terça-feira, 30 de setembro de 2025

São Cristóvão pela Europa (321).

 

 

 

Continuo a percorrer o Vale de Pustertal no Norte de Itália. São inúmeras as imagens do nosso Santo.

A igreja gótica de São Nicolau em Villa di Sopra (Oberwielenbach), situada a 1400 metros de altitude, pode ser vista de bem longe. Por isso, dispõe de um mural de São Cristóvão, consolo dos viajantes da rota que por aqui passava. A data da fachada, certamente de um restauro, é 1768.



Em San Lorenzo di Sabato (St. Lorenzen), o mesmo modelo. Numa parede exterior da igreja paroquial de São Martinho, um belo mural.




Em Mantana (Montal), também gótica, a igreja de Santa Margarida ostenta uma pintura mural de São Cristóvão datada do final do Século XV.

 


 

E, finalmente num cenário de grande beleza, a igreja de São Tiago de Onies (Onach):

 



 

                                                        Fotografias de 4 de Agosto de 2025

                                                                                           José Liberato




sexta-feira, 26 de setembro de 2025

São Cristóvão pela Europa (320).

 

 

 

No Norte de Itália, a Igreja de São Wolfgang em Sorafurcia (Geiselsberg) foi consagrada em 1484. O fresco exterior representando São Cristóvão ostenta uma data, de forma críptica para os olhos de hoje. A data é 1489, o quatro sendo representado por um oito truncado.




 

Em Anterselva di Sotto (Antholz), a igreja paroquial é também dedicada a São Wolfgang, Santo muito presente na cultura germânica. Alemão, foi bispo de Regensburg.

No exterior, um enorme fresco do nosso Santo. No interior, o altar-mor possui uma imagem numa das abas laterais.

 




Em Nessano (Nasen), a Igreja de São Tiago, em estilo gótico tardio, construída em 1474, tem um mural representando São Cristóvão, luxuosamente vestido, mais uma vez pintado por Simon von Taisten.

 



Finalmente, a Igreja de São Cassiano em Perca (Percha), gótica, também da autoria de Simon von Taisten, o grande pintor da Região.

 



Perante tantos Santos Cristóvãos em tão poucos quilómetros, faz sentido evocar o escritor francês Alexandre Masseron (1880-1959) referindo-se ao nosso Santo: único gigante entre os santos, único santo entre os gigantes.

 

                                                     Fotografias de 4 de Agosto de 2025.

                                                                                         José Liberato


quarta-feira, 24 de setembro de 2025

O mais genial escritor português queimou as suas memórias da Guerra Colonial. Porquê?

 




          É um romance avassalador, dotado de uma estrutura onde não faltam histórias que se desprendem como bonecas russas, onde o inescrutável assume proporções de uma investigação quase policial, o neto do mais genial escritor português soube que o seu avô prodigioso incendiou o manuscrito do que seria a sua obra luminescente, as coisas da guerra, porque ele combatera na região de Cabinda e no estrito círculo familiar falava de horrores, de sofrimentos incalculáveis, confessava que os companheiros mortos lhe eram presenças fantasmáticas.

O maestro da narrativa é o neto, mas há também a avó, as tias-manas, a estranha companheira do avô em fim de vida, a governanta, as lembranças da mãe, prematuramente falecida, cuja ausência é sublinhada há anos por um quarto trancado na casa do avô. Enfim, enigmas em catadupa. Falecido o escritor que era uma instituição nacional, a quem só fugira o Nobel, era esse ponto de África que corria o risco de se transformar numa lenda, ele nunca escondera em público e em privado que aquela guerra era trauma que não se apagava. Será que o grande escritor não deixara uma cópia da sua obra mais esperada?

O escritor nomeia como testamenteiro este neto, ele abre-nos a porta à sua infância, à vida agitada por que passara a mãe, uma quase vagabunda, vivera em comunidade lá para os Algarves, numa atmosfera de indecências. Assim vai detonar uma narrativa de presente e passados, em ritmo turbilhonante: O Último Avô, por Afonso Reis Cabral, Publicações Dom Quixote, recentemente dado à estampa.

