quinta-feira, 13 de novembro de 2014

O match do século.

 
 


 


 
I – Preliminares
Quando o António me pediu para escrever sobre o match de xadrez entre Spasski e Fischer de 1972 em Reykjavik, sabia que a proposta me era tentadora.
Comecei a jogar xadrez federado na sequência desse match, e lembro-me de ter pedido aos meus pais que me comprassem o livro de Petar Trifunovitch (com tradução e comentários de João Cordovil) sobre esse campeonato, que ainda guardo, e revisito com alguma frequência.
 
II – O simbolismo do match
O xadrez tornou-se o desporto oficial da União Soviética, embora o mítico Alekhine fosse um russo, dissidente, de nacionalidade francesa, acusado de simpatias nazis e refugiado de guerra que faleceu no Estoril em 1946 enquanto aguardava esperançoso por um visto de viagem para os Estados Unidos. O grande mestre canadiano Kevin Spragget, residente em Portugal, tem vindo a estudar esta morte, que continua envolta em mistério e onde o longo braço dos serviços secretos soviéticos surge como uma das teorias de conspiração possíveis.
A partir dessa altura todos os campeões de xadrez a partir de Botvinik (1949) e até Fischer (1972) seriam soviéticos. A federação soviética de xadrez era ainda a mais influente na organização das regras do match de atribuição do título de campeão do mundo.
Como os jogadores mais fortes eram todos soviéticos, as outras federações aceitavam com naturalidade essas regras. A escolha do candidato para o match do título saía de um denominado «torneio de candidatos» entre os melhores 12 a 18 jogadores mundiais.
Bobby Fischer começou a criticar esse sistema por permitir alguma forma de conluio entre os soviéticos, que eram sempre em maior número e muito fortes nesse torneio. Na sequência das suas exigências, a FIDE (a Federação Internacional de Xadrez, responsável pela organização do match do título e de todo o ciclo do campeonato do mundo) alterou o «torneio de candidatos» para um match de candidatos, cedendo às pretensões de Fischer e da federação americana. O «torneio de candidatos» foi transformado numa série de matchs de candidatos a eliminar. Fischer, com a sua proverbial autoconfiança, que poderia ser vista como arrogância por terceiros, dizia que no mano-a-mano ganharia a qualquer um, mas não conseguiria ganhar num torneio contra todos. Os soviéticos tratavam essa promessa como bravata do jovem autodidacta americano.
Após diversos encontros, em que Fischer pura e simplesmente humilhou sucessivamente em matches individuais os melhores soviéticos (a vitória por 6 a 0 contra Taimanov foi a mais impressiva), conquistou o direito a jogar um match para o título contra Boris Spassky, que se havia sagrado campeão e era o mais dotado dos soviéticos daquela geração. Era também russo, ao contrário de outros jogadores fortes: arménios, letões, georgianos ou lituanos.
Depois de prolongadas negociações o match foi marcado para Reykjavik, na Islândia, um território remoto e neutro, numa cidade adormecida entre vulcões no meio do Atlântico.
A paranóia de Fisher via fantasmas e conspirações em todo o lado. E, já depois de ter perdido uma partida de uma forma infantil para um jogador da sua classe, recusou-se a aparecer numa outra partida previamente marcada, perdendo-a de acordo com os critérios regulamentares normais do xadrez.
 
 
 
 
Boris Spasski, que foi o campeão mais normal da história do xadrez, era também um cavalheiro cheio de fairplay e cedeu a todas as exigências de Fischer, desde a luz da sala à presença dos espectadores, passando pelas casas de banho onde se podia ir durante o jogo. Spasski tornou-se, na prática, no maior amigo e admirador de Fischer. E, a par do segurança islandês do americano, Saemundur Palsson (também conhecido como Saemi Rock), que só aprendeu inglês mais tarde para poder falar com Fischer, ambos foram provavelmente os seus maiores amigos em toda a vida.
 

