quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Rodrigues dos Santos: a sexualidade das onomatopeias (2)

 
 
 
 
 
 


 
 
 
 
 
 
O Sétimo Selo, 2007

 
Depois de A Fórmula de Deus, Rodrigues dos Santos carimbou O Sétimo Selo (2007). O livro aborda uma questão muitíssimo banal (“o anúncio do fim do mundo”, p. 137, ou “o segredo do mundo”, p. 347) e o pudor é tanto que, ao longo de 502 páginas, a personagem feminina mais endiabrada é uma septuagenária que convive às turras com a mãe de Tomás num lar de idosos em Coimbra. Deolinda, de seu nome, era uma “depravada”, na caracterização moralista de dona Graça. Assediava continuamente um rapaz novo, enfermeiro do asilo: “A Deolinda passa a vida a exigir que o enfermeiro lhe ponha creme no ânus, mas o médico já a viu e concluiu que não há problema nenhum com o ânus dela (…). E a marota insiste. Diz que já não se fazem homens como antigamente, que são todos uns rabichos e exige que lhe ponham a pomada no ânus.” (p. 331). Sopas de peixe com leite de mamas suecas, cremes no ânus de septuagenárias… Se esta imaginação tão fértil fosse usada para escrever livros de jeito, que bom seria… Aquela carinha sonsa de quem não parte um prato nem faz mal a uma mosca, esconde, afinal, uma mente riquíssima, povoada de fantasias depravadas e deboches lascivos que ultrapassam tudo o que de mais delirantemente perverso e retorcidamente sórdido se escreveu na literatura pornográfica ocidental dos últimos séculos. Só mais dois exemplos, extraídos d’O Anjo Branco, livro de 2010: entre “gemidos e suspiros descontrolados”, uma rapariga perde a virgindade na marquesa das massagens do pavilhão de vólei do Estádio das Antas (p. 335) enquanto uma rodesiana concupiscente, a bordo de uma avioneta, corre o fecho das calças do médico José Branco e, “com um movimento esfaimado, puxou-lhe o monstro para fora”, mergulhando nele, ou seja, no Monstro Branco (p. 383).    
Além da furiosa Deolinda, àvida de pomadas no rabo, em O Sétimo Selo aparece uma rapariga russa, Nadezhda. Beldade ruiva, estudante universitária e prostituta, com “olhos de um azul líquido” (a Lena do Codex tinha “olhos de um azul-turquesa cristalino”) e “lábios espessos como gomos apetecíveis” (a Maria Flor da Mão do Diabo tinha “lábios carnudos que lembravam gomos de laranja”). Como lhe compete nos termos contratuais, Tomás envolve-se com Nadezhda, que caritativamente lhe oferece os seus serviços no final da página 170: “Vou dar-lhe uma de graça”. Simplesmente, no início da página 171 já passou a graça toda, encontrando-se ambos a acordar no leito, com ela a cumprimentá-lo num tom jovial, através de um grunhido amoroso: “Dobroye utro” (a que o estúpido responde “Bom dia.”). Em O Sétimo Selo tudo se passa depois dos factos relevantes. “Então, gostaste da nossa brincadeira ontem à noite?”, ficando nós sem saber onde, quando e sobretudo como brincaram. Noutra cena: “Como dormiu o meu garanhão português? Bem?”, pergunta Nadzheda a Tomás. Ora, o que é que nos interessa a nós como é que o garanhão português dormiu, se dormiu bem ou se dormiu mal? O que nos interessava era saber mais coisas, de preferência sórdidas, sobre como se comportara o cavalo lusitano na pista de saltos. N’O Codex 632 a nobre arte da equitação é levada mais a sério: a primeira vez que avista Lena, Tomás conclui não ser aquela alimária uma “alemã-cavalona” nem uma “alemã-vaca” (p. 26) mas o certo é que na página 206 já está “ele a montá-la”, “espremendo-a em torno dos mamilos como se a quisesse ordenhar” (em O Anjo Branco, p. 505, Diogo aperta o seio de Sheila “como se a quisesse ordenhar”). De igual modo, o hipismo é tratado como merece em A Filha do Capitão, quando Agnès cavalgou Afonso “com entusiasmo, o ventre dançando para cima e para baixo, por vezes acariciando-o com a ponta dos dedos. Quando sentia a ejaculação aproximar-se, apertava-lhe as mãos”; Afonso, mais egoísta e autocentrado, percorreu o recinto “cavalgando autonomamente com crescente intensidade, mais rápido e mais rápido” (p. 323). 
Aqui, em O Sétimo Selo, aparecem sons distantes, ecos longínquos de movimentações animalescas (“os gemidos e os grunhidos subiram de tom e explodiram numa apoteose de urros e vagidos”, p. 287).  Mas, de carnal e humano, o máximo a que temos direito é a uns “seios arrebitados e firmes”, na página 164, e, três páginas depois, a uma “curva arrebitada dos seios”. Mais lá para a frente, na página 195, surgem, brotando do peito da russa Nadezhda, “mamilos grandes e rosados a arrebitarem como chupetas” (note-se que n’O Codex 632, página 161, o mamilo rosa-claro da sueca Lena tinha uma “ponta arrebitada e dura como uma chupeta”, que n’A Mão do Diabo, página 327, os mamilos rosados da espanhola Raquel eram “como biberões suculentos” e que n’O Anjo Branco, página 337, os “seios desproporcionadamente grandes adornados por mamilos largos e rosados” da rodesiana Nicole eram “como chupetas grandes”, aparecendo ainda uma menina negra “com os mamilos em pipeta”; estas recorrentes alusões a chupetas, pipetas e biberões parecem configurar uma identificação regressiva, de tipo obsessivo e neurótico, com a primeira infância, característica muito presente no infantilismo ficcional do autor).
Porém, tirando os mamilos a arrebitarem do tórax de Nadezhda como chupetas, nada mais se passa. Tudo muito curto e poucochinho. É certo que, como vemos, os seios estão sempre arrebitados ou prestes a arrebitar, mas nada mais arrebita em A Fórmula de Deus ou em O Sétimo Selo. Que saudades dos tempos fogosos d’O Codex 632, onde, a dado passo, Tomás observou “com gula o rabo da sueca” e “fantasiou-lhe o rego e as costas nuas”. Na produção ficcional de Rodrigues dos Santos nunca mais tivemos direito a cenas que culminam “num berreiro libertador de carnes em chamas”, como n’O Codex 632, ou numa “erupção com um urro”, em “onda alucinante” e “pico de tensão”, como n’A Filha do Capitão. E sim, onde param os seios, outrora sempre arrebitados? Onde estão eles, antes tão viçosos?
 