O leitor não desarma porque a narrativa do neto é enleante, urdida de diálogos surpreendentes, rapidamente de agiganta aquele escritor tirânico, mitómano e confabulador, há sempre tempestades nos diálogos entre escritor e a sua mulher, um escritor cheio de lábia apetrechado de marketing. “Os jornalistas perguntavam-lhe se escreveria sobre Angola. Quando não lhe perguntavam, ele mesmo encaminhava a conversa, dizia que sim, um dia sim, quando estivesse à altura do tema escreveria tudo o que vira e fizera, o quanto sofrera. Ele sabia o que significava ter a G3 por confidente. Por enquanto, a arma continuaria a única guardiã das suas mágoas.”

          A mãe do narrador, conhecida por Formiga, parecia destinada a ser mais do que a confidente do genial escritor, talvez uma sucessora. Acabara por ser a grande deceção do escritor e do pai. Neto e avó convivem felizes numa casa em Azeitão, já a avó se libertara do tirânico marido. O avô faiscava admirações, daí Regina, aquela companheira muito mais nova. É à filha mais nova, a Formiga, que ele conta os seus segredos africanos. Chegava a agir brutalmente em meio familiar, o genial escritor é bem capaz de atrocidades e truculências como esmagar pássaros bicos de lacre. Seria reminiscência do que ele passara na guerra?

          O neto lança-se na investigação, pretende saber se existe ou não um manuscrito. Há fotografias africanas, o avô contara histórias sobre certas mulheres, ele que dizia: “Nós éramos miúdos que achavam que eram homens. A recruta bárbara meteu-nos na cabeça que éramos homens. Nas éramos miúdos que, ao fim de seis meses de uma dureza insana, tinham de ir para a guerra a achar que eram homens. Ainda hoje os admiro, amo-os, aos meus camaradas. Deram o que tinham, tantos deram tudo. E só tinham a juventude para dar.”

          Aquele avô quis fazer do neto escritor, foi mais um desencontro, o genial escritor viveu desencontros familiares em alta voltagem. A pesquisa do manuscrito é desmesurada: nos dezassete mil volumes da biblioteca, abanaram-se molduras, bateram-se nas paredes à procura de fundos falsos, as gavetas dos móveis, os ficheiros dos computadores, as pastas de arquivo. Nada. Há mais histórias do avô, uma muito comovente, já na atmosfera da guerra civil em Angola, envolvendo Zacarias, a Jóia e a Estrela da Piedade. O neto é pressionado pelas tias-manas e pelo editor, por Regina e pela sua amiga Cecília, havia que descobrir o mais perfeito diamante da herança literária do genial escritor.

          Este romance de Afonso Reis Cabral atravessa três gerações. Estou absolutamente seguro de que será procurado avidamente por gente de todas as idades. Mas haverá um segmento desse público que lhe ficará profundamente agradecido por um parágrafo inspirador, talvez único em toda a literatura portuguesa contemporânea, é uma homenagem rendida aos antigos combatentes:

          “Restam uns trezentos mil soldados da velha guerra. A estatística manda que os encontremos na rua, na sucursal do banco ou dos correios, nos cafés. Frequentam os transportes públicos e sentam-se ao nosso lado na Loja do Cidadão. São eles que conversam entre si durante horas nos bancos de jardim. Uns falam alto, outros perderam a voz. Suspeito de que muitos dos que agarramos pelos pulsos e tornozelos às camas dos hospitais, e que bradam como cercados pelo inimigo, também sejam antigos combatentes. Alguns escondem-se à paisana de velho e à paisana de soldado: como ninguém lhes dá mais de setenta anos, não parecem velhos o suficiente e ninguém desconfia de que combateram em África. Outros entraram em lares.

          Vivem nas nossas casas, comem da nossa comida, bebem da nossa água e despejam os mesmos autoclismos. Usam o nosso papel higiénico. Se os observarmos com amor e algum cuidado, espantamo-nos e compreendemos que são nossos pais e avós e que, enquanto não morrerem, estão vivos; ao mesmo tempo vivos e invisíveis, porque são velhos e não olhamos, porque são veteranos e não ligamos.”

