Aventura em Marrocos.
O fascínio do fruto proibido.
Foi nas
férias de Natal de 1976. Juntamente com um grupo de cerca de cinquenta
americanos, quase todos da terceira idade e a respirar prosperidade, da vila e
subúrbios de Litchfield, do Estado de Connecticut, fui em excursão passar umas
duas semanas a Marrocos e uma semana a Portugal.
Durante a
estadia em Marrocos visitámos as cidades de Marraqueche, Fez, Tânger, Rabat, e
Casablanca, e, durante o percurso de autocarro, vimos por alto algumas outras
cidades.
Se disser
que, muito antes da realização da excursão a Marrocos, o que mais desejava
visitar eram as mesquitas, digo a verdade toda, dado o meu grande fascínio
pelos lugares de culto, desde as catedrais às mesquitas, desde os mosteiros às ermidas
mais humildes. Entretanto, para grande desilusão minha, uma das primeiras
coisas que o nosso guia oficial, funcionário público do governo marroquino, nos
fez saber, logo que aterrámos no aeroporto de Rabat, foi que era absolutamente
proibido entrar em qualquer mesquita a todos os não muçulmanos.
Ao
perguntar se não poderia abrir uma excepção à regra, sobretudo tendo em conta
que se tratava de uma excursão organizada pela reitora de um community college
americano, excursão em que participavam vários educadores e professores de
história universal e de religião comparada, como era o meu caso (expliquei eu
com algum exagero), a resposta do zeloso e autoritário guia foi pronta e
terminante: − que era absolutamente proibido e ponto final.
Perante
directiva tão peremptória, resolvi não voltar a levantar a questão, mas, muito
só para mim, prometi-me que não sairia de Marrocos sem visitar uma mesquita,
por mais difícil que viesse a ser a realização dessa minha promessa. E que era
difícil sabia-o eu muito bem, uma vez que não se previa qualquer programa de carácter
individual durante essas duas semanas: todas as visitas teriam que ser feitas
em grupo e acompanhadas pelo dito guia e por um seu auxiliar, desde o momento
da entrada até ao momento da saída de Marrocos.
Passavam os
dias; de uma cidade viajávamos para outra; aproximava-se o termo da excursão, e
as possibilidades de eu visitar uma mesquita pareciam ser cada vez menores.
Estávamos
em Tânger; faltavam dois dias para deixarmos Marrocos a caminho de Lisboa, e eu
sem ter podido entrar numa mesquita de Marrocos! Mas a promessa estava feita e
eu tinha de cumpri-la. Como? No penúltimo dia, logo a seguir ao almoço, como de
costume, todos se aprontavam para visitar não sei que monumentos, quando eu fiz
saber que me sentia um pouco mal disposto, e, sendo assim, achava por bem ficar
a repousar no hotel. Que lamentavam o facto e que esperavam que, ao
regressarem, eu já me sentisse melhor.
Apenas o
autocarro saiu do hotel, com todo o grupo, eu dirigi-me sozinho para um sector
da cidade onde no dia anterior tinha visto uma mesquita, por fora,
naturalmente. Tratava-se de uma mesquita modesta, cuja entrada dava para uma
rua antiga e muito estreita (digo “mesquita modesta”, para estabelecer o contraste
com as majestosas mesquitas que anos mais tarde teria a dita de visitar,
fascinado, sem quaisquer restrições, no Egipto e na Turquia).
Apenas aí
chegado, notei que estava perante uma mesquita para onde entravam e donde saíam
pessoas, num fluxo quase contínuo. A porta estava separada da rua por quatro ou
cinco degraus descentes, pelo que logo cheguei à conclusão que não me seria
possível entrar sem ser visto por um ou vários dos fiéis. Que fazer então? Dar
meia volta e desistir da aventura? De maneira nenhuma. Tinha de tentar, desse
no que desse. E apenas deparava com uma pequena aberta, tirava os sapatos muito
depressa e começava a descer os degraus. Mas, dado o tal fluxo quase contínuo
de fiéis, lá surgia sempre alguém que, ao dar com os olhos em mim, me acenava
imediatamente que não podia entrar, descobrindo no meu semblante, na minha
maneira de vestir e nos meus ademanes que eu não era um deles, que eu não era
muçulmano. E eu voltava a calçar os sapatos, ascendia os degraus e parava no
passeio da rua à espera de outra oportunidade. Mais umas três tentativas e o
resultado era sempre o mesmo. Lá surgia um fiel a acenar-me que eu não podia
entrar. Até que chegou o momento em que pude descer todos os degraus, cruzar a
ombreira da porta e penetrar na mesquita. Mas não tinha dado mais de meia dúzia
de passos, com os sapatos na mão e a cabeça ligeiramente inclinada, com ar de
devoção, quando me vejo agarrado pelo ombro. Volto-me e dou com os olhos num
indivíduo dos seus vinte e tal anos, que me pergunta de chofre, em francês,
naturalmente:
− Que faz o
senhor aqui? Não sabe que é proibido aos turistas não muçulmanos entrar numa
mesquita?
