Sei que foi numa quinta-feira de Maio
ou Junho de 1976, mas não sei especificamente a data precisa. Encontrando-me no
Rio de Janeiro em ano sabático, vi-me um dia convidado a assistir à sessão de
chá das quintas-feiras da Academia Brasileira de Letras, a convite do escritor
e académico maranhense Josué Montello, que viria a ser Presidente da Academia
entre 1993 e 1995. O convite deve-se ao facto de eu haver travado conhecimento
com uma filha de Josué Montello, por ocasião de uma comunicação feita por mim
na Universidade Federal Fluminense em Niterói, e de, com ela e o genro do
ilustre académico, ter passado um domingo em Teresópolis, na opulenta casa de
campo de um ricaço construtor luso-brasileiro, vago parente meu, por via materna. Embora quase
semi-analfabeto, esse “vago parente meu” podia dar-se ao luxo de hospedar na
sua vivenda pessoas de alto gabarito, tais como a filha e o genro do “imortal”
Josué Montello, sendo o genro advogado e vereador da Prefeitura do Rio de
Janeiro, a quem aliás o “vago parente meu” tinha doado uma boa parcela de
terreno para eles poderem construir uma casa de campo junto da dele, em
compensação de rotineiras e inócuas facilidades burocráticas com que o jovem
advogado e vereador o tinha mimoseado.
Quando cruzei os umbrais da casa de
Machado de Assis (era assim também chamada pelo facto de o autor de Dom
Casmurro ser um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras e o seu
primeiro Presidente, em regime de perpetuidade), já quase todos os imortais
(quarenta, à imitação da prototípica e celebrada Academia Francesa), os membros
correspondentes estrangeiros (vinte, segundo os estatutos) e os convidados
desse dia aí se encontravam. Introduzido imediatamente na Sala de Chá pelo meu
anfitrião, Josué Montello, fui por ele apresentado ao Presidente da Academia
dessa época, Austregésilo de Athayde. Seguidamente, uma após outra, enquanto
tomava o meu chá e circulava na sala, vim a descobrir uma série de rostos
conhecidos, uns pessoalmente – Adriano Moreira, membro estrangeiro da Academia
- e outros de fotografia e de televisão: Marcello Caetano, Hermano Saraiva
(então exilados no Brasil, como Adriano Moreira), Cyro dos Anjos e João Cabral
de Melo Neto, ambos membros da Academia e escritores, naturalmente: romancista
o primeiro e poeta o segundo.
Por meio de Adriano Moreira, que
conhecera nos Estados Unidos e via com alguma frequência no Rio de Janeiro,
onde ele vivia com a família, e de quem me tornara amigo, já sabia que ele
andava de candeias às avessas com os outros dois membros correspondentes
estrangeiros portugueses: Marcello Caetano e Hermano Saraiva. Pelo meu lado, de
bem com todos eles, a todos cumprimentei e com todos troquei algumas
impressões, não podendo esquecer a cortesia e a afabilidade com que Marcello
Caetano e Hermano Saraiva tiveram a gentileza de me tratar, tendo-me o primeiro
dito, para grande ... e agradável surpresa minha, modéstia à parte, que tinha
lido “com gosto e proveito” alguns artigos meus e a minha edição do Cancioneiro
de Dona Cecília de Portugal, publicados na revista Ocidente, de Lisboa, e
tendo-me dito o segundo que estava à espera da publicação da minha tese de
doutoramento sobre Fernão Álvares do Oriente, de que ele tinha lido um excerpto
e a conclusão, publicados no suplemento literário do Diário Novidades,
de Lisboa: que achava interessantíssimas e de grande relevância as referências
de Fernão Álvares a Camões. (Apresso-me a proclamar alto e bom som, entre
parêntesis, que ardentemente espero que essas leituras de Hermano Saraiva em
nada tenham contribuído para ele vir a engendrar aquela coisa fantasista, mal
parida e malfadada que dá pelo nome de Vida Ignorada de Camões. E entre
parêntesis também, e em nome da justiça equitativa, apresso-me a contrabalançar
esta observação com um facto de certa importância: a contribuição de Hermano
Saraiva para levar ao conhecimento das grandes massas do público português
tesouros ignorados da cultura plurissecular portuguesa, através de programas
televisivos bastante apreciados pelo seu carácter popular.)
