sábado, 14 de outubro de 2017

Histórias de mulheres: a Noite da Mais Devassa.


 
 

 
 
Por coincidência, na mesma semana e no mesmo dia comprei dois livros na mesma livraria (já agora, na livraria do Centro Cultural de Belém, porque o que é bom, muito bom, deve recomendar-se).
Comprar dois livros na mesma livraria não é caso raro para ninguém; raro é comprar dois livros tão bons e aparentemente tão diversos mas que acabam por ter um sentido convergente quando escrevo este pequenino texto. Os livros são: War Porn, de Christoph Bangert, e Inside The Favelas – Rio de Janeiro, de Douglas Mayhew. São ambos livros de fotografia, o último com imagens do quotidiano nas favelas cariocas, os grafitos, os emaranhados de fios eléctricos ou telefónicos, as vielas de casas sem reboco, o tijolo à mostra. War Porn é outra coisa. Imagens de guerra, como o nome indica, imagens terríveis, das mais terríveis que vi, e que Bangert nunca publicara, tal a sua violência e o seu drama.
Vem isto a propósito de uma coisa que não tem nada a ver, mas que tem tudo a ver, o Brasil, a guerra e a fotografia. Falo do trabalho do fotojornalista André Liohn, nascido em 1974 em Botucatu, no Brasil, e que tem imagens publicadas em revistas e jornais tão prestigiosos como Der Spiegel, Time, Newsweek, Le Monde ou Veja. Liohn tem fotografo a guerra, albergando no seu portefólio imagens de uma crueldade imensa, próximas das do livro que atrás se falei, War Porn. E também tem fotografado a pobreza e a violência no seu país natal, o que evoca, ainda que mais remotamente, o livro In The Favelas, de que atrás também falei. Tudo se conjuga, portanto.
Entre as obras de Liohn (se quisermos, de André Liohn Garcia de Oliveira), há a Líbia, o que lhe valeu ser o primeiro sul-americano galardoado em 2012 com a Medalha de Ouro Robert Capa. Há também a Somália, nada bonito de ver. Há os refugiados do Mediterrâneo, há a queda do ISIS, há o tremor de terra no Haiti. E há o Brasil, país-irmão, em versão hard core, como infelizmente começa a ser tudo o que vem daquela terra de sol, onde deus e do diabo se confrontam hora a hora. A galeria de imagens do Liohn sobre a sua terra pode ser vista aqui, no site da Prospekt Photographers. Deliberadamente, não vou mostrá-las, o leitor que as veja se quiser – e ousar. No projecto «Revogo», André Liohn mostra a face escura da lua, onde o sol nunca se põe porque nunca chega a erguer-se. Talvez seja por isso que as suas imagens sejam nocturnas, todas ou quase todas. No panteão de violência de André Liohn, há quanto a mim uma imagem de uma violência extrema, brutal, a mais violenta e brutal de todas quantas jamais saíram da sua máquina (e não estou a fazer género). É esta:
 
 
 
 
        Uma mulher tratada como gado, literalmente, naquilo que parece ser um ringue de boxe, mas não é, ou um curral de animais, que não é mas bem podia ser. Bebendo cerveja, os homens apalpam a sua carne, comentando-a, ou não. Uma feira, um ajuntamento de muita e muita gente. Homens, quase só homens (avista-se o rosto do que parece ser uma mulher). A luz incide sobre um dos rostos, fazendo realçar o seu perfil gritante, a boca em uivo a centímetros de distância da mulher em exposição. Não vemos a cara dela, nem o que sente ao ouvir o que lhe gritam, as mãos passando lúbricas pelo seu corpo. Uma mão parece apalpar-lhe um seio, outra prepara-se para lhe dar uma palmada, outra surge de alguém cujo rosto não se vê, apenas o braço surgindo de uma camisa branca. Histórias de mulheres, enfim. E a violência horrível, tão horrível como os piores cenários de guerra que André Liohn fotografou e fotografa. Lemos num jornal sobre uma mostra de «Revogo» feita em São Paulo, depois de se falar de outra imagem tremenda de Liohn, a de uma mãe que deixa um recém-nascido num sofá para se drogar com crack: «Uma das imagens mais comentadas da exposição foi tirada em um concurso promovido em um baile de funk, na periferia carioca, por uma marca de cerveja que premiava “a garota mais devassa”. Na foto, uma mulher seminua, de pé em um palco, tem o corpo tocado por homens enquanto agacha. “Há quem possa argumentar que essa mulher é dona do próprio corpo e protagonista da própria vida. Então porque a mulher não pode decidir sobre o próprio corpo quando a questão é o aborto? O que vemos aí é alguém em busca de um prêmio que vai tirá-la do anonimato. Curioso que essa cerveja tenha entendido que a devassidão é um atributo no país, enquanto o que acontece é que temos que ser devassos para sair do nosso anonimato”, defende Liohn.»

 
 
 
 

 
 
A Noite da Mais Devassa, um baile funk promovido pela cerveja com o mesmo nome, Devassa. Já viram a publicidade da Devassa? Vejam. E vejam as imagens de guerra de André Liohn, por favor. Esta é uma fotografia de guerra, pensando bem. Igual às da Síria, ou pior que elas. Porque não a tomamos justamente como uma imagem de combate, de um combate travado todos os dias em todos os lugares deste planeta a que chamamos mundo e que é um lugar estranho, como aqui dizemos vezes sem conta.
 
António Araújo  
 
 

 
P.S. – esta e outras imagens de André Liohn estão patentes no Sintra Press Photo 2017, em conjunto com as do grande enorme João Pina (um abraço, João!) e de Siegrief Modola. Inaugura hoje, termina dia 30.  

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