quinta-feira, 3 de março de 2016





impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !

 

# 65, # 66 - WAYNE SHORTER

 

 

 
Às 20h37 do dia 17 de Julho de 1996 apagou-se de repente dos radares o ponto de luz que assinalava o vôo TWA800. O avião acabava de se fragmentar numa bola de fogo a 15.000 pés de altitude, ao largo de Long Island. Nunca a investigação científica conseguiu apurar a causa determinante do acidente; pelo contrário, as teorias da conspiração, que sabem sempre tudo, já depreenderam díspares e fenomenais explicações, qual delas mais cabal. 
Na lista dos 230 malogrados lia-se o nome de Ana Maria Patrício, nascida em Aveiras de Cima, mas criada em Angola, donde transitou, ainda com os pais, para os Estados Unidos. Em 1965 conheceu Wayne Shorter, que no fulminar da paixão fez dela a sua musa. Ana Maria embarcara no vôo fatídico para ir ao seu encontro em Paris, donde talvez seguissem em vilegiatura para o seu refúgio de Aveiras. Sim, Wayne Shorter passeou-se pelas ruas de Aveiras, às vezes acompanhado por Carlos Santana, sem que ninguém lhes descobrisse a celebridade.
Esta rara tragédia foi a maior tribulação na existência de um Wayne Shorter que, dir-se-ia, terá porfiado por biografia pouco acidentada.
Licenciatura, mestrado e doutoramento, fê-lo, como tantos outros, nos Jazz Messengers de Art Blakey. De tenorista promissor a alguém que talvez pudesse levantar a cabeça entre enormidades como John Coltrane e Sonny Rollins – ponha-se lá na balança Stan Getz e Ornette Coleman, só para dar lastro – foi empreendimento de 5 anos.
Desde que Coltrane abandonara Miles Davis este andava a rondar Wayne Shorter, sem consideração por Art Blakey. Mas Shorter que não, que não, quem sabe se por cortesia para com o mestre, se reticente em sair da frigideira para o lume, ou com vontade de seguir a sua própria estrela. Até que no início de 1964 lá se decidiu a saltar do ninho dos Jazz Messengers. O disco “Juju” – até aí marcara terreno com 4 trabalhos primorosos mas não deslumbrantes – levantou todas as orelhas na sua direcção. Então este é que era o seu autêntico estro musical? Um semestre depois, a voz que ali se destacava afirmou-se de vez, finalmente desembaraçado da influência de Coltrane – ostensivo santo patrono de “Juju” – com “Speak No Evil”.

Speak No Evil
1965 (2008)
Blue Note / EMI Music Distribution - 7129
Wayne Shorter (saxofone tenor), Freddie Hubbard (trompete), Herbie Hancock (piano), Ron Carter (contrabaixo), Elvin Jones (bateria).
 
Daqui em diante há que seguir de calendário da mão, porque a cronologia é exemplarmente complicada: “Speak No Evil” foi gravado na véspera de Natal de 1964 – é favor fixar esta data.
Um par de meses antes Miles começara a calibrar o seu “segundo grande quinteto”, estreando-o num concerto ao vivo no próprio dia em que Wayne Shorter chegou a Los Angeles – viagem em primeira classe: cortesia de Miles – e prosseguindo com uma digressão europeia, a qual deu origem ao disco “Miles in Berlin”, com registo no dia 25 de setembro de 1964.  
 