 
 
 
         A Vida Num Sopro, 2008
 
         Ainda que pontual e fugaz, existe, impõe-se reconhecê-lo, uma reaparição de seios arrebitados na obra literária de Rodrigues dos Santos. Ela acontece n’A Vida Num Sopro, romance histórico passado no Portugal salazarista dos anos 30. A personagem feminina principal é Amélia, que possuía “olhos cor de mel” que eram “verdadeiros rebuçados dourados”, ainda que por vezes se convertessem em “olhos melífluos”, “olhos quentes e brilhantes”, “olhos como o mel”, “olhar de jade” ou jóias hipnóticas”. Este chorrilho de metáforas abate-se sobre nós nos três primeiros parágrafos do livro, quando Rodrigues dos Santos caracteriza o olhar de uma jovem estudante liceal de Bragança. Se ela tinha um “olhar lânguido”, o seu pretendente possuía um “semblante másculo”, o que não o impede de fazer “beicinho” logo na página 31 deste livro. Trata-se de uma obra que articula dois temas recorrentes na literatura ocidental: o amor impossível e a bosta do gado. Do amor impossível já falaremos. Quanto à bosta do gado, sentimos o odor da sua presença na página 33 (“uma bosta tombou da traseira do bovino”), na página 43 (“as bostas de bovino espalhadas pelo empedrado”) e na página 321  (“tresandas a bosta de boi”).  Eis, portanto, um livro muito bovino. Quanto ao amor impossível, processa-se entre Amélia e Luís, colegas no Liceu Central Emídio Garcia, em Bragança, corria o ano de 1929 – numa altura em que o ensino primário e liceal era misto, portanto.  Nessa época, sendo ainda um rapazola tímido, Luís sonhava já com os “olhos sonhadores” de Amélia, também apelidados, nas páginas 15, 224 e 240, de “olhos garços”. Além de sonhar às noites com os olhos garços da amada, alimentava Luís outros devaneios platónicos e puros, como apertar-lhe “um seio fofo”, acariciar-lhe “uma nádega macia” ou, enfim, colocar as suas “mãos famintas” por “entre as pernas da fêmea para lhe sentir o calor ardente e húmido” (pp. 40-41). Avistar-se-ão numa manhã pardacenta de Bragança, em que  o “dia acordara molhado” e o céu estava coberto por “um monte de bronze gasoso”. Com tanta poesia transmontana, não é de admirar que, num dos primeiros encontros amorosos com Luís, a delicada Amélia remate a conversa com uma expressão bastante torguiana e telúrica: “Ora, batatas!” (p. 31). Pelas ruas e vielas brigantinas o corpo de Amélia meneava-se “como o de uma gata” (p. 54), sendo a associação entre as mulheres e estes felinos domésticos um tópico muito presente no discurso literário de José Rodrigues dos Santos, um tareco de moço (a drª Nicole, d’O Anjo Branco, p. 279, chega a ronronar “como uma gata” e a adquirir uma “expressão lasciva de gata com cio”, como a Lena d’O Codex 632, p. 143, também ela “uma gata com cio”). Além de um “fresco menear das ancas” (p. 15), Amélia tinha “olhos de mel”, “olhos cor de mel” e também “olhos de caramelo”, exactamente como os de Ariana n’A Fórmula de Deus. Os seus lábios eram “gomos deliciosos”, exactamente como os de Nadezhda em O Sétimo Selo e como os de Maria Flor de A Mão do Diabo. Por