Não são propriamente memórias perdidas pois estão à venda e
encontram-se disponíveis na casa editora, a MinervaCoimbra. Mas nem por isso
devemos deixá-las de parte, tal a raridade no nosso país de memórias – e memórias
autênticas, escritas por mulheres.
Maria Manuela Ribeiro da Fonseca Esteves
de Mendonça nasceu em Lisboa, onde obteve duas licenciaturas: em Medicina e em
Ciências Pedagógicas. Fez carreira clínica distinta, nas áreas da psiquiatria e
da pedopsiquiatria, ensinou na capital e em Coimbra. Antes deste livro, tinha
publicado em 2009 Nascer nos Anos Trinta –
Memórias e Imagens de um Quotidiano. Não lemos, mas temos pena.
Com o presente livro, Manuela Mendonça
traz-nos os seus tempos de aluna do Liceu D. Filipa de Lencastre, na altura
exclusiva e rigorosamente feminino. A rapaziada do Camões, que ficava por
perto, ainda se tentava abeirar das meninas do Filipa, mas a directora, austera
e casta, chegou a ordenar que fossem proibidos de circularem nas imediações de
todo o Bairro do Arco do Cego.
Era lá que ficava – e fica – o Liceu
Filipa, construção estadonovista que a autora praticamente estreou, em estado novinho
(o liceu fora inaugurado em 1940-41 e Manuela Mendonça começou a frequentá-lo
em 1943). Menina e moça, a pequena Manuela saía de casa de seus pais, no nº 41
da Avenida Óscar Monteiro Torres, certeira e atilada, e ia diariamente a pé até
ao Liceu, onde imperava um rígido sistema multicolorido: as alunas que tinham
autorização para ir almoçar a casa (cor rosa), as que estavam dispensadas de Educação
Física (cor branca) e as mais liberais de todas, de amarelo, autorizadas a sair
da escola se acaso não houvesse o último tempo lectivo. É difícil não sermos
contagiados pelo olhar nostálgico e saudosista daqueles tempos felizes e puros,
tal como descritos na memória de Manuela Mendonça. Por vezes, a autora
excede-se um bocadinho, nomeadamente quando enaltece as virtudes da Mocidade
Portuguesa Feminina, linhas depois de reconhecer que aquela organização se
tinha inspirado no modelo da Itália fascista. Por esse motivo, o pai, com quem
não teve uma relação fácil, esteve praticamente a proibi-la de frequentar o seu
amado Liceu Filipa. Em todo o caso, a nossa autora não é tão inflamada na
defesa da Mocidade Portuguesa como o foi, no seu tempo, a colega Maria de
Lourdes Pintasilgo, que desempenhava funções de Chefe de Castelo e, como tal,
«procurava atrair as caloiras mais classificadas que poderiam ascender a Chefes
de Quina e seguir carreira», diz Manuela Mendonça, que acrescenta, cortante:
«Nunca aceitei».
Também não aceitou os arranjos
pré-matrimoniais que, desde os seus 13 anos, eram cochidados entre tias e outra
parentela. Este é dos tópicos mais interessantes do livro. Num certo sentido,
são memórias de uma menina bem comportada.
Mas, por outro lado, o livro mostra uma personalidade estruturada, com o seu
quê de independente, sendo entremeado com trechos do seu diário que revelam,
sobretudo para os padrões de hoje, uma maturidade surpreendente. Ah, e uma
qualidade de escrita que vinha de muitas e muitas leituras, nas férias que, à
época, eram verdadeiramente grandes.
Para os olhos contemporâneos, tudo pode parecer uma pasmaceira infernal,
meninas a gastarem os verões na aprendizagem de bordados ou horas intermináveis
de leituras. De boas leituras: Katherine Mansfield, Jane Austen, George Eliot
e, uns furos abaixo, os inevitáveis ALexis Carrel e Pearl Buck. Mas também
Rilke, Tolstoi, Stendhal, Tolstoi.
Com a sua geração, Manuela Mendonça fez
«amigas-irmãs» entre as colegas de liceu. Isto, claro, sem prejuízo das
habituais tricas de adolescentes, e de uma ou outra alfinetada aqui e acolá.
Não era a toa que se passavam tardes sobre tardes no corte e na costura… Mas, e
voltamos ao ponto, o livro é interessantíssimo para entrar, até certo ponto, na
visão do mundo de uma rapariga burguesa da Lisboa do tempo da 2ª Guerra, que
foi mundial. Palavras como menstruação, gravidez e parto não eram utilizadas,
optando-se por «já ser senhora», «estar à espera de bebé», «ter encomendado»,
«dar à luz».
