sexta-feira, 19 de setembro de 2025

A primeira biografia romanceada de Amílcar Cabral.

 




 


    É um título surpreendente, pois não é uma biografia pautada pelo rigor historiográfico, nem é meramente um romance onde se iludem factos comprovadamente verídicos ou escamoteiem eventos ou documentos fidedignos. No prefácio à obra Amílcar Cabral, O Africano que Abalou o Império, por José Alvarez, Âncora Editora, 2025, o General Pezarat Correia presta esclarecimentos quanto à essência deste trabalho: “É um ensaio biográfico porque o tema é a vida de Amílcar Cabral, sustentada por uma exaustiva investigação de fontes primárias. É um romance porque nessa vida sobressai a acidentada e apaixonada vida amorosa de Cabral, traduzida em dois casamentos dominados pelo empenhamento ideológico e político do próprio e das suas companheiras. E é ficção histórica porque tratando-se da descrição de um percurso político, de uma época e das suas circunstâncias, onde se cruzam personalidades reais e em situações reais, toda ela é enriquecida com a óbvia imaginação criativa do autor na descrição e reprodução de cenários, da tensão nas reuniões, dos diálogos ideologicamente discordantes, das cumplicidades e traições que ali se cruzam.”

          Numa apresentação quase fascicular, acompanhamos o nascimento de Cabral na Guiné, conhecemos a sua filiação, a sua partida para Cabo Verde, os seus estudos primários e secundários, a sua atração pela criação literária, um curso liceal concluído com alta distinção e a sua partida em 1945 para Lisboa, beneficiava de uma bolsa de estudos. Chega e bate à porta da Casa dos Estudantes do Império, o prédio ainda está de pé ali no cruzamento do Arco do Cego, Rua Dona Estefânia e Avenida Duque d’Ávila, com uma lápide evocativa, bem maltratada à porta. Temos diálogos ficcionados, Cabral frequenta o Instituto Superior de Agronomia, cedo revela as suas capacidades, volta a emergir a ficção nos diálogos entre Cabral e Maria Helena Rodrigues, será a sua primeira mulher, casarão em Lisboa antes de partirem para a Guiné, em 1952, ele já formado, ela em vias de conclusão dos estudos. Somos introduzidos no círculo de amizades de ambos, a relação amorosa do casal é mostrada nos seus pontos de atrito, no contacto com outros estudantes africanos que vai começar a consolidar-se a preocupação nacionalista e anticolonialista de Cabral.

          Já com os estudos adiantados, em 1949, Cabral passa férias em Cabo Verde, nova ficção nos diálogos com os seus ternos familiares, revelam-se resquícios de uma ternura muito especial pela Rosa, a quem Cabral dedicara o poema Rosa Negra. Conversa ficcionada com o Governador, como mais tarde haverá ficção na conversa com o Governador da Guiné Diogo de Mello e Alvim, nas preocupações martirológicas de alguns autores até se inventou que Cabral fora expulso da Guiné, ele que ainda não tinha ficha na PIDE, o que ele tinha era um ataque de malária, tal como a mulher, a Junta de Saúde recambiou-os para Lisboa.

          Em 1951, Cabral está em fase de conclusão dos seus estudos, continua a reunir com amigos nacionalistas de várias colónias portuguesas, em 20 de dezembro de 1951, ele e Maria Helena casam no Registo Civil na Avenida Guerra Junqueiro, a festa é no Café Colonial, na Avenida Almirante Reis nº 24, come-se o seu prato favorito, bacalhau. Recebe a classificação de 18 valores, parte à frente para a Guiné, instala-se na Granja de Pessubé, prepara o ambiente para a chegada de Maria Helena. Tece um programa de comunicação sobre as noções básicas das potencialidades agrícolas da Guiné, chama a atenção; planificou o Recenseamento Agrícola da Guiné Portuguesa, fará trabalho de campo em grande parte do território em 1953. O seu irmão Luís chega À Guiné e vai trabalhar na Casa Gouveia. Maria Helena sofre muito com o clima. Nasce a filha mais velha, Iva Maria.

          Regresso a Lisboa, Cabral retoma atividades profissionais; perito na área da erosão dos solos, é atraído por trabalhos em Angola. José Alvarez faz constar uma viagem relâmpago de Cabral, de Angola a Bissau, em 1956, seria a data mítica da fundação do PAI. Encontro em Lisboa com Viriato da Cruz, nacionalista angolano, vestígios de relações tensas com Maria Helena. A pretexto de uma digressão em África para pelo estado português, Cabral percorre meios nacionalistas, em 1959 está de facto em Bissau, é o verdadeiro lançamento do partido, aliás dele só se falará em 1960, na Conferência de Tunes, a reunião veio no rescaldo dos graves acontecimentos havidos no porto do Pidjiquiti, um número impressionante de mortos e feridos na repressão policial.

