 éramos nós que elaborávamos os croquis do local do crime. As medições eram feitas a olho e a clareza do desenho dependia do jeito de cada um. Acompanhavam-nos ao local do crime um fotógrafo e um dactiloscopista. As fotografias eram agrafadas a folhas A4 com legendas normalmente escritas à mão.

     A entrada do João Paulo para a sala de desenho do LPC em 1982 veio alterar esta situação. Havia na altura um único desenhador, o Machado, que se recusava a acompanhar-nos alegando que estava sozinho e não aguentava com todo o trabalho. A partir de então o João Paulo e o Machado revezavam-se, passando a constituir mais um elemento nas inspeções ao local do crime. Os croquis transformaram-se em desenhos de qualidade que se foram aperfeiçoando com o decorrer do tempo. O esboço inicial era desenhado em papel vegetal que depois era transferido, na sala de desenho, para um papel especial através duma técnica com alguma complexidade. Este papel era dobrado em formato A4 e inserido no processo. O produto final era o desenho do local do crime com fotografias inclusas e legendas elaboradas por nós. Os primeiros desenhos deste novo formato tiveram um grande êxito, principalmente nos tribunais, porque bastava ver o desenho para se ter uma noção real do local do crime e das particularidades relevantes para a constituição da prova.

     Também até àquele ano, 1982, os retratos robot eram apenas desenhados em função da descrição da vítima ou da testemunha. De 1982 a 1998 passou a haver na sala de desenho caixas de kits de acetato compostas por faces, testas, queixos, cabelos, barbas e bigodes. Depois de completado pela vítima/testemunha, o conjunto escolhido era fotocopiado. A partir de 1998 surgiu uma nova técnica em computador.

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     Os médicos-legistas do IML recusavam ir ao local do crime, pelo que éramos nós quem observávamos o cadáver em primeira mão na procura de sinais de violência externa que, conjugados com o ambiente envolvente, nos dessem uma noção do modus operandi. Também éramos nós que fazíamos a recolha de vestígios, que depois enviávamos para o LPC - Laboratório de Polícia Científica - através de um ofício com os respetivos quesitos.

     Uma das nossas principais reivindicações foi, desde sempre, a criação de laboratórios ambulantes para avaliação, análise e recolha de vestígios, tal como existiam nos países mais desenvolvidos, o que só passou a ser uma realidade um ano depois de me ter reformado. Em 2006 foi adquirida a primeira carrinha-laboratório, equipada com algumas valências forenses, que entrou ao serviço na Diretoria de Lisboa. Hoje existem ao todo 13 carrinhas-laboratório, equipadas com todas as valências, distribuídas pelos departamentos da PJ. As carrinhas-laboratório têm competência nacional, a partir de Lisboa, a pedido do Ministério Publico para casos mais complexos e mediáticos.

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     Na segunda metade dos anos 70 a identificação de um cadáver deu brado pela sua originalidade. Fomos contactados por uma senhora que nos disse ter fortes suspeitas que o seu irmão tinha sido enterrado por identificar, há cerca de 2 meses, no cemitério de Setúbal. Para além disso, suspeitava que a sua morte não se devera a causa natural. Trazia consigo um documento militar do irmão com impressões digitais.

     Apesar do tempo já decorrido, decidimos avançar para a exumação do cadáver com a esperança de ainda ser possível a sua identificação através das impressões digitais. Pedimos que um técnico do IML nos acompanhasse a Setúbal, mas foi-nos dito não haver ninguém disponível. Devido à nossa insistência, acabaram por nos entregar um frasco com formol e disseram-nos para colocar a mão direita do cadáver lá dentro, que eles depois se encarregariam de “dar um jeito à coisa”.

     Combinámos o dia da exumação com o responsável pelo cemitério, para que o mesmo fosse fechado ao público, o que acontecia sempre que havia exumações, e lá fomos nós munidos do respetivo ofício judicial a autorizar a diligência investigatória.

     À medida que o coveiro ia cavando o cheiro ia-se intensificando, até que se tornou insuportável. Por sorte estava nesse dia uma forte ventania, o que permitiu protegermo-nos do cheiro colocando-nos junto à cova com as costas voltadas no sentido do vento. Mas o coveiro não aguentava o cheiro, pelo que resolveu encharcar um lenço com álcool puro, que trazia sempre consigo num frasco para esfregar as mãos, e colocou-o de modo a proteger o nariz e a boca. Mas mesmo assim não aguentava o cheiro por muito tempo. Para não ter que voltar constantemente à superfície pediu-me para lhe molhar o lenço com álcool sempre que necessitasse. Foi dramático.

