Filho da Pneumónica –
Narrativas da vida real, de Arthur Ligne, editado pela
Câmara Municipal de Lagoa em Novembro de 2014, não é propriamente um livro de
memórias. Ou, melhor dizendo, não é uma autobiografia. Por isso, segundo um
critério estrito, não deveria figurar nesta rubrica «Memórias Perdidas».
Acontece que o MALOMIL não é um blogue
muito regrado. E sucede que o livro de Ligne, se tiramos uma ou outra
observação mais simplista deste jornalista da «Gazeta de Lagoa»(ex., a favor da prisão perpétua), contém
histórias de vida que são muitíssimo interessantes. Como a de Fernando Ribeiro,
filho de Deolinda de Jesus Ribeiro e de pai incógnito, nascido na freguesia de
Belém em Agosto de 1913 (em boa verdade, Fernando não era filho de pai
incógnito. O progenitor, todos os sabiam, era um graduado da GNR, que Fernando
acabaria por conhecer, ainda que só na idade adulta). Sua mãe nascera em 1889,
residia no Barreiro e deu entrada no Hospital Camões, a 26 de Outubro de 1918,
depois de ter sido transportada até ao Cais das Colunas, no Terreiro do Paço,
em Lisboa. Vinha Deolinda da Outra Banda em estado terminal de gripe pneumónica, de que viria
a falecer três dias depois. Com 29 anos de idade.
De pai incógnito, órfão de mãe, a avó
pediu ajuda à Cruz Vermelha. Foi então Fernando internado no Orfanato Temporário da
Junqueira, onde deu entrada em Setembro de 1920. Um ano depois, com o
encerramento do Orfanato, foi transferido para a Casa Pia. Anos depois, ainda
jovem, meio adolescente, começou a trabalhar na Fábrica de Malas Trindade, corria o
ano de 1929. Tinha Fernando a idade de 16 anos.
Aos 17, ofereceu-se como voluntário na
Marinha de Guerra, onde assentou praça. Depois, por supostamente se ter
envolvido na Revolta da Madeira, esteve detido no Forte da Graça, em Elvas, de
1932 a 1933. Até ao final da vida, foi um oposicionista a Salazar, tendo a ventura
de assistir ao fim do Estado Novo, em Abril de 1974. Após sair da prisão, fez
mil e um cursos, especializou-se como electricista, tornou-se simpatizante ou
mesmo militante comunista, foi responsável pela electrificação das casas de
pescadores da Costa da Caparica. Uma vida vivida, em suma.
De permeio, tornou-se feirante, com
tasca de comes e bebes à Feira Popular, na altura sita ao Parque de Santa
Gertrudes, onde é hoje a Fundação Gulbenkian. Como electricista e feirante,
Fernando percorria o país de lés a lés e, numa ocasião, conheceu Maria das
Neves, rapariga modesta residente em Tomar. Aquilo que seria mais um episódio
da sua vasta carreira de pinga-amor, virou caso sério. Maria das Neves era uma
valente, curtida pela vida, que nascera, também ela, filha de pai incógnito e filha ilegítima de
sua mãe, que, por sua vez, foi exposta na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
Esta história diz-nos muito do que se
vivia – e sofria – em tempos do nosso tempo. O que a distingue de uma
novela pungente ou de um romance neo-realista é o facto de ter sido autêntica,
realmente passada com gente. Maria das Neves tornou-se criada de servir e, numa
ocasião, foi à festa na Várzea Grande. Foi aí que se enamorou do feirante-Fernando,
com quem passou a coabitar, e de quem teve quatro filhos, sucessivamente nascidos, ao ritmo da biologia. Às tantas, seguindo o script clássico, Fernando abandonou-a,
trocou-a por outra mulher. Por bandas de 1944 ou 1945, andava a Europa mergulhada
numa guerra tremenda, Maria das Neves não foi de modas. Deslocou-se a Lisboa e fez uma
escandaleira. Ali, na Feira Popular, em pleno restaurante (no «Marco do Correio» ou «Fernando das
Caldeiradas»), frente a Fernando e à nova companheira. Esta última apaziguou
Maria das Neves, ultrajada no seu pudor e, pior do que isso, incapaz de
carregar em exclusivo o fardo de criar sozinha quatro filhos em pleno
crescimento. Chegou a propor a Fernando que lhe ficasse com metade da prole,
que ela, abandonada, não podia educar por inteiro. Não vamos entrar em detalhes.
O certo é que Ferrando assentou, acabou por casar com a nova companheira, Maria
de Jesus. Isto muitos anos passados, em Outubro de 1976.
A descendência de
Maria das Neves e de Fernando fora dividida trinta anos antes: dois ficaram com
a mãe, dois para o pai. Os filhos de Maria e Fernando tiveram filhos e netos e
bisnetos. Fernando teve ainda um filho com Maria de Jesus e, em 1971, uma menina,
fruto de uma ligação extra-conjugal. A
vida daria de Jesus, passada com o feirante-electricista, fora madrasta, a ponto de terem sido classificados
como indigentes por uma junta de freguesia, que o narrador não especifica. Antes disso, viveram em condições
apertadas, amargas: primeiro, no Seixal, para onde fugiu Fernando às perseguições
políticas do regime autoritário; depois, num velho prédio nas Escadinhas da Mãe d’Água, na Praça da
Alegria; a seguir, num rés-do-chão acanhado nas imediações da Rua de São José. Até ao
fim da vida, diz Arthur de Ligne, Fernando Ribeiro manteve uma espécie de «paixão
política hereditária» (sic) por Álvaro Barreirrinhas Cunhal.
Maria de Jesus, por seu turno, morreria em Maio de 2007.
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