As «amigas-irmãs» decerto trocavam
confidências sobre tudo isto, mas o livro, discretíssimo, não se alonga em
pormenores escabrosos, impróprios de uma menina-família que, pressente-se nas
entrelinhas, sempre manteve alguma altivez social e intelectual. Louva a
«ordem» mantida no Liceu Filipa, tamanha disciplina que lhe chamavam «Convento
das Filipinas», em contraste com o Maria Amália, tido por mais liberal e
aberto. No Filipa, cada aluna era etiquetada, tendo um emblema na lapela que
indicava o respectivo ano. Depois, as férias. E os brinquedos de infância, que
a autora diz ter oferecido ao Museu do Brinquedo de Seia. Vi-os há uns meses, não
sabendo a quem pertenciam. São, ou foram, de Maria Manuela Mendonça, que com
orgulho se exibe como antiga aluna do Liceu Filipa de Lencastre – e cidadã do
mundo e do tempo em que o liceu nasceu e fez escola. Festejou a vitória dos
Aliados, frequentou as lojas da Baixa elegante: a Casa Leonel, a Gardénia, a
Pompadour, os figurinos do Midões, e Madame Pavão (esta, ao Campo Pequeno). «Um
dos passeios que demos, bastante grande, foi à terra da minha criada»,
conta-nos numa carta de 1948. Uma frase que diz muito. Ou outro episódio: as
finalistas planearam ir à longínqua Madeira na viagem de tradição. Acabaram
numa excursão ruidosa e alegre às Caldas da Rainha, que o dinheiro não deu para
mais. Mas lá foram ela, cantando e rindo, passando por Alcobaça. Muitas já
terão morrido, provavelmente. As outras estarão velhinhas, por certo. Mas todas
se lembraram do seu tempo de moças castas, a adolescência casta, de quando
Manuela Mendonça escreveu: «Sentia-me emocionada e confusa perante o sexo
forte; não conseguia encarar com serenidade qualquer rapaz conhecido que comigo
falasse uns momentos; ruborizava-me, olhava desconfiada para os lados buscando auxílio
em qualquer pessoa que me pudesse surgir, e acabava por me evadir na primeira
ocasião».
Aluna distinta, Manuela entrou na
Universidade – e sem a oposição do seu pai. Formou-se uma vez, depois outra,
deu aulas e consultas, escreveu livros. Como este, que aqui fica apresentado,
com timidez e candura.
António Araújo
Caro Prof. António Araújo:
ResponderEliminarEm relação a este pormenor no início do texto, «Era lá que ficava – e fica – o Liceu Filipa, construção estadonovista que a autora praticamente estreou, em estado novinho (o liceu fora inaugurado em 1940-41 e Manuela Mendonça começou a frequentá-lo em 1943)», permita-me que lhe faça uma pequena adenda.
O Liceu D. Filipa de Lencastre foi criado e começou a funcionar em 1928, no Palácio Quelhas, passando ainda, provisoriamente, por um prédio de habitação na rua de S. Bernardo, no ano lectivo de 1936/37.
A partir de 1938 mudou-se definitivamente para o actual edifício no Arco do Cego (onde funciona hoje com o nome de Escola Secundária D. Filipa de Lencastre).
Este edifício tinha sido construído para a Escola Primária Masculina e Feminina - mas com separação de sexos nas turmas - (Escolas Centrais do Bairro do Arco do Cego), com capacidade para 880 alunos.
Fora projectado pelo arquitecto Jorge Segurado, com colaboração do arquitecto António Varela, mas o elevado custo - só em 1936 foi de 1400 contos - levou ao seu abandono para aquela finalidade, o que coincidiu com a alteração de filosofia política para a escola primária, optando-se por pequenas escolas que dariam origem ao Plano de Escolas dos Centenários (ou duplo centenário), muitas ainda em funcionamento e bem reconhecidas por nós.
As dificuldades de instalações por que passava o liceu determinaram a sua passagem, que viria a ser definitiva, para o referido edifício modernista do Arco do Cego, que teve de sofrer algumas adaptações mas que nunca venceu as disfuncionalidades para a nova finalidade.
Pode conferir aqui: Figueira, Manuel Henrique, «Liceu D. Filipa de Lencastre-Lisboa», in António Nóvoa & Ana Teresa Santa-Clara [coord.], «"Liceus de Portugal": Arquivos, Histórias, Memórias», (2003). Porto: Edições ASA, pp. 424-443.
Muito obrigado!
EliminarCordialmente,
António Araújo