          Não estou aqui para contar o desenlace de toda esta investigação, acreditem que será inesperado, o neto percorre arquivos, até pede uma entrevista a um camarada do genial escritor, o retrato do ex-alferes Anselmo Baltazar é outro primor literário. Fica-se a saber a verdade de tudo. É um neto queixoso, justamente iracundo, que irá preparar a vingança da História, e paradoxalmente tornar mais grada a lenda do tão esperado romance que não conhecerá a luz do dia. Como tudo isso aconteceu é matéria para que o leitor se encontre com este romance inovador em que a Guerra Colonial anda obsidiante entre a verdade e a mentira.

          Uma obra-prima.

 

Mário Beja Santos



 


terça-feira, 23 de setembro de 2025

São Cristóvão pela Europa (319).

 

 

 

O Putstertal, o Vale do Puster, estende-se entre os Alpes Centrais e os Dolomitas, desde a fronteira com a Áustria até Bressanone. Fazia parte de uma das principais rotas comerciais da Europa medieval, a Strada d’Alemagna. Ligava Veneza ao Norte. Circulava o vinho de Sul para Norte e o sal de Norte para Sul.

Não é de admirar que o caminho estivesse repleto de murais de São Cristóvão avistáveis pelos viajantes nos seus perigosos trajectos. Vou apresentar catorze!

É o caso da igreja de São Jorge de Tesido (Taisten), datada do Século XV, uma das mais antigas da rota. Caracteriza-se por uma mistura de românico e gótico e por um grande fresco exterior de 1498, da autoria do pintor tirolês Simon von Taisten.

 



Em Valdaora di Sopra (Oberolang), a igreja paroquial foi consagrada em 1472. Durante um restauro da fachada em 1997, fez-se uma sensacional descoberta. Um São Cristóvão com 8 metros de altura foi trazido à luz do dia. Tinha sido coberto de gesso no Século XVII e perdera-se na memória local. É da autoria de Friderich Pacher, outro pintor tirolês.




Muito perto, em Valdaora di Mezzo (Mitterolang), a igreja paroquial tem Santo Egídio como patrono.

Possui uma imagem do nosso Santo. No interior, um altar é dedicado aos catorze santos auxiliares, várias vezes aqui mencionados. Entre eles, Santo Egídio e São Cristóvão.

 


 



 

                                                                Fotografias de 4 de Agosto de 2025

                                                                                                   José Liberato




sábado, 20 de setembro de 2025

Tristeza não paga dívidas, e, solidão, quero-te bem longe de mim.

 




          Em todas as idades e contextos da vida, o suporte social, as redes sociais de apoio, do amor e da amizade, têm um papel determinante. Como observa logo na introdução a autora, a solidão e a tristeza são experiências que fazem parte obrigatoriamente do desenvolvimento humano; são sentimentos transversais a todas as fases do desenvolvimento; e quando não há estratégias adequadas para lidar com a solidão e a tristeza, estas podem tornar-se patológicas, com efeitos danosos na saúde mental e no bem-estar. Que o leitor esteja atento: tristeza é uma coisa, a solidão outra. Há na página do Serviço Nacional de Saúde uma definição de solidão onde se diz que é um sentimento subjetivo que se relaciona com a ausência de contacto, de sentimento de pertença ou com a sensação de se estar isolado e, obviamente, interfere (e de que maneira!) na qualidade de vida de todos nós. A tristeza manifesta-se como ausência de ânimo ou alegria, há um sentimento de infelicidade, um estado depressivo ou nostálgico, até mágoa.

          A autora observa que a solidão é muitas vezes referida como a nova pandemia contemporânea e pode promover um aumento dos sentimentos de tristeza, criando um ciclo que pode culminar em outra problemática, a depressão, questão de fundo que dá impulso a investigações sobre o impacto da solidão e da tristeza na sociedade. Para compreender a tristeza e solidão, a autora passa em revista um conjunto de teorias que deixam claro a complexidade da experiência emocional, oferecendo modelos explicativos diferenciados sobre as emoções, tanto para as positivas como para as negativas. E também a autora analisa com detalhe o que é  tristeza e a solidão, matérias que não possuem definições consensuais, e também põe foco na epidemiologia da tristeza e solidão, apresentando resultados num estudo promovido pelo Serviço Nacional de Saúde intitulado A Solidão e o Isolamento Social (https://www.sns24.gov.pt/guia/a-solidao-e-o-isolamento-social/#existem-dados-sobre-a-solidao-em-portugal).

