quinta-feira, 1 de outubro de 2015


impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !

 

# 49, # 50 – CHARLES MINGUS




Fotografia de Guy Le Querrec

 

Mingus o temerário, Mingus o mercurial, Mingus o voraz, Mingus o insatisfeito, por secretamente julgar que nunca estava à altura das suas próprias ambições – donde a efígie de Mingus o carrancudo. Tudo isto é fidedigno, tudo isto foi sentido por quem com ele conviveu, nada disto conta.

Em palco e à vista de todos, donde era capaz de se dar ao respeito de mandar calar quem na plateia persistisse no falatório durante a música, Charles Mingus foi a presença maciça que emancipou o contrabaixo do jazz, tirou-o da casa das máquinas e redefiniu-lhe o estatuto. Com ele o contrabaixo deixou de ser o tapete voador que sustentava a excursões rítmicas e harmónicas dos solistas e tornou-se uma espécie de batuta, a criar ordem no ímpeto dos metais (saxofone, trompete, trombone) que irrompiam aparentemente à discrição no desenrolar dos temas, ou um êmbolo a impulsionar os parceiros para que não se distraíssem ou se conformassem. Quer isto dizer que mais do que um contrabaixista, Charles Mingus foi um supino compositor – há quem jure ter sido um dos maiores do jazz – e um orquestrador ou arranjador talvez só inferior a Duke Ellington, seu farol e mapa.

A publicação de “Pithecanthropus Erectus”, em 1956, arrebitou todas as orelhas da buliçosa e extraordinariamente competitiva cena do jazz de então. Jogando o jogo da metáfora, com o risco de empobrecer o enunciado, diga-se que assim como no dramático crescendo da composição se pode visualizar o primata a erguer-se e a fazer-se humano, também nessa progressão se representa o percurso de Charles Mingus, que desde o periférico bairro de Watts em Los Angeles, em que foi criado, chegava agora à ribalta depois de uma sofrida tarimba, do arqueológico Kid Ory até Charlie Parker, passando pela orquestra de Lionel Hampton. No ano seguinte, em 1957, abrindo o disco “The Clown”, Mingus fulgura outro tema de invulgar sofisticação e originalidade: “Haitian fight song” – mas donde provinha esta música, tão radical, tão ancestral e tão oxigenada?


 
Mingus Ah Um

1959 (2013)

Columbia / Sony Music Entertainment - 6619803

Charles Mingus (contrabaixo), John Handy (saxofone alto e tenor, clarinete), Booker Erwin (saxofone tenor), Shafi Haidi (saxofone alto e tenor), Jimmy Knepper, Willie Dennis (trombone), Horace parlan (piano), Dennie Richmond (bateria)

 

 
 
 
1959 está para o jazz como 1939 para o cinema: o ano perfeito e, simultaneamente, o jardim dos caminhos que se bifurcam. Alguém que oiça só os discos dessa colheita ficará imbuído da sensação de ter entendido tudo o nele desaguou e estará apetrechado para depreender tudo o que dele decorreu. E este foi o ano em que Charlie Mingus se firmou no seu pedestal, com “Mingus Ah Um”, título bizarro que a versão comum explica como uma mnemónica utilizada pelos alunos de latim – mas bem pode ser um pigarro, uma interjeição, ou um mantra tibetano entoado de peito…
         “Mingus Ah Um” é o ovo Dogon da obra de Mingus; na sua matéria compacta condensam-se e desfiam-se todos os elementos da sua música. Contrariando a maneira habitual e linear, a melhor forma de ouvir o trabalho musical de Mingus não há-de ser como um trajecto ou percurso. Ele não apontou para lado nenhum, nem veio de algum lugar específico, ele apareceu numa encruzilhada, imbuído do aluvião de jazz que ali convergiu, e desenvolveu a sua música sem sair dessa foz de tantas influências. A obra de Mingus não é um caminho mas um cruzamento; numa altura em que o bebop se acomodava à sua própria tradição e com o emergente freejazz disposto a lascar todas as raízes, entre dois dogmatismos, portanto, Mingus ergueu a sua própria barricada.
À convocatória de “Mingus Ah Um” só faltou o ecletismo, que seria o expediente mais fácil para organizar tamanha variedade de processos, efeitos e resultados. Há temas com melodia de assobiar de cor (será exagero afirmar que “Better Git in Your Soul” ou “Goodbye Pork Pie Hat” são imortais?); sem medo da estridência, a polifonia dos metais em certos momentos emana uma atmosfera cinematográfica; a orquestração dos solos tem a excitação sem embriaguez de uma jam session e as arestas harmónicas muito “livres”, aguçam sobre um provecto, quase telúrico, colchão rítmico de blues e gospel. Com “Ah Um” Mingus foi laureado César pela cidade.
Mas depois da vitória, a derrota, porque a vida dos músicos tem recorrências de Ícaro. Em 1962 Charles Mingus aventura-se a um concerto no Town Hall de Nova Iorque, compondo com ambições sinfónicas para uma grande massa orquestral, mas o evento foi mal preparado e pior administrado, resultando num fiasco absoluto; nem sequer granjeou a glória de uma derrota épica – apenas uma cuidadosa, e por isso mesmo constrangedora, indiferença.
 