     Conseguiu finalmente separar a parte direita do tronco do defunto, incluindo o braço, evitando as vísceras (o foco do mau cheiro), que se levou em seguida para a casa mortuária do cemitério, onde um de nós serrou o pulso do cadáver e colocou a mão no frasco com formol. Tivemos sorte porque tinha havido um processo de mumificação das extremidades do corpo, o que tornava possível a recolha de impressões digitais. O passo seguinte foi a entrega no IML do frasco com a mão.

     Os técnicos do IML fizeram um trabalho notável. Cortaram o indicador direito, aqueceram o dedo, amaciaram-no e massajaram-no. A seguir procederam a um corte delicado com um bisturi em volta do dedo, a meio, e retiraram a pele, que ficou com um formato de “meia-cana”. Depois de seca, a pele foi levada para a sede da PJ onde os nossos técnicos de dactiloscopia conseguiram retirar a respetiva impressão digital e compará-la com a do documento militar, provando-se assim que se tratava da mesma pessoa.

     Se bem me recordo, o caso tinha a ver com uma questão passional em que a causa da morte terá sido envenenamento. Mas o que ficou para a história foi a identificação do cadáver.

 

Atrás de tempo, tempo vem

     O Decreto-Lei n.º 275-A/2000 fez com que fossem transferidos, principalmente para a PSP, mas também para a GNR, cerca de 90% dos inquéritos a cargo da PJ.

     Era uma reivindicação antiga da generalidade dos funcionários de investigação criminal, mas já nessa altura havia quem a criticasse (eu apoiei) com o argumento de que a PJ, ao ser-lhe retirada a pequena criminalidade iria perder muita informação útil para a resolução de crimes mais complexos. Além disso, o facto de se perder o contacto direto com a "arraia-miúda", acabaria por, a médio ou a longo prazo, ter consequências nefastas para a investigação criminal.

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     Quando se aventou a hipótese das habilitações necessárias para concorrer à PJ passarem a ser licenciaturas, houve vários tipos de reações. Eu fui um dos céticos.

     Por essa altura pensava que o que se ganhava em capacidade tecnológica e conhecimentos do Direito, perdia-se na perspicácia, que está diretamente ligada ao traquejo adquirido na vida real, que do meu ponto de vista era essencial para o êxito da investigação criminal. Muitos dos agentes que conheci tinham sido profissionais noutras áreas desde muito jovens, incluindo o operariado, antes de concorrerem à PJ. Esta variedade de experiências de vida, que enriquecia a investigação criminal, iria perder-se porque a generalidade dos licenciados candidatar-se-iam logo após terem terminado os seus cursos. Ou seja, a sua experiência de vida iria ser muito influenciada pelo ambiente estudantil, que não lhes dava o traquejo necessário para enfrentar a vida real que iriam encontrar no dia-a-dia na investigação criminal.

     Os polícias, pensava eu, não tinham de ser especialistas em Direito. Bastava-lhes ter uma noção ampliada e direcionada para o concreto, sem ter de passar pelo estudo da sua vertente especulativa. Tinham era de saber disposições práticas e organizativas essenciais para poderem exercer a sua profissão com competência.

     Por outro lado, se antes havia quem se aproveitasse da PJ como trampolim para voos mais altos, com a introdução das licenciaturas corria-se o risco desse fenómeno se ampliar, o que seria bastante negativo para a instituição.

     Havia uma outra questão que me intrigava e que tinha a ver com a relação PJ/MP ou vice-versa, que nunca foi exemplo para coisa nenhuma: Como será esta relação – perguntava a mim próprio - quando os investigadores da PJ tiverem o mesmo nível de formação que os magistrados do MP? Será que vai haver uma maior aproximação, ou mesmo uma colaboração aberta e franca, tendo em conta que os objetivos a prosseguir vão no mesmo sentido? Só que o poder não pactua com a racionalidade. E quem tem, de facto, o poder, é o MP.

     Os argumentos em contrário apontavam para a necessidade dos investigadores criminais serem mais qualificados para poderem acompanhar a evolução de uma sociedade cada vez mais sofisticada.

     A este argumento costumava responder com alguma ironia, dizendo: «Se a sociedade continuar a desenvolver-se a este ritmo de qualificação, o que parece ser a tendência, daqui a alguns anos os investigadores da PJ serão professores doutores.»

     Um outro argumento era de que só com a entrada de licenciados seria possível manter o nível dos nossos ordenados.

     Esta medida foi implementada através do Decreto-Lei n.º 275-A/2000.

