domingo, 14 de setembro de 2025

Gajas despidas.

 


                                                                    Egon Schiele


A Escola de Belas Artes de Damasco, na Síria, acaba de proibir os modelos vivos nus para efeitos da formação artística dos estudantes. O nu e o despido: trata-se de uma distinção de créditos firmados na história da arte. O nu representa o corpo humano como problema. Nele condensa-se de forma insigne o antigo pensamento de que só o homem é o objecto da arte. E é na relação com ele que tudo o mais adquire significado artístico. Na representação do nu dá-se forma ao humano como objecto de si mesmo, e, nessa medida, o nu é desde logo sinal de liberdade. Ao contrário do despido, furta-se às categorias de vergonha e pudor, de sinal positivo, bem como às pudibundas e moralizantes, de sinal negativo. Nada esconde e nada censura. É antes um acto de evidência; aponta e diz : é assim. A relação do nu com o sexo é, por isso, uma relação necessária, dado que também ele faz parte da condição humana como tal. Não actua, contudo, como estímulo sexual directo; o facto de o poder fazer é um sintoma de malogro artístico por parte do criador ou de falta de educação sentimental, estética, do lado do receptor. Os casos de fronteira não invalidam a distinção, bem pelo contrário, provam-na. A necessidade de argumentar a favor de um ou do outro demonstra que se opera precisamente com base nos dois polos individualizados. Bem entendido, o nu não fica relegado a uma esfera de idealidade asséptica, não deixa de ter uma relação directa com o sexo, mas trata-se de uma relação de outra ordem. Ao despido sem referência ao nu incumbe-lhe despertar o instinto sexual natural, não codificado culturalmente, que por vezes é enaltecido como a verdade do sexo. É antes a sua incompreensão. Subjaz a esse tipo de interpretações uma consideração natural-objectivante que se guia sub-repticiamente pelo humano-subjectivo. A triste e cega cópula animal prova-o. As relações sexuais humanas, pelo contrário, estão sob a égide da negatividade, da recusa da imposição instintiva em que o fim natural é soberano. Nelas o trabalho, a reelaboração consciente do dado natural, torna-se um fim em si mesmo: transforma-se em jogo sempre repetido, sempre da capo, por que se faz conduzir pela alteridade inexaurível do outro.  O despido é também uma especificidade humana. É livre na medida em que decorre do nu – é esta a ordem, o specificum do humano. É isso que os fundamentalistas islâmicos não podem tolerar: que o despido seja uma afirmação do nu. Pois é nessa dobra que se funda a possibilidade da mulher – é dela e só dela que finalmente se trata – ser um sujeito sexual livre. E é também aí que se pode dar qualquer coisa como o respeito pelo pudor feminino. Ao interditar a aprendizagem da representação do nu, os talibãzinhos negam a aprendizagem da forma básica do respeito: a igualdade na diferença. Por essa razão não espanta que também queiram enfiar às mulheres burcas da cabeça aos pés; sejam elas impostas ou envergadas motu proprio, seja a servidão opressiva ou voluntária, o apagamento do feminino torna as relações sexuais predatórias, a imagem disforme do natural. Advinha-se sem dificuldade quem é o caçador e quem é a presa. E, no entanto, têm medo os selvagens pela simples razão de que na mulher nua só conseguem ver a gaja despida.


                                                                                        João Tiago Proença


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