          Perpassa neste estudo de Gina Tomé a questão central da vida com relações, lembrando o efeito nefasto da falta de relações interpessoais positivas, que podem induzir os sentimentos de tristeza e solidão, um impacto de avaliações muito difíceis, até porque estes sentimentos podem manifestar-se em qualquer período da vida. Por exemplo, falando de um estudo com uma amostra de jovens com idades entre os 17 e os 24 anos, os autores verificaram a existência de uma relação entre a tristeza e a solidão. “Os jovens que referiam sentir maior pressão social para evitar emoções negativas como a tristeza, relatavam níveis mais elevados de solidão, o que pode levar à conclusão de que a pressão social para não se sentir triste não apenas reduz o bem-estar geral, mas também contribui para um ciclo em que a tristeza leva a mais solidão, ciclo que pode levar a um aumento da intensidade das emoções relativas”. No caso da solidão nos idosos, esta é predominante à falta de apoio social próximo, sem desprimor que devemos ao longo da vida procurar assegurar a saúde psicológica mantendo contactos férteis com gente por quem nutrimos ternura. “Ao longo do nosso percurso, passamos por situações positivas ou negativas que nos desafiam. Nesse sentido, a tristeza e a solidão não devem ser vistas apenas como dificuldades, mas como ocasiões para refletir e desenvolver competências socio emocionais relevantes. Cada um tem opção de lidar com as emoções, positivas ou negativas, com uma atitude aberta e sem julgamentos.”

          Capítulo fundamental da obra de Gina Tomé tem a ver com soluções e estratégias para aprendermos a lidar e a aceitar a solidão, para reforçar as relações interpessoais na adolescência e na vida adulta. Elenca essas terapias cognitivas e comportamentais e enumera um conjunto de estratégias que nos ajudam a aprimorar competências socio emocionais. Por exemplo num desses modelos avultam: a autogestão, capacidade de regular com eficácia as emoções, pensamentos e comportamentos; autoconsciência, capacidade de identificar as emoções e pensamentos e compreender o modo como estas emoções e estes pensamentos influenciam os nossos próprios comportamentos; consciência social, capacidade de se colocar no lugar dos outros;  relações interpessoais, capacidade de estabelecer redes afetivas e de relação positiva com pessoas de diferentes origens e diferentes meios; tomada de decisão responsável, capacidade para realizar escolhas, respeitem os interesses, os valores e as carências individuais e coletivas.

          A autora releva a importância das relações interpessoais positivas e significativas, lembrando possíveis estratégias como a participação em atividades comunitárias, a promoção de escuta ativa, ser proativo na promoção das relações sociais e empático. E sublinha igualmente a importância do autocuidado (conjunto de ações que cada um pratica para cuidar de si próprio), neste autocuidado têm preponderância: a prática de exercício físico; uma alimentação nutritiva e saborosa; bons hábitos de higiene; utilização de terapêuticas ajustadas, lembrando-se que os medicamentos sem prescrição médica tomados arbitrariamente com os de prescrição médica podem afetar negativamente a saúde mental e física; ter uma higiene do sono; praticar uma gestão do tempo de ecrã e redes sociais, tal como de consumos que podem influenciar negativamente o bem-estar e a saúde mental (tabagismo, imoderação no álcool e no consumo de cafeína); possuir autoconhecimento. E nesta conformidade adaptar estratégias práticas para a promoção do autocuidado, tais como organizar o tempo; fazer um diário da gratidão; fazer um uso disciplinado da internet, nunca perdendo os hábitos de leitura; criar uma lista de atividade que gosta de fazer e se sente bem ao praticá-las; em termos de check-up emocional, aprender a refletir sobre como se sente; criar o hábito de comunicar regularmente com alguém significativo pode ajudar a prevenir a solidão e os sentimentos de tristeza.