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     Hoje há quem afirme que a PJ se "aburguesou", transformando-se numa polícia com mentalidade elitista. Outros dizem que o modo de investigar passou a ser essencialmente de natureza técnica, em que a prova testemunhal deixou de ser valorizada pelos tribunais. Por outro lado, há quem argumente que, pelo facto de vivermos numa sociedade do conhecimento, os criminosos estão mais bem preparados para se defenderem das acusações que lhe são imputadas, o que dificulta sobremaneira o trabalho do investigador. A própria sociedade civil tem uma maior consciência dos seus direitos e o individualismo cerceia os deveres morais de cidadania.

     Ainda sou do tempo em que éramos nós o centro da investigação criminal, ou seja, os que construíam o puzzle da constituição da prova, sem interferência direta do MP, a não ser em casos pontuais, em que nos eram solicitadas diligências clarificadoras, necessárias para a dedução da acusação.

     Quando os magistrados do MP se “autopromoveram” a polícias, no exercício do poder que a Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro lhes conferiu com a titularidade da ação penal, começaram a delegar cada vez menos na PJ a investigação criminal, principalmente desde que os inspetores estão ao seu nível académico. Preferem outros órgãos de polícia mais obedientes que cumpram as suas ordens sem levantar questões. Ultimamente têm utilizado instituições do Estado, como, por exemplo, a Autoridades Tributárias e Aduaneiras para executarem diligências de investigação criminal em crimes que, pela sua importância, impacto público e complexidade, como é o "caso Sócrates", deveriam estar sob a alçada da PJ. A banalização desta atividade é perigosa porque pode pôr em causa o exercício de uma justiça justa.

     O facto de a maioria dos portugueses gostar de futebol e dar "bitates" de natureza técnica ou tática sobre os jogos, não faz deles treinadores profissionais do desporto rei.

     Alguns amigos com quem trabalhei vários anos e que continuam em serviço, dizem-me que sou o último dos românticos. Se na investigação criminal deixar de haver um certo romantismo é porque alguma coisa vai mal.

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     Esta é uma profissão em que se fazem amigos para a vida, pelo que continuo a manter contactos regulares com colegas aposentados e no ativo, principalmente os que estão colocados na minha antiga secção, ou os que por lá passaram; uns são do meu tempo e outros são jovens, e menos jovens, inspetores licenciados. Pelo que tenho constatado, acabei por me convencer de que exigir licenciaturas como habilitações mínimas para concorrer à PJ, foi uma medida acertada.

     Não restam dúvidas que numa sociedade do conhecimento, como é, ou pretende ser a nossa, polícias de investigação criminal licenciados estão melhor apetrechados para acompanhar as novas tecnologias e compreender as novas mentalidades.

     Mas é bom não esquecer que a história da PJ sempre se pautou por este paradigma. A Polícia Judiciária é e sempre foi uma polícia científica. É a sua mais-valia. O salto qualitativo mais importante após o seu nascimento ocorreu ainda no Torel em 1957, com a criação do Laboratório de Polícia Científica, do ARI (Arquivo de Registos e Informações), que incluía a lofoscopia[2] e da Escola Prática de Ciências Criminais.

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     A Polícia Judiciária, apesar das vicissitudes porque tem passado, mantém uma boa imagem pública. É o seu principal património. Mas arrisca-se a perdê-lo se nada fôr feito para alterar a situação atual. Todavia, qualquer alteração a ser feita no sistema deve ter como objetivo o interesse coletivo dos portugueses e não interesses corporativos, como lamentavelmente tem sido o procedimento habitual.

    

     A investigação criminal é uma atividade fantástica. Não acredito que haja alguém que tenha passado por esta experiência sem ficar marcado para a vida.

 

 

 
Samuel Antunes Teixeira
 
(originalmente publicado na revista Investigação Criminal, nº 10, Maio de 2016; republicado no Malomil com permissão do autor)

 




[1] - Dados recolhidos de uma entrevista concedida pelo ex-inspetor da PIDE Álvaro Pereira de Carvalho à jornalista Diana Andringa, para a série da RTP “Geração de 60” (1990).
(…) o ex-inspetor da PIDE disse ainda que «depois de tentativas artesanais de escuta, fora Barbieri Cardoso que, usando as suas boas relações com os serviços secretos franceses, conseguira o fornecimento de 45 unidades de escuta que permitiam à polícia  uma nova eficiência: assim que o telefone escutado ligava para outro, o sistema – montado no 4º andar do edifício da sede da PIDE, na R. António Maria Cardoso –  registava o número marcado, começando um gravador a rodar no momento em que era levantado o auscultador. Evitava-se, assim,  a baixa de tensão sentida nas escutas artesanais, alertando para a entrada de outro aparelho no circuito.
 
[2] A organização desta valência e a formação do pessoal que nela passou a trabalhar contou com a colaboração de um técnico espanhol.

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