Nessa tarde de chá na Academia
Brasileira de Letras, Cyro dos Anjos repetiu-me oralmente, muito sensibilizado,
acentuava ele, o que já me tinha dito por carta, em referência a um
artigo meu sobre o seu romance Abdias, que tinha sido publicado
no suplemento literário de um jornal de Moçambique, graças à amabilidade de
Montezuma de Carvalho, juiz em Lourenço Marques, que eu conhecera no Verão de
1972, por ocasião da minha longa visita a Angola e a Moçambique. Aproveitei
também esse breve encontro com o prestigioso jornalista, com o alto funcionário
público, a nível estadual e federal, e com o professor universitário, para lhe
dizer do enorme interesse com que os meus alunos e eu líamos e analisávamos nos
cursos de literatura brasileira o seu romance mais conhecido: O
amanuense Belmiro.
Com João Cabral de Melo Neto, troquei
algumas impressões sobre a sua poesia granítica e, principalmente, sobre o
prazer com que os meus alunos e eu líamos o seu nunca por demais celebrado
poema dramático: Morte e Vida Severina. Tendo-lhe
perguntado quando teríamos novo livro seu, obtive como resposta um lamento
inesperado e meio bizarro. É que, por esse tempo, ele tinha praticamente a musa
em férias, por se ver forçado a pagar um alto preço pelas honras de ser no
Senegal o decano do corpo diplomático, uma vez que esse cargo, que ele
acumulava com o de embaixador na Mauritânia, no Mali e na Guiné-Conakry, lhe
consumia todo o tempo que, noutras circunsâncias e noutros países, seria de
lazer, querendo dizer com isso que se via obrigado a prestar toda a espécie de
serviços, de primeira necessidade, sobretudo aos embaixadores caloiros, a
começar pelo alojamento e a acabar pela procura de produtos alimentícios e de
gasolina para os automóveis.
Com uma simplicidade exemplar e com a
cortesia que distingue os diplomatas brasileiros, justamente orgulhosos por
fazerem parte de uma escola de diplomacia, a do Itamaraty ou Casa de Rui
Barbosa, que pede meças à do Vaticano e à do Palácio das Necessidades, João
Cabral de Melo Neto emocionou-se ao lembrar-lhe as apoteoses acontecidas em teatros de Lisboa, Coimbra e Porto,
por ocasião da representação da sua Morte e Vida Severina. É que no
final da representação tinha sido ovacionado e levado em ombros por actores e
membros da assistência.
Voltando aos três membros
correspondentes portugueses, presentes nessa sessão de chá das quintas-feiras
da Academia Brasileira de Letras, quero frisar apenas uma faceta peculiar da
personalidade de Adriano Moreira que eu já conhecia, mas que fiquei a conhecer
melhor, por me ser dada a oportunidade de testemunhá-la em acto: a presença,
num espaço relativamente exíguo e fechado, de dois adversários políticos com
quem ele estava de relações cortadas, não obstou a que se sentisse e
comportasse com o mesmo à vontade com que se sentiria e comportaria se eles não
estivessem presentes. Era o transmontano a viver ao vivo o seu ideal de
dignidade humana, de autenticidade, de integridade e de estoicismo por que
sempre se tem pautado a sua vida pública e privada.
Ouviu-se um som inefável, muito
provavelmente em conformidade com um ponto do ritual mais vetusto e venerando que a própria Academia. Os imortais
transpuseram solenemente, subtilmente e pensativamente os umbrais misteriosos
do Sancta Sanctorum, para aí
perorarem, ponderarem e pontificarem sobre matérias transcendentais e questões
de lana caprina, enquanto nós, os simples mortais, regressámos à rotina
prosaica e cinzenta dos filisteus.
António Cirurgião
Espero que saiba que o que faz é serviço público. Obrigada.
ResponderEliminarApenas uma pequena correção. O Itamaraty é a Casa de Rio Branco, José Maria da Silva Paranhos Jr., Barão do Rio Branco, o patrono da diplomacia brasileira. A Casa de Rui Barbosa é uma instituição cultural sedeada na antiga residência desse grande jurista baiano, no Rio de Janeiro.
ResponderEliminarPrezado Sr. Rubem Amaral Jr.,
EliminarMuito obrigado pela correcção.
Cordialmente,
António Cirurgião