          Em jeito de despedida, elenca recomendações para decisores e políticas públicas, no nosso tempo a prevenção comunitária de solidão e do isolamento social necessita ir além dos projetos individuais, as políticas públicas ajudam, quer a criar redes de apoio direcionadas para as pessoas mais vulneráveis, quer a construir respostas adequadas a essas necessidades, daí o papel ingente da participação comunitária; mas há também as políticas públicas amigas da saúde psicológica. A autora dá-nos uma lista de grupos comunitários e de redes de voluntários espalhados pelo país, caso do Programa Aconchego, no Porto, que promove o alojamento de estudantes do ensino superior, estudantes que se domiciliam em casas de idosos; ou o Projeto Letras Prá Vida, Oficinas de alfabetização de adultos promovidas pela escola superior de comunicação de Coimbra, ou ainda o Projeto Café Memória, local de encontro destinado a pessoas com problema de memória ou demência, aos seus familiares, amigos e cuidadores, para partilha de experiências e suporte mútuo.

          Enfim, um ensaio de extrema utilidade que oferece estratégias práticas para transformar a tristeza e a solidão em experiências de crescimento.

 

                    Mário Beja Santos

 


sexta-feira, 19 de setembro de 2025

A primeira biografia romanceada de Amílcar Cabral.

 




 


    É um título surpreendente, pois não é uma biografia pautada pelo rigor historiográfico, nem é meramente um romance onde se iludem factos comprovadamente verídicos ou escamoteiem eventos ou documentos fidedignos. No prefácio à obra Amílcar Cabral, O Africano que Abalou o Império, por José Alvarez, Âncora Editora, 2025, o General Pezarat Correia presta esclarecimentos quanto à essência deste trabalho: “É um ensaio biográfico porque o tema é a vida de Amílcar Cabral, sustentada por uma exaustiva investigação de fontes primárias. É um romance porque nessa vida sobressai a acidentada e apaixonada vida amorosa de Cabral, traduzida em dois casamentos dominados pelo empenhamento ideológico e político do próprio e das suas companheiras. E é ficção histórica porque tratando-se da descrição de um percurso político, de uma época e das suas circunstâncias, onde se cruzam personalidades reais e em situações reais, toda ela é enriquecida com a óbvia imaginação criativa do autor na descrição e reprodução de cenários, da tensão nas reuniões, dos diálogos ideologicamente discordantes, das cumplicidades e traições que ali se cruzam.”

          Numa apresentação quase fascicular, acompanhamos o nascimento de Cabral na Guiné, conhecemos a sua filiação, a sua partida para Cabo Verde, os seus estudos primários e secundários, a sua atração pela criação literária, um curso liceal concluído com alta distinção e a sua partida em 1945 para Lisboa, beneficiava de uma bolsa de estudos. Chega e bate à porta da Casa dos Estudantes do Império, o prédio ainda está de pé ali no cruzamento do Arco do Cego, Rua Dona Estefânia e Avenida Duque d’Ávila, com uma lápide evocativa, bem maltratada à porta. Temos diálogos ficcionados, Cabral frequenta o Instituto Superior de Agronomia, cedo revela as suas capacidades, volta a emergir a ficção nos diálogos entre Cabral e Maria Helena Rodrigues, será a sua primeira mulher, casarão em Lisboa antes de partirem para a Guiné, em 1952, ele já formado, ela em vias de conclusão dos estudos. Somos introduzidos no círculo de amizades de ambos, a relação amorosa do casal é mostrada nos seus pontos de atrito, no contacto com outros estudantes africanos que vai começar a consolidar-se a preocupação nacionalista e anticolonialista de Cabral.

          Já com os estudos adiantados, em 1949, Cabral passa férias em Cabo Verde, nova ficção nos diálogos com os seus ternos familiares, revelam-se resquícios de uma ternura muito especial pela Rosa, a quem Cabral dedicara o poema Rosa Negra. Conversa ficcionada com o Governador, como mais tarde haverá ficção na conversa com o Governador da Guiné Diogo de Mello e Alvim, nas preocupações martirológicas de alguns autores até se inventou que Cabral fora expulso da Guiné, ele que ainda não tinha ficha na PIDE, o que ele tinha era um ataque de malária, tal como a mulher, a Junta de Saúde recambiou-os para Lisboa.