 

 
The Black Saint and the Sinner Lady

1963 (2007)

Impulse! - 9600

Charles Mingus (contrabaixo, piano), Rolf Ericson, Richard Williams (trompete), Quentin Johnson (trombone), Don Butterfield (tuba), Jerome Richardson (saxofone soprano, barítono, flauta), Dick Hafer (saxofone tenor), Charles Mariano (saxofone alto), Jackie Bayard (piano), Jay Berliner (guitarra), Dannie Richmond (bateria).

 


Que outro exemplo, além de “The Black Saint and the Sinner Lady”, se conhece de uma obra prefaciada pelo psiquiatra do artista? Após o desastre de Town Hall a convalescença foi violenta – uma depressão aguda, um ano abúlico. Porém a fénix renasceria com esta suite, que a etiqueta Impulse! se propôs editar à condição. Contra a vontade do autor, a peça não seria publicada como um todo ininterrupto, não só dada a impossibilidade técnica de a sua duração ser incompatível com os long play (no mínimo haveria que virar o disco…) como foi decisão do editor separar as partes, ou “movimentos”, para maior comodidade do ouvinte e dos disc jockeys radiofónicos.
Ao entrarem no estúdio cada um dos onze intérpretes não tinha dúvidas sobre o que lhe competia e o que podia fazer, visto que o ensemble trazia já seis semanas de experiência ao vivo no Village Vanguard, durante as quais a partitura original foi apurada e alterada até ao nível de aperfeiçoamento cometido no registo. Este tirocínio revelou-se capital dado que “The Black Saint and the Sinner Lady”, com a sua estarrecedora complexidade, legitimou de modo irrevogável as credenciais ellingtoninanas de Charles Mingus; a dinâmica das secções foi refinada até à filigrana ao mesmo tempo que a articulação e a totalidade sonora saía robustecida.
A música de Mingus não faz dançar como o swing, mas agita o corpo; não nos provoca o transe das grandes palpitações rítmicas, mas possui uma exaltação que não dá um segundo de sossego; estão sempre a acontecer muitos sons, mas conseguimos distingui-los um por um; sabemos para onde o classicismo do seu andamento nos leva, mas brotam as surpresas. E tudo isto continua a colher-nos ao cabo de muitas audições, assim como no fim, depois e tanto engenho, o sabor que nos fica na memória é irremediavelmente o travo agridoce e antiquíssimo dos blues.
 
José Navarro de Andrade
 
 

1 comentário:

  1. Continuamos nos dinossauros, infelizmente todos já desaparecidos.
    Podem e vão aparecendo outros, podia ser igual mas não é.
    Desde tenho os aqui mencionados e mais alguns.
    Vou até ao baú ver o que se pode arranjar.
    Até logo.

    ResponderEliminar