− Como?
Proibido? Que pena! − apressei-me eu a dizer, em tom ingénuo, no meu francês quase
parisiense, como era de esperar, modéstia à parte, de um Mestre em francês, por
Assumption College, de Worcester, Massachusetts, e por um professor
universitário de francês. - E eu que tinha esperado com tanta ansiedade o
momento em que tivesse a dita de poder entrar numa mesquita para aí fazer as
minhas orações, sentindo, como sentia, qualquer coisa dentro de mim que me
chamava para essa extraordinária religião que eu tão bem conhecia
academicamente, mas que nunca havia tido a sorte de senti-la e vivê-la no
recolhimento de uma mesquita - continuei eu, com um ar muito compungido e
devoto, a explicar ao meu interlocutor a razão do meu suposto atrevimento.
− Ah! −
exclamou o meu interlocutor. − Era mesmo assim? Isso era muito impressionante!
Que sabia eu de concreto sobre a religião maometana? Sabia eu quais eram os
deveres principais de um verdadeiro fiel maometano? Quais eram?
E eu que,
por dever profissional, sabia, pela rama, os factos fundamentais sobre a
teologia dogmática e moral e a liturgia básica da religião muçulmana, apressei-me
a recitá-los ao meu examinador, como se estivesse a ser interrogado sobre o
catecismo da religião católica.
A essa
pergunta outras se seguiram, inclusive uma sobre a unidade ou a trindade de
Deus, segundo o Alcorão, o que mostrava que o meu examinador não era totalmente
hóspede em matérias do dogma da religião católica.
E perante
esse meu conhecimento básico da religião muçulmana, desde a existência de Alá e
do seu Profeta até à peregrinação a Meca, ao menos uma vez na vida, se
materialmente possível, e desde a obrigação de rezar cinco vezes por dia até à
observação fiel do jejum dos 40 dias do Ramadão, o meu examinador aprovou-me
preliminarmente, deu-me as boas-vindas e prometeu-me que iria rezar muito por
mim, a fim de eu dar piedosa guarida à voz interior que me incitava a abraçar
de alma e coração a religião muçulmana.
E enquanto
me ia endoutrinando e procurava convencer-me dos benefícios inefáveis que me
adviriam da minha futura adopção da religião maometana, o meu futuro irmão,
como passou a tratar-me, ia-me apresentando a várias das pessoas que, ao
entrarem na mesquita para a oração, se punham a olhar para mim com ar um pouco
desconfiado. Mas o meu anfitrião e mentor tranquilizava-os imediatamente,
dizendo-lhes que ele tinha fé em que dentro de muito pouco tempo todos seríamos
irmãos em Alá e no seu Profeta.
E já
levávamos quase uma hora a conversar sobre a religião maometana, a meia voz e
em tonalidade devota, dentro da mesquita, quando foi dado sinal para a oração
comunitária.
Após uma rapidíssima
explicação do que se tratava, o meu presumível futuro irmão em Alá e o seu
Profeta, mandou-me pousar os sapatos no chão, ao lado dos dele, mas numa
posição ritual que eu desconhecia, e fez-me sinal que o acompanhasse. Dados uns
passos, em direcção à parede da mesquita em que se encontrava a qiblah (uma espécie de nicho, que
apontava para Meca), ocupámos o nosso lugar numa das longas filas de fiéis,
paralelas à dita parede. E iniciadas as orações, em voz alta, sob a direcção de
um iman, disse-me que o imitasse. E eu, de lábios fechados, por não saber uma
única palavra da língua em que toda a comunidade rezava - o árabe - e de olhos
um pouco enviesados para ver o que o meu improvisado mestre de noviços fazia,
lá me ia esforçando por imitar todos os seus gestos. Mas era tal a minha
atrapalhação, que a todo o momento o via a ajeitar-me as mãos na posição que o
ritual prescrevia. E entre colocar as mãos no rosto e nos joelhos, com os dedos
em determinada posição, e entre ajoelhar-me e prostrar-me, de mãos estendidas e
de palmas para baixo a roçar o chão, e levantar-me e voltar a ajoelhar-me e a
prostrar-me, passou a hora da oração comunitária em voz alta, em diálogo
contínuo entre o corifeu e o coro.
