quinta-feira, 12 de maio de 2016




impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !

 

# 69, # 70 - CHICK COREA

 

 

 
 
Em 2010 Chick Corea foi eleito para o Hall of Fame da DownBeat, um Panteão apenas controverso pelas ausências, ao contrário de outros, que o veredicto do tempo transformou em armários de esqueletos. Nesse galarim já haviam sido entronizados Herbie Hancock (em 2005) e Keith Jarrett (2008), rapazes da mesma ninhada de Corea, todos burilados na serralharia de Miles Davis. Uma geração em que McCoy Tyner – também com assento no Hall of Fame desde 2004 – fez de Caim.
Quase de certeza sem fito nem premeditação coube a Chick Corea, mais do que aos outros pianistas da sua mocidade, corporizar as indefinições do jazz da época em que despontou, bastante alteroso e discrepante. Cada passo do seu itinerário musical mostrou-se seguro e parecia responder a um programa de futuro, mas olhado retrospetivamente o percurso terá sido errático, sempre sujeito às efémeras certezas dos períodos por que passou.
A de Chick Corea é, portanto, uma daquelas obras que é preferível capturar fora do contexto e antes da sequência que teve, ouvindo-a quando mais frescas e potenciais se mostram as suas qualidades.
 

 
Now He Sings, Now He Sobs
1968 (2014)
Solid State / Blue Note - B2-90055
Chick Corea (piano), Miroslav Vitous (contrabaixo), Roy Haynes (bateria).
 
Poder-se-ia evocar “The Complete ‘Is’ Sessions” (editado em 2002), registo dos trabalhos de estúdio de dois dias de Maio de 1969, que ainda nesse ano deram origem aos discos “Is” e “Sundance”. Chick Corea estava aqui naquele momento extraordinariamente delicado que é o da “segunda obra” (em português não há tradução à letra ou conceptual de “sophomore”), na qual há que cumprir as promessas, mostrando que elas não foram em vão, e em que se está obrigado a expressar um estilo próprio. Mas esta jornada, sendo admirável, tem algo já de “cultural”, ou seja, transpira auto-consciência em todas as notas e converte num enciclopedismo formal o que antes se acometera como um risco. Esse “antes” foi “Now He Sings, Now He Sobs.”
Por essa altura o veterano baterista Roy Haynes não se negava a ninguém, fosse Archie Shepp ou Gary Burton, o alfa e o ómega do jazz de então. De modo que aceitou de bom grado responsabilizar-se pela segurança rítmica do primeiro disco do jovem Chick Corea, um virtuoso – e sem vergonha de o exibir – capaz de assimilar vários idiomas em meia dúzia de compassos, desde sabores latinos (tocara com Mongo Santamaria) até um sentido melódico quase hipnótico (também passara pela formação de Herbie Mann), tudo embalado num dedilhar fervilhante. Em “Now He Sings, Now He Sobs” Corea mostra não ter escola nem filiação, por tê-las e aceitá-las todas, o que era uma vantagem em 1968, um ano após a morte de Coltrane e quando o jazz se desorientava de qualquer estrela polar.
 
 
 

Return to Forever
1972 (2015)
ECM - 811978-2
 
Chick Corea (piano, Fender Rhodes), Stanley Clarke (contrabaixo acústico, baixo eléctrico), Joe Farrell (saxofone soprano saxophone, flauta), Flora Purim (voz), Airto Moreira (bateria, percussão).
 
 
Como sucedeu com toda a gente, passar por Miles Davis mudou a mente de Chick Corea. Dito de maneira menos indulgente: ninguém que tenha participado na fase voltaica de Miles, ficou imune à electrificação.
Na década de 70 a droga começou a ser perniciosa, as calças à boca-de-sino tinham que tapar os sapatos e medrou um tremendo ódio capilar às orelhas, constantemente invisíveis debaixo de madeixas. Como poderia a música da época ter ficado incólume a isto? O jazz de fusão fiou-se como a melhor chance de uma Grande Unificação Geral, aproximando-se do rock – que então também se enobrecia ao “sinfonizar-se” – como um pai magnânimo que reconhece as virtudes do filho desavindo. Este futuro auspicioso incluía a fuga ao ghetto financeiro em que se ia apertando.
Inspirado pelo big bang que foi a experiência de “Bitches Brew”, à semelhança de Wayne Shorter com os Weather Report e John MCLaughlin com a Mahavishnu Orchestra, também Chick Corea fundou o seu grupo de fusão, secundado pelo baixista Stanley Clarke – o “Return to Forever”. O sucesso foi instantâneo e muito dele se deveu ao primor do arranjo melódico do tema que deu nome à obra e se consagrou com um modelo do género. O crescendo a partir de um mínimo de acordes, como um despertar sonoro, os vocalizos planantes de Flora Purim, a alacridade dos solos de flauta de Joe Farrell e de órgão de Corea, a textura das linhas de baixo de Stanley Clark e da percussão de Airto Moreira que quase à maneira do free jazz, sobrelevam a mera fixação rítmica, todo este estado de graça prenda “Return to Forever” como uma das composições mais oníricas de um tempo muito dado a miragens.
Todavia a franqueza e a luminosidade do caminho que se abria não teve sequela de igual valor; os limites do jazz de fusão provaram-se muito curtos. Da sua memória “Return to Forever” ficará entre os frutos mais estimáveis.
 
 
José Navarro de Andrade
 
 

 

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