sua vez, o corpo apresentava “curvas de fémea voluptuosa”, como os de todas as mulheres que aparecem nos romances de Rodrigues dos Santos. E, a dada altura, os seios de Amélia são “arrebitados”, como os da Agnès d’A Filha do Capitão, os da Lena d’O Codex 632 ou os da Nadezhda d’O Sétimo Selo. Porém, os seios de Amélia só arrebitam na página 288, ou seja, percorrida já a primeira metade do livro. Até lá, já tínhamos visto as nádegas de Amélia e de uma colega. Desenganem-se, porém, os que julgam que algo de erótico existira nessa visão; pura e simplesmente, Amélia e a colega, por razões disciplinares, haviam sido chamadas ao gabinete do reitor, um psicopata que mandara as adolescentes deitarem-se sobre uma mesa e levantarem as saias (“Deitem-se sobre a mesa e levantem as saias”, p. 71). “Encurraladas, aterrorizadas”, as jovens “expuseram as nádegas ao reitor”. O pirómano avançou de bastão em riste e, talvez com a ajuda de acendalhas e querosene, pegou fogo aos glúteos das duas estudantes, provocando-lhes queimaduras de indiscutível gravidade. Segundo os relatos disponíveis, Amélia “sentiu as nádegas incendiarem-se e gritou de dor” (p. 72) e, mais tarde, questionada por Luís, denunciou o perverso comportamento do reitor do Liceu de Bragança  (“Não me pôs a mão. Pôs o bastão”, p. 83). Luís ainda disse que ia partir “aquele focinho de porco” e aquela “tromba de suíno”, mas o jovem casal será devorado por um acontecimento ainda mais revoltante e horrendo, o começo do capítulo XI deste livro, que diz assim: “O tapete de nuvens destilava um vapor de cinza, esganando a luz com a sua sombra ameaçadora” (p. 85). Logo na página seguinte, a chuva é descrita como uma “cortina de veludo” e todo o romance é percorrido por figuras deste estilo lírico, entremeando com diálogos mais acesos, como aquele em que Luís trata dona Beatriz, a mãe de Amélia, por “Grande puta!”, “Cabra de merda!”, “Bicha-cadela”, “Calatre ordinário” ou “grandessíssimo calhau” (pp. 125-126). Os seios arrebitam na página 288, mas, antes disso, Luís casa com Joana, após terem namorado (o primeiro beijo foi dado, religiosamente, no interior da Igreja Matriz de Penafiel). Celebrado o matrimónio, no copo-de-água servido no Café Lima, Luís verifica que “havia carne naquela fémea”, ou seja, na mulher com que acabara de se casar. Horas depois, na noite de núpcias, a concepção carnívora da masculinidade, um traço característico da literatura JRS, impõe-se de modo violentíssimo. Num “movimento brusco e esfaimado”, Luís arranca o delicado vestido de noite de Joana, “rasgando-o brutalmente pelas bordas” e atirando-o para o canto do quarto. Joana estava “combalida”. Luís mostrara-se insensível à forma como ela se preparara com esmero, durante um mês na modista, para o amar naquela primeira noite. Segue-se “o segundo choque”, em que Luís a tenta possuir mas – atençãozinha! – não consegue “erguer a sua masculinidade” na hora decisiva, no momento heróico. Como consegue Luís consumar o acto? Primeiro, ingere uma maçã; depois, deglute a noiva. Não acreditam?