          Em 1951, Cabral está em fase de conclusão dos seus estudos, continua a reunir com amigos nacionalistas de várias colónias portuguesas, em 20 de dezembro de 1951, ele e Maria Helena casam no Registo Civil na Avenida Guerra Junqueiro, a festa é no Café Colonial, na Avenida Almirante Reis nº 24, come-se o seu prato favorito, bacalhau. Recebe a classificação de 18 valores, parte à frente para a Guiné, instala-se na Granja de Pessubé, prepara o ambiente para a chegada de Maria Helena. Tece um programa de comunicação sobre as noções básicas das potencialidades agrícolas da Guiné, chama a atenção; planificou o Recenseamento Agrícola da Guiné Portuguesa, fará trabalho de campo em grande parte do território em 1953. O seu irmão Luís chega À Guiné e vai trabalhar na Casa Gouveia. Maria Helena sofre muito com o clima. Nasce a filha mais velha, Iva Maria.

          Regresso a Lisboa, Cabral retoma atividades profissionais; perito na área da erosão dos solos, é atraído por trabalhos em Angola. José Alvarez faz constar uma viagem relâmpago de Cabral, de Angola a Bissau, em 1956, seria a data mítica da fundação do PAI. Encontro em Lisboa com Viriato da Cruz, nacionalista angolano, vestígios de relações tensas com Maria Helena. A pretexto de uma digressão em África para pelo estado português, Cabral percorre meios nacionalistas, em 1959 está de facto em Bissau, é o verdadeiro lançamento do partido, aliás dele só se falará em 1960, na Conferência de Tunes, a reunião veio no rescaldo dos graves acontecimentos havidos no porto do Pidjiquiti, um número impressionante de mortos e feridos na repressão policial.

          Novamente em Lisboa, em 1959, dentro em breve terá ficha na PIDE, Cabral prepara a sua partida para o exílio, está em contacto com outras figuras preponderantes da luta independentista. Está presente em Tunes na Conferência dos Povos Africanos, segue para Londres, apresenta o seu primeiro documento com alguma ressonância internacional, The Facts about Portugal African Colonies, assina Abel Djassi, faz amizade com o escritor e jornalista Basil Davidson. Instala-se em Conacri, por ali anda Viriato da Cruz, a sua atividade debate-se em várias frentes: tem um emprego do Estado, estrutura a organização do partido, sente a hostilidade de outros movimentos independentistas, recebe apoio da China para a formação de quadros da guerrilha, Luís Cabral já partiu para o exílio, vai-se-lhe juntar Rafael Barbosa, que terá um papel preponderante na mobilização de jovens para a Guiné-Conacri. Maria Helena será professora num liceu em Conacri, Mário Pinto Andrade é o dirigente do MPLA com quem Cabral aqui mais convive.

          1961 significa o nascimento da Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas, a causa independentista destas colónias entra no tabuleiro dos jogos africanos e na atenção da China, da URSS e países que lhe são afetos. O regime do Estado Novo sofre sérios abalos, desde o sequestro do paquete Santa Maria até à queda do Estado da Índia. Em Conacri, Cabral fundou o Lar dos Combatentes. Novas tensões no casal, Maria Helena está novamente grávida, é encaminhada para Rabat. A prisão de Rafael Barbosa em Bissau, em março de 1962, obriga a uma restruturação das células da guerrilha interna.

          Em 1962, no segundo semestre, começa a atividade subversiva e no início de 1963 a luta armada e o terramoto demográfico, os grupos do PAIGC procuram instalar-se em pontos de difícil acesso, ocupam várias áreas no Sul, confinando as populações que estão do lado português, ficando na órbita de quartéis; atravessa-se o Corubal e o PAIGC também se instala entre o Xime e o Xitole, são posições praticamente inamovíveis, o mesmo acontecerá nas densas florestas do Morés e áreas contíguas. O PAIGC lança a propaganda de que domina dois terços do território, uma franca fantasia, mas criou a vida extremamente penosa aos militares e milícias guineenses que se espalham por grande parte do território. Quando se chegar a 1964 não só se atingiu a paridade armamentista no que toca ao Exército, como o PAIGC desencadeia uma nova tormenta com a proliferação de minas antipessoal e anticarro.

