A
propósito dessas manifestações contra a guerra do Vietname, costumo contar
sempre, quando me ponho a reminiscer sobre esses anos politicamente quentes,
ou, melhor dito, ferventes, que as três universidades americanas que mais peso
real e simbólico tiveram no movimento antiguerra foram a Columbia University,
em Nova Iorque, no Leste, a University of California, em Berkeley, no Oeste, e
a University of Wisconsin, em Madison, no centro dos Estados Unidos.
Pelo que diz
respeito às manifestações na Universidade de Wisconsin, não posso esquecer que
o Capital Times, o principal jornal diário de Madison, capital do Estado
de Wisconsin e sede da dita universidade, com uma população estudantil de
43.000 mil alunos, chegou a propor em editorial que se fizesse uma vedação de
arame farpado entre a universidade e a cidade, empresa de difícil realização –
diziam com razão os que se opunham a essa medida tão radical –, uma vez que
parte da universidade, a começar pela biblioteca e a acabar por muitas das
residências estudantis (ou dormitórios), passando pelo Centro de Estudos
Luso-Brasileiros, estava localizada no coração da cidade, quase junto do
Capitólio, sede do poder legislativo e do poder administrativo.
Pelo
que se refere às manifestações de rua, em Madison, também não posso esquecer-me
da resposta que um dia um dos meus colegas deu ao professor do seminário anual
de Linguística, Dr. António Salles, quando este lhe perguntou por que tinha
faltado a dois seminários consecutivos. Por uma razão muito simples: tinha
participado nos protestos públicos – foi a resposta do meu colega. Protestos a
favor da guerra ou contra a guerra? - Que importava isso? – respondeu o meu
colega. Era uma coisa diferente, interessante, exótica, e isso bastava como
razão justificativa. Aliás, respostas idênticas a essa foram-me dadas a mim nos
meus primeiros três ou quatro anos de professor na Universidade de Connecticut,
em Storrs, com início em Setembro de 1969. É que as manifestações – algumas até
com certa violência –, durante esses primeiros anos em que aí ensinei,
constituíram uma das actividades mais visíveis e importantes da vida
universitária. Recordo, por exemplo, que no ano em que a polícia matou quatro
estudantes da Kent State University, no estado de Ohio (facto ocorrido a 4 de
Maio de 1970), foram tantas as manifestações de massas no vasto campus da
Universidade de Connecticut, incluindo não só alunos, mas também professores e
funcionários, que a administração da universidade, com a aprovação do senado
universitário, veio a decretar que a matéria dada durante as duas ou três
últimas semanas de aulas desse semestre, ou seja, a partir da data da morte
desses quatro estudantes, não podia ser incluída nos exames finais, o que levou
muitos estudantes a não pôr os pés na aulas durante essas últimas semanas e a
passar o tempo em manifestações políticas e a consumir drogas, desde a maconha
ao LSD.
Casos
tristemente célebres na Universidade em que fiz o meu doutoramento –
Universidade de Wisconsin – e na Universidade em que passei a ensinar, logo que
terminei o doutoramento – Universidade de Connecticut – foi a morte de um
estudante de pós-graduação na primeira, por meio de uma bomba lançada durante a
noite no edifício moderníssimo onde se faziam pesquisas de física nuclear, e na
segunda o incêndio na sede do corpo de cadetes da Força Aérea, conhecido como
ROTC (Reserve Officers’ Training Corps).
A propósito do
fogo posto e no considerável estrago causado na sede do ROTC da Universidade de
Connecticut, num sábado à noite, continua-me gravado na memória, como se fosse
hoje, o que um aluno meu de literatura portuguesa e de origem portuguesa,
Orlando Ferreira de nome e futuro coronel da Força Aérea Americana, me disse a
mim e aos seus colegas de curso, na primeira aula a seguir a esse incêndio: que
os incendiários ousaram cometer esse horrendo crime porque os cadetes tinham
passado esse fim de semana, a várias milhas de distância do campus
universitário, em manobras bélicas. Estivessem eles no campus e ninguém se
teria atrevido a aproximar-se sequer da sede, quanto mais a pegar-lhe fogo, por
meio de bombas incendiárias.