 
“Confiando nos poderes da fruta bíblica, trincou uma maçã. Se a maçã conduzira Adão ao pecado, quem sabe se não poderia fazer o mesmo por ele. Mastigou a peça de fruta com vagar calculado e quando acabou regressou ao quarto e deslizou por entre os lençóis para junto do corpo quente e palpitante de Joana” (p. 269)
 
         Como tu andas, Zézito Rodrigues, como tu andas… Antigamente, no Codex 632, uma sopa de peixe incendiava a festa. Agora, os teus actores precisam de apelar à Bíblia Sagrada e trincar uma “peça de fruta” (!) para ganharem ânimo carnal (mais adiante, Luís terá mesmo de ingerir umas mezinhas para o “dotarem de força”, p. 439). Escusado será dizer que a descrição do que acontece depois de Luís comer a maçã se encontra também na secção de frutas e verduras, constituindo, mais precisamente, uma completa pessegada. “Amaram-se com abandono, os olhos fechados e os corpos entregues à orgia das sensações”. É isto que José Rodrigues dos Santos tem para nos oferecer sobre uma noite de núpcias, em que “ele tomou posse do corpo da mulher”. Páginas depois, Luís reaproxima-se de Amélia, e as coisas aquecem, com ela a transformar-se de “deusa idealizada” em “fêmea carnal”. Na indumentária de Luís, “as calças já mal lhe disfarçavam a erecção” (p. 287), um fenómeno da Natureza semelhante ao ocorrido com Tomás Noronha, que padece, em Fúria Divina, de uma “erecção monstruosa e incontrolável a formar-se-lhe nas calças” (p. 575) e, no inultrapássel Codex 632, de uma “erecção gigantesca a formar-se-lhe nas calças” (p. 161; no mesmo romance, também “uma vigorosa erecção enchia-lhe as calças”, p. 148).  
É então que os seios de Amélia arrebitam. Antes destes, porém, já as bocas sôfregas se tinham devorado reciprocamente e as línguas húmidas se haviam deglutido com voracidade, numa descrição literária que combina muito bem o canibalesco e o carnavalesco. Como acontece em todas as cenas de sexo de José Rodrigues dos Santos, com uma ligeira excepção ocorrida em A Filha do Capitão, os “gestos bruscos e impacientes” levaram a que o vestuário do casal fosse rasgado em pedaços. Compreende-se o sucedido, uma vez que os corpos estavam “esfaimados” e “gulosos”, a ponto de as línguas se lamberem sem parar. A produção destes livros deveria, ainda assim, estar mais atenta aos custos do guarda-roupa e adereços. Um romance de Rodrigues dos Santos ficaria decerto mais em conta se existisse maior contenção orçamental nestas despesas supérfluas, voluptuosas mas voluptuárias, com lingerie feminina estraçalhada e erecções monumentais a rebentarem as calças dos protagonistas masculinos.            
         Depois de rasgarem as vestes, Amélia tranca a porta do quarto. Foi o último momento de racionalidade deste seu desempenho na página 288 de A Vida Num Sopro. A partir daí, o seu “corpo logo se tornou uma besta” e Luís, para domar a fera, fez valer os conhecimentos que adquirira em Lisboa, na Escola Superior de Medicina Veterinária. Começou por deslizar para os “seios gordos e arrebitados”, apertou os “mamilos cor-de-rosa” e “abocanhou-os com gula”, exactamente como Tomás fará aos peitos de Raquel, em 2012, em A Mão do Diabo (“abocanhou com sofreguidão”). Antes de entrarem na piscina municipal (“os corpos começaram a nadar um no outro”), Amélia ainda procede a uma genuflexão, cujo exacto propósito não alcançamos (“ajoelhou-se sobre o ventre dele para o saborear também ela”). Depois, na barafunda total, ela “enrodilhou-se nele” e ficaram ambos “eléctricos”. Até a cama do quarto, para não ficar parada, decidiu fazer um pouco de bricolage, começando a “martelar a parede” (num breve recontro sexual na página 295, a cama irá chiar, suscitando uma “chinfrineira aguda das molas”). E se em A Mão do Diabo  teremos uma “bigorna a bater em ferro em brasa”, aqui, n’A Vida Num Sopro, há “ferro duro em lava incandescente” e em O Anjo Branco teremos mesmo o auxílio de um profissional, “um ferreiro que malha o ferro até o metal se dobrar à sua vontade”. O macho começa a “enchê-la” e a fêmea, por sua vez, principia a “derreter-se”. Claramente, José Rodrigues dos Santos embrulhou-se na narrativa e encontra-se em dificuldades para fazer sair dali com vida aqueles corpos de dois adultos que, de livre vontade, se enchiam e derretiam mutuamente num quarto da Quinta da Pousada, em Castelo de Paiva. É aqui que se vêem os grandes escritores. Numa situação deveras complicada, Rodrigues dos Santos intervém sem pestanejar e, com galhardia, remata a cena rapidamente, ainda a tempo de ir apresentar o telejornal das oito: 
 
