É um romance
avassalador, dotado de uma estrutura onde não faltam histórias que se
desprendem como bonecas russas, onde o inescrutável assume proporções de uma
investigação quase policial, o neto do mais genial escritor português soube que
o seu avô prodigioso incendiou o manuscrito do que seria a sua obra
luminescente, as coisas da guerra, porque ele combatera na região de Cabinda e
no estrito círculo familiar falava de horrores, de sofrimentos incalculáveis, confessava
que os companheiros mortos lhe eram presenças fantasmáticas.
O maestro da narrativa é o neto, mas há
também a avó, as tias-manas, a estranha companheira do avô em fim de vida, a
governanta, as lembranças da mãe, prematuramente falecida, cuja ausência é
sublinhada há anos por um quarto trancado na casa do avô. Enfim, enigmas em
catadupa. Falecido o escritor que era uma instituição nacional, a quem só
fugira o Nobel, era esse ponto de África que corria o risco de se transformar
numa lenda, ele nunca escondera em público e em privado que aquela guerra era
trauma que não se apagava. Será que o grande escritor não deixara uma cópia da
sua obra mais esperada?
O escritor nomeia como testamenteiro este
neto, ele abre-nos a porta à sua infância, à vida agitada por que passara a
mãe, uma quase vagabunda, vivera em comunidade lá para os Algarves, numa
atmosfera de indecências. Assim vai detonar uma narrativa de presente e
passados, em ritmo turbilhonante: O Último Avô, por Afonso Reis Cabral,
Publicações Dom Quixote, recentemente dado à estampa.
O leitor não desarma porque a narrativa do
neto é enleante, urdida de diálogos surpreendentes, rapidamente de agiganta
aquele escritor tirânico, mitómano e confabulador, há sempre tempestades nos
diálogos entre escritor e a sua mulher, um escritor cheio de lábia apetrechado
de marketing. “Os jornalistas perguntavam-lhe se escreveria sobre Angola.
Quando não lhe perguntavam, ele mesmo encaminhava a conversa, dizia que sim, um
dia sim, quando estivesse à altura do tema escreveria tudo o que vira e fizera,
o quanto sofrera. Ele sabia o que significava ter a G3 por confidente. Por
enquanto, a arma continuaria a única guardiã das suas mágoas.”
A mãe do narrador,
conhecida por Formiga, parecia destinada a ser mais do que a confidente do
genial escritor, talvez uma sucessora. Acabara por ser a grande deceção do
escritor e do pai. Neto e avó convivem felizes numa casa em Azeitão, já a avó
se libertara do tirânico marido. O avô faiscava admirações, daí Regina, aquela
companheira muito mais nova. É à filha mais nova, a Formiga, que ele conta os
seus segredos africanos. Chegava a agir brutalmente em meio familiar, o genial
escritor é bem capaz de atrocidades e truculências como esmagar pássaros bicos
de lacre. Seria reminiscência do que ele passara na guerra?
O neto lança-se na investigação,
pretende saber se existe ou não um manuscrito. Há fotografias africanas, o avô
contara histórias sobre certas mulheres, ele que dizia: “Nós éramos miúdos que
achavam que eram homens. A recruta bárbara meteu-nos na cabeça que éramos
homens. Nas éramos miúdos que, ao fim de seis meses de uma dureza insana,
tinham de ir para a guerra a achar que eram homens. Ainda hoje os admiro,
amo-os, aos meus camaradas. Deram o que tinham, tantos deram tudo. E só tinham
a juventude para dar.”
Aquele avô quis fazer do neto
escritor, foi mais um desencontro, o genial escritor viveu desencontros
familiares em alta voltagem. A pesquisa do manuscrito é desmesurada: nos
dezassete mil volumes da biblioteca, abanaram-se molduras, bateram-se nas paredes
à procura de fundos falsos, as gavetas dos móveis, os ficheiros dos
computadores, as pastas de arquivo. Nada. Há mais histórias do avô, uma muito
comovente, já na atmosfera da guerra civil em Angola, envolvendo Zacarias, a
Jóia e a Estrela da Piedade. O neto é pressionado pelas tias-manas e pelo
editor, por Regina e pela sua amiga Cecília, havia que descobrir o mais
perfeito diamante da herança literária do genial escritor.
Este romance de Afonso Reis Cabral
atravessa três gerações. Estou absolutamente seguro de que será procurado
avidamente por gente de todas as idades. Mas haverá um segmento desse público
que lhe ficará profundamente agradecido por um parágrafo inspirador, talvez
único em toda a literatura portuguesa contemporânea, é uma homenagem rendida
aos antigos combatentes:
“Restam uns trezentos mil soldados da
velha guerra. A estatística manda que os encontremos na rua, na sucursal do
banco ou dos correios, nos cafés. Frequentam os transportes públicos e
sentam-se ao nosso lado na Loja do Cidadão. São eles que conversam entre si
durante horas nos bancos de jardim. Uns falam alto, outros perderam a voz.
Suspeito de que muitos dos que agarramos pelos pulsos e tornozelos às camas dos
hospitais, e que bradam como cercados pelo inimigo, também sejam antigos
combatentes. Alguns escondem-se à paisana de velho e à paisana de soldado: como
ninguém lhes dá mais de setenta anos, não parecem velhos o suficiente e ninguém
desconfia de que combateram em África. Outros entraram em lares.
Vivem nas nossas casas, comem da nossa
comida, bebem da nossa água e despejam os mesmos autoclismos. Usam o nosso
papel higiénico. Se os observarmos com amor e algum cuidado, espantamo-nos e
compreendemos que são nossos pais e avós e que, enquanto não morrerem, estão
vivos; ao mesmo tempo vivos e invisíveis, porque são velhos e não olhamos,
porque são veteranos e não ligamos.”
Não estou aqui para contar o desenlace
de toda esta investigação, acreditem que será inesperado, o neto percorre
arquivos, até pede uma entrevista a um camarada do genial escritor, o retrato
do ex-alferes Anselmo Baltazar é outro primor literário. Fica-se a saber a
verdade de tudo. É um neto queixoso, justamente iracundo, que irá preparar a
vingança da História, e paradoxalmente tornar mais grada a lenda do tão
esperado romance que não conhecerá a luz do dia. Como tudo isso aconteceu é
matéria para que o leitor se encontre com este romance inovador em que a Guerra
Colonial anda obsidiante entre a verdade e a mentira.
Uma obra-prima.
Mário Beja Santos

300 mil Antigos Combatentes. Os premiados pelo Talentoso Dr Portas, agora com a pensão rebuçado de 100 euros ilíquidos ano! Ora é só fazer as contas como dizia o Mago Guterres: 30 milhões ano que nada resolvem, pão, saúde, habitação. Somem-se as criminosas pensões vitalícias ex políticos por uma mão cheia de anos de serviço à pátria. Cada AC com 50 euros ano, parabéns ao Dr Portas e aos 230 mandarins no Circo S. Bento. Vale?
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