E a propósito
do que foi o movimento contestatário na Universidade de Wisconsin, em Madison,
apraz-me referir, para que conste, dadas as suas características únicas e
peculiares, o papel desempenhado pelo líder desse movimento, Paul Soglin,
oriundo de Hyde Park, um subúrbio de Chicago, Illinois, onde nascera em 1945.
Era ainda aluno de liceu quando iniciou a sua vida de agitador político, no
melhor sentido da palavra, organizando associações cívicas para promover os
direitos fundamentais do homem, melhores condições de habitação e de acesso ao
ensino, entre as minorias étnicas, especificamente, os negros, como então se
dizia, sem pecar contra a “political correctness”. Em 1962, Paul Soglin
matriculou-se na Universidade de Wisconsin, em Madison, e em 1966 concluiu, com
distinção, o bachelor’s degree em estudos pré-médicos. Em seguida, na mesma
Universidade, fez, durante três anos, cursos de pós-graduação em História.
Insatisfeito com essa área de especialização, matriculou-se na Faculdade de
Direito e em 1972 recebeu o respectivo diploma. Líder nato e carismático e com
a experiência que levava dos seus anos de liceu em Hyde Park, como organizador
de associações contestatárias, Paul Soglin, apenas entrou para a Universidade
de Wisconsin, viu-se universalmente aclamado para chefiar os movimentos
estudantis que passariam a protestar e a combater, sem quartel, contra a Guerra
do Vietname.
Embora eu
tenha iniciado o meu curso de doutoramento em Espanhol e Português, durante o
verão de 1965, na Universidade de Wisconsin, foi sobretudo durante o curso de
verão de 1967 e do ano lectivo de 196-69, que eu pude seguir de perto o papel
desempenhado por Paul Soglin na luta contra a Guerra do Vietname. Jamais
poderei esquecer-me da primeira vez que o vi. Subia eu a colina que levava à
Bascom Hall, onde funcionava o Departamento de Espanhol e Português, quando
deparo com uma multidão enorme de estudantes, sentados ou deitados na relva, a
ouvir um discurso político. Era Paul Soglin a perorar. De pé, ladeado de outros
quatro ou cinco estudantes, no pedestal da imponente estátua de Lincoln,
erguida majestosamente em frente do edifício administrativo da universidade, a
referida Bascom Hall, que coroava a Bascom Hill, proclamava ele, por
alto-falante, perante milhares de estudantes: - “Madison ouve as nossas vozes; o Governo de Wisconsin ouve as
nossas vozes; Washington ouve as nossas vozes; o mundo inteiro ouve as nossas
vozes”. Repetida esta frase, Paul Soglin rematou o seu discurso incendiário com
estas palavras de ordem: - “Toca a marchar para o
Capitólio”. E os estudantes, entusiasticamente movidos e exaltados, desceram a
colina e marcharam destemidos e clamorosos pela State Street em direcção ao
Capitólio, confrontados com o gás lacrimogénio, servido em generosas doses
pelos agentes de polícia, formados em cordão, e protegidos por reluzentes
escudos de aço, por baionetas, capacetes e cassetetes.
E – caso único em todos os Estados Unidos
–, sobretudo em virtude do elevado número de estudantes em relação aos
habitantes da cidade de Madison, nas eleições realizadas em 1973, Paul Soglin,
o líder do movimento contestatário contra a Guerra do Vietname, foi eleito, pelo
Partido Democrático, para Presidente da Cámara (Mayor) da cidade de
Madison, capital do estado de Wisconsin. Com 27 anos de idade, tornou-se no
Presidente da Câmara mais novo na história dessa cidade. Conhecido em todo o
país, conseguiu realizar uma série de reformas importantes, de carácter
progressista, e conseguiu irritar os poderes convencionais, a nível estadual e
a nível federal, ao entregar, durante a primeira das três viagens que fez a
Cuba, em 1975, as chaves da cidade de Madison a Fidel Castro, como se pode ver
numa fotografia que correu mundo. Para testemunho da celebridade nacional de
Paul Soglin, basta dizer que ele fez manchete em prestigiosas revistas
americanas, tais como Glamour e Look, e foi objecto de documentários
televisivos e de filmes.