          Novamente em Lisboa, em 1959, dentro em breve terá ficha na PIDE, Cabral prepara a sua partida para o exílio, está em contacto com outras figuras preponderantes da luta independentista. Está presente em Tunes na Conferência dos Povos Africanos, segue para Londres, apresenta o seu primeiro documento com alguma ressonância internacional, The Facts about Portugal African Colonies, assina Abel Djassi, faz amizade com o escritor e jornalista Basil Davidson. Instala-se em Conacri, por ali anda Viriato da Cruz, a sua atividade debate-se em várias frentes: tem um emprego do Estado, estrutura a organização do partido, sente a hostilidade de outros movimentos independentistas, recebe apoio da China para a formação de quadros da guerrilha, Luís Cabral já partiu para o exílio, vai-se-lhe juntar Rafael Barbosa, que terá um papel preponderante na mobilização de jovens para a Guiné-Conacri. Maria Helena será professora num liceu em Conacri, Mário Pinto Andrade é o dirigente do MPLA com quem Cabral aqui mais convive.

          1961 significa o nascimento da Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas, a causa independentista destas colónias entra no tabuleiro dos jogos africanos e na atenção da China, da URSS e países que lhe são afetos. O regime do Estado Novo sofre sérios abalos, desde o sequestro do paquete Santa Maria até à queda do Estado da Índia. Em Conacri, Cabral fundou o Lar dos Combatentes. Novas tensões no casal, Maria Helena está novamente grávida, é encaminhada para Rabat. A prisão de Rafael Barbosa em Bissau, em março de 1962, obriga a uma restruturação das células da guerrilha interna.

          Em 1962, no segundo semestre, começa a atividade subversiva e no início de 1963 a luta armada e o terramoto demográfico, os grupos do PAIGC procuram instalar-se em pontos de difícil acesso, ocupam várias áreas no Sul, confinando as populações que estão do lado português, ficando na órbita de quartéis; atravessa-se o Corubal e o PAIGC também se instala entre o Xime e o Xitole, são posições praticamente inamovíveis, o mesmo acontecerá nas densas florestas do Morés e áreas contíguas. O PAIGC lança a propaganda de que domina dois terços do território, uma franca fantasia, mas criou a vida extremamente penosa aos militares e milícias guineenses que se espalham por grande parte do território. Quando se chegar a 1964 não só se atingiu a paridade armamentista no que toca ao Exército, como o PAIGC desencadeia uma nova tormenta com a proliferação de minas antipessoal e anticarro.

          É facto que a partir de 1963, é o PAIGC exclusivamente que está no terreno, a estrutura de liderança é solida e a partir do Congresso de Cassacá, em fevereiro de 1964, instituem-se as FARP e o poder militar fica subordinado ao poder político. Dá-se a rutura relacional entre Cabral e Maria Helena, Moscovo torna-se no principal fornecedor de armamentos. E data de 1963 a denúncia de que nem tudo está bem dentro da organização, como se revelará no Congresso de Cassacá, que levará a afastamentos e execuções.

          José Alvarez, capítulo a capítulo, conduz-nos à ascensão internacional de Cabral, o ideólogo, o utópico, o diplomata, o visionário que prepara a declaração unilateral da independência; como irá refazer a sua vida amorosa com Ana Maria Voss, e, insidiosamente, vão emergindo os contenciosos entre guineenses e cabo-verdianos, até se chegar ao assassinato de 20 de abril de 1973. E conclui Alvarez: “Foi o pai da independência da guiné, promovendo a integração social, o ensino e o respeito pela mulher, mas acabou traído pelos camaradas guineenses do partido, tendo sido assassinado na condição de cabo-verdiano. Desconhece-se quem ordenou a sua morte, sabendo-se apenas que quem o assassinou e os seus cúmplices eram todos elementos da fração do PAIGC que pretendia afastar os cabo-verdianos da direção.”

Há que reconhecer que a obra de José Alvarez é um meritório esforço didático-pedagógico bem-sucedido, e espera-se que desta homenagem ao africano que abalou o Império surjam mais trabalhos na sua senda.


                                                                            Mário Beja Santos 


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