 
 
III – O match e a política internacional
O encontro decorreu em plena Guerra Fria e Bobby Fischer só aceitou regressar ao match depois de Henry Kissinger, o secretário de Estado norte-americano, lhe pedir pessoalmente que representasse a América nesse encontro e que uma vitoria sua seria também uma vitória sobre o comunismo. Sugeriu até que poderia ir assistir a uma partida em Reykjavik, embora o seu objectivo com essa visita fosse encontrar-se secretamente com Le Duc Tho, o líder negocial do Vietname do Norte, com quem viria a dividir o Prémio Nobel da Paz de 1973, apesar de o vietmanita o ter recusado. Pela minha parte, gostaria que o discurso de aceitação lido pelo embaixador americano tivesse mencionado o xadrez e o «match do século» como um dos instrumentos do cessar-fogo obtido na Guerra do Vietname.
As partidas eram apresentadas nos noticiários dos telejornais de todo o mundo, Portugal incluído. Entre nós, João Cordovil, se a memória não me atraiçoa, explicava os detalhes de cada jogada e combinação aos portugueses, não em programas especializados mas como parte do telejornal diário das 20h.
Muitos jovens de todo mundo tornaram-se jogadores federados de xadrez na sequência desse «match do século». Este período áureo do xadrez como desporto competitivo coincide com uma era pré-tecnológica em termos computacionais, em que os melhores jogadores eram mais fortes do que qualquer máquina.
A vitória de Fischer e a forma como sozinho venceu todo o poderio soviético tornaram-se simbólicas da vitória da liberdade individual sobre o poder dos regimes totalitários. Fischer tornou-se um mito americano mas também universal.
Na cena política internacional, onde as competições desportivas e as vitórias influenciam o prestígio das nações, o resultado deste match foi celebrado pelo mundo ocidental como um triunfo na Guerra Fria. Os americanos bateram os soviéticos no seu próprio desporto. Nada seria como dantes no mundo do xadrez, mas também no mundo da política internacional.
Richard Nixon teve a infeliz ideia de convidar Boris Spassky para uma cerimónia na Casa Branca. O russo pode ter sido, na verdade, o adversário ideal para o campeão americano e, ao contrário deste, era uma pessoa afável e gregária. Nixon só recuou na ideia quando os serviços secretos o informaram que Spassky se preparava para fugir da União Soviética, o que poderia ser usado pelo Kremlin de que o campeão russo sempre estivera, afinal, a soldo dos americano. Seria arriscado para todos endereçar-lhe o convite.
Kissinger tratava Fischer como um peão nas suas maquinações da política internacional, mas a inteligência de Fischer parecia estar apenas dirigida para o xadrez, não aparentando ter sensibilidade para nada mais do que isso.
Entre Kissinger e Fischer, um dia veremos quem terá mais linhas na História.
 
 
 
 
 
 


IV – O match e a cultura
A vitória de Fischer causou uma impressão tremenda no mundo do desporto, do xadrez e da política, mas o seu comportamento depois do match trouxe novos focos de controvérsia.
A América gosta de celebrar e remunerar os seus heróis. A forma mais comum com que o faz é através da publicidade e da televisão, onde as empresas podem tornar qualquer um milionário. Mas Fischer era intratável. Primeiro, só fazia publicidade de produtos de que gostava. Recusou assim quase todas as propostas, incluindo, num episódio célebre, uma marca de massas alimentares cujo sabor não apreciava. Depois não gostava de judeus, o que não o tornava popular nos meios da indústria americana do cinema e dos media. E finalmente, nas poucas aparições que teve nos talk-shows não gerava simpatia junto da audiência ou do anfitrião. Em suma, um desastre mediático.
Desapareceu assim do espaço público. E criou-se até uma canção infantil “Where is Bobby Fischer?” usada por claques de apoio a equipas de futebol americano e que foi popularizada numa rábula do Saturday Night Live:
 
 

 
 
