domingo, 30 de novembro de 2014

O Tigre de Tipu.

 
 



 
 
 
Parece um animal feroz, mas não passa de um boneco articulado. Como o Pinóquio. A primeira vez que o vi mirei-o só de relance, às pressas, quando ia atrasado para almoçar no V&A. Mas logo então fiquei ofuscado pela fearful symmetry das suas riscas, como diz Blake no poema famoso. Depois de almoço, regressei ao interior do Victoria and Albert Museum, onde a fera está exposta sem particular destaque, no meio de uma vitrina, rodeada de abundante tralha, toda muito linda.
O Tigre era certamente das peças menos opulentas do majestoso espólio do sultão Tipu, que os pérfidos ingleses pilharam após conquistarem o reino de Mysore em 1799. Durante anos, Tipu tinha desafiado o poder britânico, infligindo-lhe derrotas humilhantes que a imprensa inglesa iria caricaturar sem piedade alguma. «Melhor viver um só dia como tigre do que como ovelha toda a vida» é uma frase atribuída ao sultão Tipu, que pelos vistos conhecia o célebre dito de Luísa de Gusmão, mãe da futura rainha Catarina, que levaria para Inglaterra o hábito de beber chá mas também, já agora, a compota de laranja e outras duas coisas, até aí desconhecidas nas Ilhas Britânicas: o higiénico uso de talheres e o malfazejo consumo do tabaco.
 
 
 
A monção e as chuvas fizeram fracassar uma primeira expedição contra o poderoso Tipu. A imprensa londrina, sempre dada ao tablóide, vergastou os vencidos. Os alunos de Oxford faziam apostas entre si sobre quem iria ganhar aquele choque de civilizações. Mais tarde, um exército melhor equipado conseguiu impor a Tipu um tratado leonino, através do qual o sultão não só cedia aos ingleses metade do seu reino como dava como garantia os dois filhos do seu sangue, a título de caução. Os filhos foram devolvidos, mas o reino não. E até lhe ficaram com a outra metade. E até lhe destruíram o palácio inteiro, chegando ao ponto de vilipendiar o seu cadáver, cortando-lhe o bigode. Por herança de seu pai, Tipu ascendera ao trono de Mysore em 1782, dominando uma região imensa, quase tão grande como o seu orgulho. O pai, Haydar Ali, era homem de poucas letras, talvez mesmo analfabeto, mas o filho Tipu teve uma educação principesca, falando várias línguas. Acontece que a maioria do povo da sua terra vastíssima era hindu, enquanto Tipu professava no Islão. E no Islão linha dura, defendendo até a jihad contra os infiéis. Nas cartas que escrevia a outros monarcas muçulmanos abundam as referências à jihad, que em árabe significa literalmente «último esforço», ou seja, guerra aos descrentes. O seu trono e as armas dos seus soldados tinham ornatos de tigres mas também a palavra «Alá» ou versículos do Corão. O sultão tinha vários hábitos, todos péssimos, um dos quais consistia em mandar que os seus prisioneiros, europeus incluídos, fossem circuncisados. Uma gravura da época mostra um recluso em Mysore, de seu nome Richard Chase, com um ar bastante abatido e tristonho. Um outro prisioneiro, o irlandês Cromwell Massey, escreveu um diário secreto enquanto padecia as últimas nas masmorras do sultão Tipu; o documento, que sobreviveu miraculosamente, faz descrições terríveis do que se passava na cidadela fortificada de Seringapatam.
 

 
 
Não admira que, quando chegaram a Inglaterra as primeiras notícias do cerco ao palácio de Tipu e do iminente branqueamento da capital, o empresário de espectáculos Philip Astley, que enriquecera exibindo artes equestres ao público londrino, organizasse de imediato uma extravaganza, «The Storming of Seringapatam». Com mais de cem personagens e uma quadrilha de cavalos, máquinas ululantes e fumos de cena, foi um estrondo de bilheteira, com casas cheias até 1829.   
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Tipu escolheu o tigre como emblema – e o seu trono octogonal estava adornado por cabeças de tigres, revestidas a oiro. No centro do trono, um tigre possante, também a oiro, que hoje, claro está, se encontra na posse dos ingleses, mais precisamente na colecção real (quem o quiser ver, estará em exibição em Londres, na Queen’s Gallery, até finais de Fevereiro de 2015, numa exposição de cinquenta peças expressivamente intitulada Gold). Jóias, armas d’aparato, vestidos de seda delicadíssima, tudo foi devastado – ou, melhor, saqueado e vendido, disperso em leilão feito pela East India Company. Sendo das menos valiosas peças do tesouro de Tipu, o Tigre tornou-se a mais conhecida, em parte devido à atracção que nos séculos XVIII e XIX existia por automata e máquinas articuladas, em parte porque o Tigre de Tipu é, de facto, um objecto fascinante. Feito em madeira por volta de 1799, mostra um tigre a devorar um ser humano, um branco, ocidental. Não se sabe se a vítima é civil ou militar. Possivelmente, a peça inspira-se num episódio macabro passado nas costas de Bengala. Segundo o relato distinto do Gentleman’s Magazine, de Julho de 1793, o jovem Hugh Munro, o filho único do general Sir Hector Munro, foi esventrado por um tigre enquanto repousava com os amigos, numa pausa da sua jornada de recreio e caça na Ilha de Sagar (já agora: uma ilha que está prestes a desaparecer, tragando homens e tigres, devido ao aquecimento global, aqui).   
 