Que senti
eu verdadeiramente durante aproximadamente as duas horas passadas no seio da
mesquita de Tânger, cujo nome não
lembro? Senti uma vasta gama de emoções, entre as quais sobressaem a
vitória de ter conseguido satisfazer a enorme curiosidade de ver por dentro uma
mesquita de um país árabe e, ainda por cima, durante uma função litúrgica,
contra a ordem expressa do guia e da lei de Marrocos; o sabor mais amargo que
doce de ter cometido uma espécie de sacrilégio contra a religião em que tinha
nascido, em que tinha sido criado e em que tinha vivido como religioso de votos
perpétuos e como seminarista próximo da ordenação sacerdotal, “espécie de
sacrilégio” que não deixou de doer um pouco, interiormente, mesmo apesar do
agnosticismo em que tinha vindo a viver fazia já vários anos.
De maneira
que foi com certa sensação de alívio que saí para o ar fresco da noite de
Janeiro do ano do Senhor de 1976.
Mas quando
julgava que a aventura acabara no momento em que transpusera a ombreira da
porta da mesquita para o ar fresco da noite tangerina, que entretanto caíra,
quase para surpresa minha, longe estava eu de imaginar que o pior estava ainda
por acontecer. É que, julgando que, uma vez fora, o presumível futuro irmão,
que em boa hora me apadrinhara na mesquita, me deixava ir em santa paz a
caminho do meu hotel, insistiu em acompanhar-me até lá.
Que muito
obrigado, que não precisava, que eu sabia dar com o caminho sozinho. Não
senhor: ele fazia questão de me acompanhar. E perante a minha insistência de
que não precisava de guia, ele foi peremptório: que, sendo noite cerrada, e
tendo de passar por ruas mal iluminadas e ainda para mais por um bairro pouco
recomendável para uma pessoa sozinha e estrangeira, ele não podia permitir,
como meu futuro irmão, que eu corresse o risco de ser assaltado, e quem sabe se
até esfaqueado por um dos muitos ladrões que havia por esse bairro. E, perante
tanta insistência, eu não tive outro remédio senão consentir em que ele me
acompanhasse.
Havíamos
percorrido uns duzentos metros, por umas ruas muito estreitas e quase sem
qualquer iluminação, quando o meu futuro irmão em Alá e o seu Profeta, cujo
nome desconhecia, apesar das horas passadas em sua companhia e sob a sua
protecção dentro da mesquita, se voltou para mim e me disse, sem qualquer
preâmbulo, que eu tinha de lhe dar dinheiro, uma vez que ele era pobre e eu era
rico.
Ao ouvi-lo
pronunciar essas palavras, quase me caiu a alma aos pés. Em que sarilhos me
tinha eu metido! Na rua em que nos encontrávamos não havia viv'alma.
Instintivamente, meti as mãos aos bolsos para ver se por milagre dava com
qualquer coisa com que pudesse esboçar uma espécie de gesto de auto-defesa,
como, por exemplo, uma navalha, que sabia de antemão que não tinha.
Que fazer
então? A primeira coisa que lhe disse, trespassado de medo, foi que nem eu era
rico nem ele devia ser pobre. Como era possível que ele, daquela idade − de 29
anos, como me dissera durante a nossa conversa, logo à saída da mesquita −, não
tivesse um emprego em que ganhasse o suficiente para viver? A resposta dele foi
que não tinha emprego nem tinha qualquer interesse em arranjar emprego. Que até
aos vinte e cinco anos ainda ganhava mais ou menos o suficiente para custear o
que comia, em casa da mãe, onde sempre vivera. Que ganhava essa módica quantia
de dinheiro tocando percussão num conjunto musical de um bar, mas aos vinte e
cinco anos achou que devia abandonar esse trabalho precário mundano e dedicar
toda a sua vida à oração e à prática da caridade. Que a mãe bem insistia com
ele para que arranjasse algum emprego a fim de pagar pelo menos o que comia,
mas que ele a única coisa de que gostava na vida era passar horas esquecidas a
rezar na mesquita e a passar parte das noites em velórios. Que nessa mesma
noite, depois de me deixar no hotel, tinha que ir para um velório, como quase
todas as noites fazia. Que por isso ele não tinha dinheiro nenhum e que eu
tinha de lhe dar umas boas notas.