 
Será que existe alguma canção com Kissinger? Para além, claro está, da dos Monty Python, que não é uma verdadeira canção (aqui).
Com o passar do tempo, Bobby Fisher começou a exigir condições impossíveis, que a FIDE, dominada pela federação soviética, nunca aceitou. Assim, o mito em seu torno cresceria ainda mais. Foi um campeão do mundo que não perdeu o seu título no tabuleiro mas na secretaria. Para Anatoly Karpov.
Até à morte, em 2008, em Reyjkavik, na cidade onde foi mais feliz, Bobby Fischer proclamava ser o campeão do mundo de xadrez. Teve um match de desforra em 1992 com Spassky, talvez o seu maior amigo. Na Jugoslávia, desafiando as sanções da ONU e dos EUA. A vitória que obteve mostrou que o seu jogo continuava num nível elevado.
No mundo do xadrez da Internet, muitos pensam que estão a jogar com Fischer nas partidas anónimas contra jogadores geniais, invulgarmente fortes. Como tantos outros mitos, muitos não acreditam que a figura barbuda que apareceu nos ecrãs da televisão em 2008 e morreu pouco depois era o verdadeiro Bobby Fischer. Continuam a acreditar que Fischer está vivo, morando algures, e que é ainda o mais poderoso jogador do mundo. Where is Bobby Fischer?
 
V – Epílogo
Em vários rankings da pessoa mais inteligente de sempre, Bobby Fischer aparece a par (ou acima) dos maiores cientistas ou pensadores do mundo. No último que vi, estava em oitavo num ranking de coeficiente de inteligência liderado por Goethe!
 
Fischer, nos anos do fim
 
 
 
Mas a fama do match deve-se também à figura de Spassky. Ele representa a fleuma, o desportivismo e a simpatia, condensadas numa mente xadrezística igualmente brilhante. E a sua figura, a menos controversa entre todos os campeões mundiais, é fonte de enorme inspiração. No actual campeonato do mundo, a decorrer em Sochi entre o jovem génio norueguês Carlsen e o cativante indiano Anand, o russo Spasski é o espectador que ambos querem impressionar. Boris Spasski é o amigo que todos gostariam de ter por perto. O seu fairplay atingiu o auge quando, na lendária 6ª partida com Fischer, acompanhou o público no aplauso ao americano pela brilhante vitória que acabara de alcançar.

....A vida de Spassky ficou marcada pelo «match do século» e os soviéticos nunca lhe perdoaram a derrota. Um pouco como Gorbatchov, a quem os russos ainda hoje não perdoam a forma como a União Soviética implodiu e a Mãe-Rússia perdeu território e influência. Mas Spasski, que não escapou à controvérsia da política mundial, foi o mais puro e o mais leal adversário do «match do século». E sempre gostou mais do seu adversário americano do que dos oficiais da equipa de xadrez soviética. Para um jogador de xadrez, uma derrota no tabuleiro é sempre uma tragédia pessoal. É fonte de dramas psicológicos e de inseguranças perenes. Por isso sabemos até que ponto Spasski se esforçou por ganhar. Mas apenas no tabuleiro. Sem truques nem armadilhas.
Na história do século XX, há um lugar único para Bobby Fischer. Ele foi o génio invencível. Mas os amantes do xadrez admiram igualmente o equilíbrio integral do génio de Spasski. Ele foi o génio da vida equilibrada. Aquele a quem gostamos que aconteçam coisas boas.
 


João Borges de Assunção, MN


 
 

2 comentários:

  1. Obrigado por este artigo.Exemplo de como se pode fazer interessar por um assunto mesmo os que nada dele sabiam ou apenas tinham vagamente ouvido falar.Tambem me interessei pelo jogo(demasiado ciencia para ser um jogo ou demasiado jogo para ser uma ciencia-Leibnitz?)mas sem grande capacidade para progredir nunca passei do jogo pelo jogo.Colocou a questão politica muito bem.Resalta da historia aquilo que quase sempre acontece ou seja a apropriação dos genios pelo poder politico-economico tentando tirar algum lucro de diverso tipo e atirando para i lixo quando ja nada tem de "sumo".Bobby foi uma dessas figuras.Karpov outra.Podia continuar dado haver muitos casos envolvendo os mais ou menos famosos jogadores.

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  2. Parece que não ha muitas pessoas interessadas no tema.Estão mais disponiveis para uma intriga caseira ou algo assim.Paciencia.

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