Perante esse
fenómeno inédito, um dos três canais nacionais de televisão (nesse tempo ainda
só havia três: ABC, CBS e NBC) acompanhou de perto e a rigor o trajecto
político desse estudante carismático, melhor dito, as metamorfoses por que
passou, durante os três primeiros mandatos consecutivos de Presidente da Câmara
de Madison. Tendo começado por trajar à hippie, isto é, por andar de longas
guedelhas despenteadas, de bigode, de camisa desabotoada e de cor psicadélica,
de calças de ganga sujas e rotas nos joelhos, de sandálias a cair aos pedaços,
e às vezes descalço, aí pelo meio do segundo mandato acabou por ser absorvido
pelo “establishment”. Por outras palavras: virou burguês, exteriormente, o que
quer dizer que, com excepção do seu icónico bigode, que ainda hoje usa, com 73
anos, passou a andar de cabelo penteado, de barba feita, de camisa engomada, de
fato e gravata, e passou a desempenhar as suas funções de Presidente da Câmara
como um autêntico burocrata, embora sempre de tendências extremamente liberais
e progressistas, tão liberais e progressistas, que, sobretudo durante as
campanhas eleitorais, era alcunhado de comunista.
No final do
terceiro mandato, em 1979, foi convidado como “fellow” da School of Government
da Harvard University, e em seguida passou dez anos a exercer a advocacia. Nas
décadas de 80 e de 90, voltou a fazer-se eleger para Presidente da Câmara,
acabando por exercer esse cargo durante 17 anos no século XX. Morreu o século
XX, nasceu o século XXI e Paul Soglin voltou a exercer dois mandatos de
Presidente da Câmara da cidade de Madison, em 2011 e 2015, o que lhe valeu o
cognome de “Presidente da Câmara vitalício de Madison” (“Madison’s Mayor for
life”).
Tendo-se
candidatado uma vez para deputado federal e outra para governador de Wisconsin
e tendo perdido ambas as vezes, a segunda no dia 2 de abril de 2019, com 73
anos, levou os observadores encartados a opinar que Paul Soglin talvez tenha
chegado ao fim da sua longa carreira política.
E com o
presumível fim da longa carreira política do lendário Paul Soglin, meu mítico
colega na Universidade de Wisconsin, atinge também o fim a minha breve e
nostálgica evocação das manifestações políticas contra a Guerra do Vietname,
nas universidades americanas.
Manchester, 3
de Abril de 2019
António
Cirurgião
Seria ao tempo em que Sena aí leccionava ?
ResponderEliminarFoi, sim. Jorge de Sena ensinou na Universidade de Wisconsin, em Madison, entre 1965 e 1970. Jorge de Sena também foi mimoseado com boas doses de gás lacrimogénio. E, em solidariedade com os estudantes, foi ao ponto de dar aulas em sua casa, para não furar a greve e para não prejudicar os alunos. E agora passo a citar um extracto da carta que ontem, 14 de abril de 2019, a Professora Doutora Isabel de Sena, filha mais velha de Jorge de Sena, me escreveu, numa espécie de comentário ao meu texto:
ResponderEliminar“[Em 69-70] o meu pai fez parte da comissão que apresentou ao Chancellor Young [...] a lista de petições dos estudantes, a mais importante sendo a exigência para que se criasse um departamento de Black Studies (nessa altura ainda não havia a ideia de Latino Studies, mas sim de feminismo, embora não ainda com departamento próprio). Seria um dos primeiros do país, mas não nesse momento, porque o Chancellor Young lhes disse que sim aos professores que integravam essa comissão, mas depois roeu-lhes a corda, motivo pelo qual o depto [Departamento] de Espanhol e Português em Madison ficou na penúria, e outros também. Entre os que se foram embora em consequência desse enfrentamento: Diego Catalán Menéndez Pidal, o meu pai, Sánchez Romeralo, e outras luminárias, vários dos quais foram prestigiar os novos departamentos da U. da California, então em expansão (UCSB tinha acabado de se mudar para o novo campus, antes disso funcionava num edifício na Riviera).”
António Cirurgião
Muito obrigado pelo esclarecimento.
EliminarJorge de Sena,uma vida de trabalho,de dedicação,de cidadania.
Jose