“Era como se os dois corpos se tivessem tornado um (…).. as batidas sincronizadas, o ritmo intensificando-se a cada pancada, sempre mais depressa, mais depressa, depressa, depressa, depressa, de-pre-ssssssssssaaaaaaaaaa…” (p. 288)
 
         Para se perceber a que estado lastimável chegou este autor, para se alcançar a plenitude do seu drama íntimo, assinale-se que a última cena de contacto físico-químico entre Amélia e Luís tem lugar… num curral. Nem sequer um curral, pois “era mais uma pocilga e um galinheiro, uma vez que ali só havia porcos e galinhas” (p. 296). Os porcos, pressentindo que ali iria haver porcaria, queixaram-se como puderam (“os suínos, sentindo o movimento, puseram-se a grunhir”). Nem isso impediu Luís e Amélia de prosseguirem, naquela pocilga imunda, os seus intentos pecaminosos. Certamente porque se encontravam numa parte de casa reservada a porcos e galinhas, ele “virou-lhe o corpo, assentou-a de gatas e entrou nela”. Crê-se que ainda de gatas, Amélia gemeu. E o que acontece de seguida é um prodígio literário que cruza, numa síntese poderosa, a agropecuária e o bailado clássico: “Os gemidos de Amélia irromperam pelo curral, misturados com o grunhido dos suínos; os porcos agitavam-se de um lado da cerca, os amantes bailavam do outro lado, animais uns e outros”.      
 
         A isto desceu a imaginação erótica de Rodrigues dos Santos: sexo entre, com e na presença de animais. Depois da sopa de peixe, JRS dá-nos uma maçã como afrodisíaco e uma pocilga como cenário. Quanto ao mulherio, um horror, chegando a dar à costa “uma baleia rosada com um ténue bigode sobre os lábios”, de seu nome Ermelinda (p. 470). Quanto ao mais, os temas costumeiros que surgem em todos os seus livros: o aperto urinário que obriga a uma momentânea saída de cena (“vou ali à casinha”, diz uma corista na página 142), a analogia entre corpos e instrumentos musicais (o corpo dessa corista incontinente era “curvilíneo como uma viola”, p. 142, igual ao da Rebecca de Fúria Divina, p. 116, que se “desenhava curvilíneo como uma viola” ). Há situações e diálogos hilariantes. O bruto Chico mata o caseiro Tino, partindo-lhe o pescoço. Ao ver o cadáver, Luís pergunta-lhe: “−Tu tens noção do que fizeste?”. Responde a besta: “− Calei-o.” Observa Luís: “− Lá isso é verdade (…) Lá calado está ele, não há dúvida nenhuma.” (p. 311). Na penumbra da Igreja da Misericórdia, em Penafiel, Amélia exclama, muito devota: “Ai meu Deus, Virgem Santíssima!”; Luís, anticlerical do reviralho, responde: “Porra para isto.” (pp. 324-325). Em Lisboa, além de frequentar prostitutas e casas de má fama, Luís é acometido por uma epifania, na Baixa (“No rescaldo da sua epifania no Rossio”, p. 179). De facto, ao ver uma mulher andrajosa, a pedir esmola na descida do Chiado, dá-se “o momento da epifania” e, “numa explosão de consciência”, Luís compreende que o desígnio da sua vida era a busca de justiça (p. 173). Esta repentina tomada de consciência social não o desviou dos estudos na Escola de Superior de Veterinária, descritos num parágrafo de fino recorte: “Luís estudou Veterinária dividindo os livros com os lençóis. Saltava da aula de Zootecnia Geral para a cama de Helena, dissecava um coelho em Anatomia Patológica e espremia um seio de Jacinta em anatomia feminina, discutia política com o amigo Fernando e amor com a varina Alzira” (p. 178). Entre os amigos, Luís era conhecido na capital como “Casanova de Bragança” (Tomás Noronha era chamado “Casanova” pelos colegas no liceu de Castelo Branco); os detractores de Luís tratavam o estudante de Veterinária por “Matadouro de Virtuosas” (p. 178).  Em Lisboa, além da epifania no Rossio, assistimos ainda a um arroto do amigo Fernando (“suprimiu um arroto”, p. 143), idêntico aos proferidos fragorosamente pelo russo Orlov durante O Sétimo Selo, pelo capitão Afonso no decurso de A Filha do Capitão e pelos soldados da guerra colonial em O Anjo Branco, que “arrotavam com abundância” (mais educado, o comando Angelino arrotaria também, mas “baixinho”).
 