E depois de
lhe dizer que, estando no último dia da viagem, já não me restava dinheiro
nenhum, ele ripostou que não acreditava nisso: que, como americano, tinha por
força de ter muito dinheiro. Que lho desse, portanto, porque ele precisava
absolutamente dele.
E foi então
que me lembrei de apelar para os sentimentos religiosos dele, dizendo-lhe que
eu não compreendia como tínhamos estado a rezar juntos, como íamos ser irmãos
em Alá e o seu Profeta, que em espirito já o éramos, e ele queria por força que
eu lhe desse dinheiro que eu não tinha. Que visse bem que isso não era bonito:
que certamente não era essa a imagem que ele me queria dar de um bom e devoto
filho de Maomé.
Que o que
me pedia não tinha nada a ver com a imagem com que eu podia ficar dele - foi a sua
reacção imediata. Pelo contrário, quanto mais dinheiro recebesse de mim mais
possibilidades ele tinha de cumprir, com mais assiduidade e fervor, todos os
seus deveres religiosos e as suas devoções particulares e as suas obras de
caridade.
De maneira
que, absolutamente convencido de que ele parecia disposto a tudo fazer para me
extorquir dinheiro, eu ia estendendo os olhos por meio da cerração da noite
para ver se via pessoas perto ou se deparava com pedras nas ruelas por que
íamos andando, para tentar defender-me oportunamente, se necessário fosse.
Foi então
que, no meio do meu medo crescente, por não saber para onde me devia virar, me
surgiu uma ideia que talvez me ajudasse a sair do terrível perigo em que ingénua
e estupidamente me havia embrenhado. Estava muito bem. Era difícil de
compreender que, quem rezara por mim e comigo, queria a todo o custo obrigar-me
a dar-lhe dinheiro que tanto me custara a ganhar. Mas, uma vez que ele era uma
alma que desejava ardentemente viver só para o serviço de Alá e dos que Ele
chamava para o seu seio, eu ia de facto dar-lhe uma boa parte do dinheiro que
me restava, na esperança de assim contribuir para o bem dele e para a glória de
Alá e do seu Profeta. Que comigo não tinha nenhum, sabendo como era perigoso,
como ele confirmara, andar com dinheiro no bolso num meio em que havia tantos
ladrões; mas que o tinha no quarto do meu hotel. Por isso que não se voltasse a
falar entre nós de dinheiro; que ocupássemos o tempo que nos separava do meu
hotel a falarmos da nossa fraternidade e do que ele fazia nos velórios por
aqueles que Alá chamava para o seu seio e para o seu paraíso; que, uma vez
chegados ao hotel, ele me esperava à porta enquanto eu ia buscar ao quarto uma
boa parte do dinheiro que tinha lá para lho dar.
E quando
notei que ele aceitava a minha proposta, senti como que nascer em mim uma alma
nova, vendo com bastante clareza que quase todo o perigo estava passado. Mas a
alma pareceu ainda mais nova no momento em que, transposta uma curva da última
rua em que nos encontrávamos, demos de frente, já a pouca distância e
feericamente iluminado, com o hotel em que eu e todos os outros membros da
excursão estávamos hospedados.
Uma vez
chegados à porta, disse-lhe que, tal como tínhamos combinado, ele esperasse aí
enquanto eu corria ao quarto buscar o dinheiro.
Que suspiro
de alívio! Transposta a porta do hotel, notei que o grupo já tinha regressado
das visitas da tarde e se encaminhava para a sala de jantar. Com a maior
discrição e com a serenidade possível, depois da prova a que idiotamente me
havia submetido, dirigi-me à pessoa de mais confiança do grupo, contei-lhe por
alto o que me acontecera e implorei-lhe um favor muito especial: que à porta do
hotel, do lado de fora, estava uma pessoa assim e assim (e fiz-lhe uma
descrição rápida da fisionomia e do trajo); que tivesse a bondade de, de quarto
em quarto de hora, verificar muito discretamente se ainda se encontrava lá. Que
no momento em que já não o visse, fizesse o favor de me informar. E a verdade é
que o meu presumível futuro irmão em Alá e o seu Profeta esteve à minha espera
mais de uma hora, segundo o cômputo do amigo que me valeu nessa noite de
loucura em Tânger. Até que, talvez cansado de esperar por um Godot que nunca
mais chegava e quem sabe se telepaticamente chamado pelo defunto que precisava
que ele o fosse velar, me deixou a refazer-me de um susto inesquecível, vivido
no intrigante, misterioso e perigoso mundo marroquino de Tânger.
António Cirurgião
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