A tragédia de Munro numa peça de porcelana Staffordshire (c. 1814)
 
Sendo a tragédia de Munro a fonte de inspiração, ou não, o certo é que Tipu mandou fazer dezenas de imagens em que os europeus – ou, mais precisamente, os ingleses – eram esquartejados alegremente por animais: leões, elefantes e sobretudo tigres. Tipu mantinha tinha os franceses por aliados e diz-se ser muito provável que o Tigre e a maquinaria existente nas suas vísceras tenham sido fabricados com o auxílio de artistas habilidosos vindos de Paris. Além da nota descritiva do V&A, a Wikipedia conta a história do Tigre e também aqui (http://www.tigerandthistle.net/) se pode saber alguma coisa do bicho. Mas nada substitui a leitura de um livro formidável, profusamente adornado com imagens dos tesouros de Tipu. De Susan Stronge, Tipu’s Tiger é editado pelo próprio V&A e, em poucas páginas, produz uma envolvente «narrativa» (para usar um termo agora muito em voga) sobre a ascensão ao trono de Tipu, o seu acidentado reinado, e as atribulações do tigre de madeira. O livro de Stronge reproduz relatos da época da captura de Tipu, que asseguram que este só foi morto por ter resistido a um soldado que lhe queria tirar o cinto. Ficarmos assim, de calças na mão, é sempre aborrecido de acontecer; para mais, tratava-se certamente de um cinto adornado com pedras preciosas ou, no mínimo, semipreciosas. O que os relatos da época não explicam é a razão que levou a autorizar que profanassem o cadáver de Tipu (foi, aliás, um oficial superior que perpetrou esse crime). Certo é que autoridades reprimiram com dureza os saqueadores oportunistas, enforcando quatro de uma vez, para servir de exemplo. De caminho, mataram a tiro os tigres de carne e osso que o sultão tinha no seu palácio. Quanto ao abundante guarda-roupa do sultão, os ingleses tiveram a cortesia de convidar os filhos de Tipu a escolherem algumas peças de vestuário do pai, como recordação. Depois, iria tudo à praça, num leilão organizado pela East India Company. Na cidade, porém, correu o rumor que os muçulmanos se preparavam para arrematar todos os lotes, distribuindo as vestes de Tipu pelos crentes, como relíquias «do profetismo e da santidade do seu carácter». A Companhia cancelou a hasta pública do guarda-roupa, guardou as 57 túnicas (ou jamas), os 84 turbantes (dois dos quais com inscrições corânicas), os 54 casacos e diversos pijamas de Tipu, transportando-os para Londres. O interior do palácio de Seringapatam foi vilmente destruído em 1808, o mesmo acontecendo com o palácio Lal Bagh, outra residência de Tipu, cujos destroços seriam usados em 1829 na construção de uma pequena igreja cristã, St. Stephen, em Ootacamund. O triunfo do Império foi assinalado de uma forma bastante simbólica, prenhe de significado: cunharam-se medalhas que mostravam um leão, ícone britânico, a dominar um tigre, o animal predilecto do sultão Tipu.
 
 
 

As medalhas, feitas às centenas ou aos milhares, foram distribuídas pelas tropas vencedoras, sendo dadas sobretudo aos cipaios, isto é, aos soldados de origem indiana, para que estes espalhassem entre a população nativa o símbolo do novo poder. Enganaram-se. O poder de Tipu permanece – e pujante. Na Índia, devido aos seus canhões com tigres e aos «mísseis de Mysore», Tipu é considerado um visionário, o pai do lançamento de foguetes e mísseis, celebrado oficialmente. Um indiano da América, vivendo no remoto estado de Montana, lembrou-se de fazer uma bebida em sua honra (http://tipustigerchai.tripod.com/). Há filmes (The Sword of Tipu Sultan, 1990), peças de teatro (The Dreams of Tipu Sultan, 1997), desfiles, sites comemorativos, livros infantis e até, obviamente, tatuagens com o tigre anticolonialista. Para quem puder dispensar 48 minutos do seu domingo a ver uma série indiana, eis o sultão, Tipu no seu esplendor:
 
 


 