          É facto que a partir de 1963, é o PAIGC exclusivamente que está no terreno, a estrutura de liderança é solida e a partir do Congresso de Cassacá, em fevereiro de 1964, instituem-se as FARP e o poder militar fica subordinado ao poder político. Dá-se a rutura relacional entre Cabral e Maria Helena, Moscovo torna-se no principal fornecedor de armamentos. E data de 1963 a denúncia de que nem tudo está bem dentro da organização, como se revelará no Congresso de Cassacá, que levará a afastamentos e execuções.

          José Alvarez, capítulo a capítulo, conduz-nos à ascensão internacional de Cabral, o ideólogo, o utópico, o diplomata, o visionário que prepara a declaração unilateral da independência; como irá refazer a sua vida amorosa com Ana Maria Voss, e, insidiosamente, vão emergindo os contenciosos entre guineenses e cabo-verdianos, até se chegar ao assassinato de 20 de abril de 1973. E conclui Alvarez: “Foi o pai da independência da guiné, promovendo a integração social, o ensino e o respeito pela mulher, mas acabou traído pelos camaradas guineenses do partido, tendo sido assassinado na condição de cabo-verdiano. Desconhece-se quem ordenou a sua morte, sabendo-se apenas que quem o assassinou e os seus cúmplices eram todos elementos da fração do PAIGC que pretendia afastar os cabo-verdianos da direção.”

Há que reconhecer que a obra de José Alvarez é um meritório esforço didático-pedagógico bem-sucedido, e espera-se que desta homenagem ao africano que abalou o Império surjam mais trabalhos na sua senda.


                                                                            Mário Beja Santos 


terça-feira, 16 de setembro de 2025

São Cristóvão pela Europa (318).

 

 

 

A região italiana de Trentino- Alto Adige é a mais ao Norte do país. Fazendo parte antes do território austríaco, só foi integrada na Itália em 1920, após a Primeira guerra Mundial.

Sinal importante dessa realidade é o facto da grande maioria das localidades ter um duplo nome (italiano e alemão), em especial na província de Bolzano. Procurarei dar nota das duas denominações em cada caso.

As imagens de São Cristóvão encontram-se por todo o lado. Entre montanhas e vales.

Em Versciaco di Sopra (Vierschach), mesmo junto à fronteira com a Áustria, perto da igreja paroquial, existe uma pequena imagem esculpida na madeira de um tronco. Do local, pode-se apreciar os Dolomitas.




Em Mose (Moos), uma fonte de 2007 homenageia o nosso Santo com uma imagem esculpida em madeira:

 


 

A igreja de Santa Maria Addolorata (Nossa Senhora das Dores) situa-se em Santa Maria (Aufkirchen), num cenário de grande beleza. A actual igreja é dos finais do Século XV. Na sua fachada, um grande fresco de São Cristóvão. No interior, outro fresco imponente.

 




 

                                                                Fotografias de 4 de Agosto de 2025

                                                                                                    José Liberato


domingo, 14 de setembro de 2025

Gajas despidas.

 