Pouco menos de um mês depois de “Speak No Evil” o quinteto grava, entre 20 e 22 de janeiro de 1965, o primeiro álbum da sua lenda: “E.S.P.” Nele Miles Davis incluiu duas composições de Wayne Shorter, uma delas a que dá título à obra. 
“Speak No Evil” apenas viria a ser dado à estampa e distribuído em 1966; ou seja: 6 meses depois de “E.S.P.”
Mas a confusão só aumenta com o que estando antes, só veio a seguir:
O magnífico “Indestructible”, que foi a derradeira inscrição do nome de Wayne na ficha dos Jazz Messengers, fabricado às pinguinhas entre 24 de Abril e 15 de Maio de 1964, raiou nos escaparates tão-somente no princípio de outubro de 1966. Quer dizer: depois de “Speak” e muito depois de “E.S.P.”
Esta retorcida e vertiginosa sequência editorial, além de comprovar que o jazz destes anos produzia obras-primas como se não houvesse amanhã, confundiu aos ouvidos coevos as etapas da evolução musical de Wayne Shorter.
As formações da época tinham geometria variável. Como na dança das cadeiras, os músicos rodavam ao sabor das oportunidades, ora liderando as suas próprias experiências, ora secundando o desempenho de quem antes fora seu companheiro. Em “Speak No Evil” Wayne Shorter traz boa parte da secção rítmica com quem começara a trabalhar à volta de Miles (Herbie Hancock no piano e Ron Carter no contrabaixo), à qual agregou Elvin Jones, que viera aqui ter apenas 15 depois dos êxtases de “A Love Supreme” de John Coltrane. Ao lado de Shorter, na linha dos sopros, toma lugar o trompetista Freddie Hubbard ainda vinculado aos Jazz Messengers, com quem havia confabulado inúmeras vezes.
“Speak No Evil” conceitua a qualidade de compositor de Wayne Shorter, distinguindo-o como um dos artífices mais subtis do jazz. A sua música é peixe de águas profundas, porque sem nunca encapelar a matriz harmónica do hard bop, que à superfície parece ondular como habitualmente, denota, no âmago de cada tema, nas “pontes” e na progressão, surpreendentes e sofisticadas soluções, que deixavam muitos estudiosos a coçar a cabeça e perguntar como era possível.
Após “Speak No Evil” Wayne Shorter não descolou de Miles e esteve com ele na sua fase mais eléctrica e funky (“Bitches Brew”). Tanto gostou do género que o prolongaria com os “Weather Report”. O jazz de fusão demonstrou ser de pavio curto. Trespasse para o qual muito contribuíram o passo atrás (para dar dois em frente) dos restauracionistas de 80 liderados por Marsalis – que muito admirou Shorter, mas não o comoveu – e a resiliência do free jazz, senhor do baluarte em que se fortificou. Depois de 15 anos com vento pelas costas, até à consumição do “Weather Report” em 1986, Shorter passou quase duas décadas descansadamente à bolina, longe das ribaltas e, com o tempo, adquiriu a previsibilidade dos consagrados.
 

Alegría
2003
Universal / Verve - 5435582
Wayne Shorter (saxofone tenor e soprano), Brad Mehldau, Danilo Perez (piano), John Patitucci (contrabaixo), Brian Blade, Terri Lyne Carrington (bateria).
E ainda: Chris Potter (saxofone tenor, clarinete baixo), Lew Soloff, Jeremy Pelt (trompete), Jim Pugh, Papo Vázquez (trombone), Marcus Rojas (tuba), Alex Acuña (percussão), etc.
 
Se foi das efusões do novo século, ou se o acendeu o regozijo de tocar com uma secção rítmica de músicos com idade para serem seus pupilos, mas que, à boa maneira do jazz, o acompanhavam a par e passo sem preito, Wayne Shorter despertou qual Bela Adormecida, no ano 2000, do remanso em que o achavam. Se o primeiro resultado – Footprints! Live (2002) – desta nova sociedade espantou, a segunda prova arrebatou. Num fósforo “Alegría” propeliu até ao firmamento do jazz, com vendas, prémios e tudo.
“Alegría” é uma porta giratória de músicos e composições; o que vem a seguir nada deva ao que ficou tocado e atado. Se é Danilo Perez que está ao piano toque-se “Vendiendo Alegría” com Wayne Shorter no saxofone soprano a desembainhar a melodia fio a fio; se for Brad Mehldau reinvente-se “Angola” – um standard do Shorter dos anos 60 – como se nunca houvesse sido decifrado. Nos metais fazem fila para entrar ora Jeremy Pelt, ora Lew Soloff (trompetes), ora Chris Potter (saxofone tenor), numa alternância de gerações e estilos surpreendente.  No repertório é igual o enciclopedismo; venha de lá uma balada do séc. XII, ou as “Bachianas Brasileiras” de Villa-Lobos – o jazz como meta-música, portanto.
Com 70 anos de idade, quando dele se esperavam palestras e tributos, Wayne Shorter ousa uma complexidade e, ao mesmo tempo, uma jovialidade, que antes de se ter ouvido “Alegría” jurava-se impossível.
 
 
José Navarro de Andrade



 

3 comentários:

  1. Não é para polémica mas o acidente do TWA800 foi explicado como uma explosão num dos tanques de combustível, ocasionado por o mesmo estar quase vazio.
    https://en.wikipedia.org/wiki/TWA_Flight_800
    Tenho alguns deste, lá irá um.

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  2. Caríssimo: por razões editoriais acabei por cortar precisamente essa explicação do texto. Mas ela é avançada com cautela pelos investigadores da NTSB, dado que não obtiveram provas irrefutáveis.

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  3. Quando "flagrei" o meu filho de 23 anos ouvindo esse disco percebi que devia tentar "renovar" o gosto.Era dos que eu não ousava gostar.Burro!Infelizmente voltará a acontecer,espero com o mesmo fim.

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