 
Se o Tigre de Tipu tivesse pedras preciosas ou adereços de ouro, certamente teria tido outro destino. Sobreviveu. Nas suas entranhas, um intricado sistema de tubos emitia o som pavoroso de um homem a ser devorado por um felino ferocíssimo. Há quem refira que a caixa de música tem uma vaga associação às gaitas de foles tocadas pelos exércitos escoceses – o que, a ser verdade, não deixa de constituir uma refinada ironia. Quando a peça foi trazida para Inglaterra, instalaram-na na biblioteca da East India House (também para lá foi a cabeça gigantesca do tigre que estava no trono de Tipu, e que mais tarde, em 1831, seria oferecida ao rei William IV). Os estudantes e os investigadores que frequentavam a biblioteca – e que estavam ali para fazer o que faz um verdadeiro estudante, que é estudar à séria, sossegada e discretamente  – ficavam incomodados com o corrupio de pessoas que só iam à livraria para ouvir o Tigre e os seus rugidos, agora inofensivos mas ainda assim bastante incomodativos. Os visitantes podiam até dar à manivela para ouvir o som que emitia. Parece que tanto o tocaram que o animal se avariou, e a caixa de música nunca mais deu sinal de si, fazendo dó. Mas no V&A, para onde o animal foi transferido em 1880, existe uma gravação do tenebroso rugido, que pode ser escutada. Há também uns vídeos no YouTube, pouco esclarecedores. Em todo o caso, aconselha-se o visionamento do segundo, sobre o restauro da peça.  
 
 
 
 
 
 
Com 1,72m de comprido, o bicho é enorme, quase em tamanho natural. O sultão gostava de ouvir o som terrível que produzia, entre outras malvadezas que fazia aos ingleses encarcerados nas masmorras do seu palácio, em Seringapatam a capital do reino de Mysore. A pintura é tipicamente indiana no cromatismo e nos acabamentos, tendo sido restaurada várias vezes ainda em vida de Tipu. Durante a 2ª Guerra Mundial, a peça foi seriamente danificada, ficando desfeita em centenas de pedaços, que cuidadosamente restauraram, ficando como nova logo em 1947. Repousa hoje numa cela de vidro do Victoria and Albert Museum, no meio de muita tralha de artes decorativas.

 
 
 
 
 
 
 
 
Quando descobriram a peça no palácio de Tipu, os ingleses ficaram impressionados pelo ódio que exalava. Chegaram ao ponto de querer levar o Tigre de Tipu para a Torre de Londres, como castigo: «this memorial of the arrogance and barbarous cruelty of Tippoo Sultan may be thought deserving of a place in the Tower of London», escreveu-se na altura. Prevaleceu o bom senso e o Tigre de Tipu é hoje uma peça de museu, a mais conhecida de todas do espólio do sultão de Mysore. Ao contrário do que sucedeu com as jóias e os adornos faustosos, o que o salvou da perdição foi justamente o seu escasso valor comercial, despojado que era de jóias rutilantes e materiais exóticos. Em contraste, o seu valor simbólico e histórico é enorme, muito superior ao dos muitos tigres de oiro e prata que deambulavam pelos salões do palácio de Tipu. De visita a Londres, para ver a Grande Exposição de 1851, Gustave Flaubert entediou-se de morte com o exibicionismo do Crystal Palace (sobre a construção deste edifício, Bill Bryson tem um relato apaixonante no seu livro Em Casa). Mas, ao ver o Tigre de Tipu, que na altura estava exposto na East India House, ficou maravilhado. Também John Keats se deixou encantar pela peça, fazendo-lhe alusão num longo poema que deixou por concluir (a play-thing of the Emperor’s choice / From a Man-Tiger-Organ, prettiest of his toys). Como Flaubert e Keats, muitos não conseguem resistir à atracção voraz do Tigre de Tipu, que serviu de inspiração a poetas e outros artistas, sendo alvo de vários pastiches recriações, quase todos de mau gosto. O pior exemplo, sem dúvida, é o texto cópia/cola que acabastes de ler.
 
António Araújo  
 
 
 

Bill Reid, Rabbit eating astroinaut, 2004



M. F. Husain, Tipu Sultan's Tiger, 1986 


 
 



 

6 comentários:

  1. Incrível.
    Nunca tinha ouvido falar neste "tigre" e agora fiquei a saber quase tudo sobre ele e ainda por cima despertou-me o apetite para o livro do Bryson que não conhecia, para juntar ao outro dele que tenho por aqui.
    Muito obrigado.,
    Espero breve uma crónica sobre Sandokan, o Tigre da Malásia.

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    1. Muito obrigado pelas suas palavras. O «At Home»/«Em Casa» não é dos melhores livros de Bill Bryson, na minha modesta opinião - mas vale a pena ler, sem dúvida.
      Quanto a Emilio Salgari, é sem dúvida um tema a considerar, obrigado pela sugestão!

      Cordialmente,

      António Araújo

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  2. Quem estiver convencido que a humanidade ja atingiu a idade adulta deve ler este muito bom artigo e reconsiderar.

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    1. Obrigado pelas suas palavras, Alexis.

      Cordialmente,

      António Araújo

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  3. É muita maldade usarem o interior do tigre para tocar "all hail britannia".

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