                                                                    Egon Schiele


A Escola de Belas Artes de Damasco, na Síria, acaba de proibir os modelos vivos nus para efeitos da formação artística dos estudantes. O nu e o despido: trata-se de uma distinção de créditos firmados na história da arte. O nu representa o corpo humano como problema. Nele condensa-se de forma insigne o antigo pensamento de que só o homem é o objecto da arte. E é na relação com ele que tudo o mais adquire significado artístico. Na representação do nu dá-se forma ao humano como objecto de si mesmo, e, nessa medida, o nu é desde logo sinal de liberdade. Ao contrário do despido, furta-se às categorias de vergonha e pudor, de sinal positivo, bem como às pudibundas e moralizantes, de sinal negativo. Nada esconde e nada censura. É antes um acto de evidência; aponta e diz : é assim. A relação do nu com o sexo é, por isso, uma relação necessária, dado que também ele faz parte da condição humana como tal. Não actua, contudo, como estímulo sexual directo; o facto de o poder fazer é um sintoma de malogro artístico por parte do criador ou de falta de educação sentimental, estética, do lado do receptor. Os casos de fronteira não invalidam a distinção, bem pelo contrário, provam-na. A necessidade de argumentar a favor de um ou do outro demonstra que se opera precisamente com base nos dois polos individualizados. Bem entendido, o nu não fica relegado a uma esfera de idealidade asséptica, não deixa de ter uma relação directa com o sexo, mas trata-se de uma relação de outra ordem. Ao despido sem referência ao nu incumbe-lhe despertar o instinto sexual natural, não codificado culturalmente, que por vezes é enaltecido como a verdade do sexo. É antes a sua incompreensão. Subjaz a esse tipo de interpretações uma consideração natural-objectivante que se guia sub-repticiamente pelo humano-subjectivo. A triste e cega cópula animal prova-o. As relações sexuais humanas, pelo contrário, estão sob a égide da negatividade, da recusa da imposição instintiva em que o fim natural é soberano. Nelas o trabalho, a reelaboração consciente do dado natural, torna-se um fim em si mesmo: transforma-se em jogo sempre repetido, sempre da capo, por que se faz conduzir pela alteridade inexaurível do outro.  O despido é também uma especificidade humana. É livre na medida em que decorre do nu – é esta a ordem, o specificum do humano. É isso que os fundamentalistas islâmicos não podem tolerar: que o despido seja uma afirmação do nu. Pois é nessa dobra que se funda a possibilidade da mulher – é dela e só dela que finalmente se trata – ser um sujeito sexual livre. E é também aí que se pode dar qualquer coisa como o respeito pelo pudor feminino. Ao interditar a aprendizagem da representação do nu, os talibãzinhos negam a aprendizagem da forma básica do respeito: a igualdade na diferença. Por essa razão não espanta que também queiram enfiar às mulheres burcas da cabeça aos pés; sejam elas impostas ou envergadas motu proprio, seja a servidão opressiva ou voluntária, o apagamento do feminino torna as relações sexuais predatórias, a imagem disforme do natural. Advinha-se sem dificuldade quem é o caçador e quem é a presa. E, no entanto, têm medo os selvagens pela simples razão de que na mulher nua só conseguem ver a gaja despida.


                                                                                        João Tiago Proença


São Cristóvão pela Europa (317).


 

 

Terminei a minha digressão pela Região italiana de Veneto na província de Vicenza.

Em Cogollo del Cengio, a Igreja de São Cristóvão foi objecto de profundas remodelações, a última em 1927.

No centro da fachada uma imagem do nosso Santo e no interior uma tela.

 




 

Em Bertesina, nos arredores de Vicenza, a Igreja Paroquial de São Cristóvão está em obras. Apesar disso, é possível descortinar um belo friso onde o nosso Santo ocupa a posição central.

 

 


Também passei pela Região de Friuli- Venezia Giulia e o seu distrito de Udine.

Em Gradisca del Sedegliano, a Igreja de São Jorge Mártir é uma igreja campestre consagrada em 1547.

Na fachada, possui um magnífico fresco de São Cristóvão do Século XVI com 6 metros de altura. É atribuído à escola de Giovanni Antonio de Sacchis dito o Podernone

 

 



 

A cidade de Cividale del Friuli, a escassos 9 km da fronteira com a Eslovénia, junto ao rio Natisone, foi fundada por Júlio César com o nome Forum Iulia de onde deriva Friuli que dá nome à cidade e a toda a toda a região.

Ainda hoje as ruas têm um carácter medieval. Uma das suas igrejas notáveis é a de São Pedro e São Brás, do Século XV na sua presente forma.

A fachada foi, entre 1506 e 1508, profusamente pintada de frescos da autoria de Zanne de Toscanys e Pauli Impintor.

Entre eles, um grande São Cristóvão, concebido para afastar o perigo de inundações. Com cerca de quatro metros de altura, deveria ser visto de longe.

O nosso Santo veste uma túnica ocre até aos joelhos, presa à cintura por um belo cinto. Um manto cobre-Lhe os ombros, apertado por uma fivela de ouro. O Menino veste também uma túnica ocre, a cor predominante do fresco. O verde das flores do bastão é vibrante, e as tâmaras também podem ser vislumbradas. O Menino segura o globo terrestre na mão esquerda e um pergaminho com a inscrição Ego sum caput mundi, Eu sou a cabeça do mundo, na outra.

 





                                        Fotografias de 31 de Julho e 8 de Agosto de 2025 

                                                                                                José Liberato