Can't you see the enemy there?
 
 
 
 
Os homens de A Vida Num Sopro tratam-se de forma amistosa e viril, entre “porra” e “cabrão” (p. 145), com os italianos a gritarem “imbecille!” e os espanhóis, mais versáteis, a praguejarem “coño!”, “joder!”, “mierda!”, “cabrón!” ou “hijo de puta!”. Há três tiroteios onomotapaicos (Cata-cata-cata-cata-cata, p. 459; pop-pop-pop, p. 382; Trá-trá-trá-trá-trá-trá-trá-trá, p. 405), e dois toques de campainha, também onomatopaicos (trrrrrrrrrrim, p. 238; ding-dong, p. 420 e p. 493), além do riiiiiing do telefone, do paw.paw de dois disparos secos, dos clip-clop e clip-clap-clip-clap dos cascos dos cavalos nas ruas de Penafiel e do clang-clang da chave na fechadura da porta da cela de um preso político do Estado Novo. Mantêm-se, por outro lado, as pavorosas imagens de sempre: Luís será convocado à sede da Polícia de Viligância e Defesa do Estado, na Rua António Maria Cardoso, onde constata que “da janela do gabinete vinha um hálito de claridade” (no início do livro, os cabelos castanhos-claros de Amélia refulgiram “contra o hálito de luz”, p. 27, tendo sido, duas páginas antes, “incendiados por halos de luz crespuscular”, p. 25). Luís é enclausurado numa cela húmida, onde os minutos decorriam, evidente e humidamente, “a conta gotas”, enquanto dos “olhos tristes” da sua amada jorravam “lágrimas quentes”. Que delito cometera Luís? Um, gravíssimo, merecedor de pena capital. Aceitara figurar como principal personagem de um romance cujo capítulo XIX começa da seguinte forma: “Um sopro de aragem traçava um rasto cintilante no pó que flutuava à meia-luz da manhã, como se mil grãos de ouro faiscassem pelo ar” (p. 584). Tendo feito da Justiça o seu desígnio de vida, Luís enforcar-se-á na cela. Provavelmente, o gesto mais avisado que uma personagem de José Rodrigues dos Santos deve adoptar. 
 
 
(Continua)



 

4 comentários:

  1. Tão bom!!! (esta é a minha novela)

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  2. Incrível, hoje pela tardinha fui ao Continente para me abastecer de fruta e a maça reineta tinha acabado.
    Causou-me estranheza, agora percebo porquê.
    Deve andar muita gente a ler este blog e também os livros do locutor da RTP.

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  3. Depois de ler todas estas poucas vergonhas de JRS, só posso dizer: "Ai virgindade, virgindade, quem ainda a tem chama-lhe sua.".
    Tengo dito

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  4. Outra demolição em regra. Não deixa pedra sobre pedra.

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