| Egon Schiele |
A Escola de Belas Artes de
Damasco, na Síria, acaba de proibir os modelos vivos nus para efeitos da
formação artística dos estudantes. O nu e o despido: trata-se de uma distinção
de créditos firmados na história da arte. O nu representa o corpo humano como
problema. Nele condensa-se de forma insigne o antigo pensamento de que só o
homem é o objecto da arte. E é na relação com ele que tudo o mais adquire
significado artístico. Na representação do nu dá-se forma ao humano como
objecto de si mesmo, e, nessa medida, o nu é desde logo sinal de liberdade. Ao
contrário do despido, furta-se às categorias de vergonha e pudor, de sinal
positivo, bem como às pudibundas e moralizantes, de sinal negativo. Nada
esconde e nada censura. É antes um acto de evidência; aponta e diz : é assim. A
relação do nu com o sexo é, por isso, uma relação necessária, dado que também
ele faz parte da condição humana como tal. Não actua, contudo, como estímulo
sexual directo; o facto de o poder fazer é um sintoma de malogro artístico por
parte do criador ou de falta de educação sentimental, estética, do lado do
receptor. Os casos de fronteira não invalidam a distinção, bem pelo contrário,
provam-na. A necessidade de argumentar a favor de um ou do outro demonstra que
se opera precisamente com base nos dois polos individualizados. Bem entendido,
o nu não fica relegado a uma esfera de idealidade asséptica, não deixa de ter
uma relação directa com o sexo, mas trata-se de uma relação de outra ordem. Ao
despido sem referência ao nu incumbe-lhe despertar o instinto sexual natural,
não codificado culturalmente, que por vezes é enaltecido como a verdade do
sexo. É antes a sua incompreensão. Subjaz a esse tipo de interpretações uma
consideração natural-objectivante que se guia sub-repticiamente pelo humano-subjectivo.
A triste e cega cópula animal prova-o. As relações sexuais humanas, pelo
contrário, estão sob a égide da negatividade, da recusa da imposição instintiva
em que o fim natural é soberano. Nelas o trabalho, a reelaboração consciente do
dado natural, torna-se um fim em si mesmo: transforma-se em jogo sempre
repetido, sempre da capo, por que se faz conduzir pela alteridade inexaurível
do outro. O despido é também uma
especificidade humana. É livre na medida em que decorre do nu – é esta a ordem,
o specificum do humano. É isso que os fundamentalistas islâmicos não
podem tolerar: que o despido seja uma afirmação do nu. Pois é nessa dobra que
se funda a possibilidade da mulher – é dela e só dela que finalmente se trata –
ser um sujeito sexual livre. E é também aí que se pode dar qualquer coisa como
o respeito pelo pudor feminino. Ao interditar a aprendizagem da representação
do nu, os talibãzinhos negam a aprendizagem da forma básica do respeito: a
igualdade na diferença. Por essa razão não espanta que também queiram enfiar às
mulheres burcas da cabeça aos pés; sejam elas impostas ou envergadas motu
proprio, seja a servidão opressiva ou voluntária, o apagamento do feminino
torna as relações sexuais predatórias, a imagem disforme do natural. Advinha-se
sem dificuldade quem é o caçador e quem é a presa. E, no entanto, têm medo os
selvagens pela simples razão de que na mulher nua só conseguem ver a gaja
despida.
João Tiago Proença
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