quarta-feira, 9 de maio de 2018

Notas sobre A Grande Onda - 58 (1ª parte)





58.
 
Como seria de esperar, a imagem de A Grande Onda tem sido utilizada, em versões mais realistas ou mais estilizadas, como motivo de tatuagens em todo o mundo, especialmente no Japão e nos Estados Unidos da América, apresentando-se aqui alguns exemplos:
 
 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 
 
          Mais interessante do que isso é saber que a moderna tatuagem japonesa, tal como a conhecemos desde meados e finais do século XIX, muito ficou a dever aos artistas do «mundo flutuante» (ukiyo-e) e, entre eles, a Katsushika Hokusai.



Na verdade, e sem pretender apresentar nesta Nota uma história desenvolvida da tatuagem no Japão, cujas origens remontam ao Paleolítico, interessa ter presente que esse país tem uma tradição muito antiga na «arte do corpo», que em meados do século XX – e especialmente por acção do marinheiro Norman Keith Collins (1911-1973), mais conhecido por Sailor Jerry – se projectou em larga escala no Ocidente (sobre a história das tatuagens japonesas, cf. Brian Ashcraft e Hori Benny, Japanese Tatoos. History, Culture, Design, Tuttle Publishing, North Clarendon, 2016; Sando Fellman e D. M. Thomas, The Japanese Tatoo, Abbeville Press, Nova Iorque, 1987;  Takahiro Tikamura e Katie M. Kitamura, Bushido: Legacies of the Japanese Tatoo, Atglen, Schiffer Publishing Ltd., 2001; Yori Moriarty, Irezumi Itai. Tatuaje tradicional japonês, Gijón, Satori Ediciones, 2015, obra que se seguirá de perto nesta Nota).

 
Kamura Settai (1887-1940), Irezumi no oden

 
 
A prática do irezumi (= inserir tinta no corpo) começou por ser uma forma de punição, aplicada a criminosos em várias partes do corpo, inclusive na cara, que através de alguns sinais, como o inu (= cão, 犬) ou o aku (= mau, inferior, 悪) ficavam assim marcados – e estigmatizados – para toda a vida, o mesmo sucedendo aos membros de castas ou classes inferiores. A prática foi abolida em 1720 por Yoshimune Tokugawa e, desde então, o termo irezumi, dada a sua conotação pejorativa, foi substituído: os tatuadores passaram a usar a expressão horishi, do verbo horu («talhar ou gravar em madeira»), e horimono («objecto talhado»), precisamente os mesmos que se utilizavam na arte das gravuras do «mundo flutuante» ou ukiyo-e.      
 
Como se refere aqui, existem as mais diversas teorias sobre que classes ou grupos utilizavam as tatuagens nos alvores e meados do século XIX, dizendo-se que as mesmas eram prática corrente entre as classes trabalhadoras ou, pelo contrário, que eram usadas sobretudo por pessoas que, por imposição legal, não podiam ostentar a riqueza que tinham, optando por fazê-lo através de ornamentos corporais elaborados e opulentos. Diz-se, por outro lado, que eram prática corrente nos que trabalhavam nas casas de jogo e nas prostitutas ou «mulheres de prazer», que marcavam no corpo os nomes ou sinais identificadores dos seus amantes favoritos ou dos seus melhores ou mais favoritos clientes. Afirma-se ainda que muitos criminosos recorriam a tatuagens artísticas para camuflar as tatuagens que lhes tinham sido impostas como castigo ou que as tatuagens foram – ou começaram a ser – um traço identitário de pertença a um grupo criminoso. Ao que parece, também eram usadas frequentemente por bombeiros (hikeshi ou tobi), uma corporação numerosa e com um estatuto especial, dado o número e a gravidade dos incêndios que deflagravam nas principais cidades, especialmente Edo/Tóquio, com as suas construções em madeira. O uso de tatuagens pelo bombeiros correspondia à heroicização de que eram alvo por parte das populações mas também a um apelo à protecção divina, não sendo por acaso que os motivos usados eram sobretudo dragões e águas, símbolos da luta contra o fogo (pensava-se, inclusivamente, que através da dor da tatuagem, uma oferenda ao dragão, o único animal resistente ao fogo, este conceder-lhes-ia protecção e segurança nos incêndios).  
 
Sustenta-se, por outro lado, que a vulgarização da prática da tatuagem – e a perda das suas conotações estigmatizantes – se deu entre os pares de namorados de Quioto e de Osaca, que começaram a tatuar no corpo dokens, ou «moedas de amor», em sinal de fidelidade e de amor, tendência conhecida como irebokuro que alastrou às classes altas de Edo e aos seus bairros de prostituição, em que as prostitutas legalizadas (joro) e as gueixas marcavam no corpo com o nome do seu amado, seguido do kanji inochi (= vida). Através destas «tatuagens-oferenda» (kishobori), as prostituas almejavam ser resgatadas dos bordéis pelos seus clientes predilectos ou mais abastados, o que nem sempre conseguiam, obrigando-os os novos clientes a retirarem as tatuagens dos seus corpos através de um doloroso processo de combustão. Além de prostitutas famosas, um jovem monge, Sensaburo, tatuou no corpo o nome do seu superior, Keisu, seguido dos kanjis de amor e de afecto, um claro indício da relação homossexual que existia entre ambos. Noutros casos, as tatuagens tinham um carácter religioso, com marcas como orações ou kanjis que representavam divindades.  
 
A popularização das tatuagens também se baseou – e muito – no teatro kabuki, que alcançou enorme notoriedade a partir do início do século XIX, sendo frequentes as peças (como destaque para A Princesa Escarlate de Edo/Sakura hime azuma bunsho, de 1817) em que as personagens apareciam em palco tatuadas. A maquilhagem dos actores criou também um tipo de tatuagem específico, o kabuki kumadori chirashi.
 
A partir da década de 1820 e até sensivelmente 1870, acompanhando uma fase de prosperidade económica, as tatuagens conheceram uma enorme expansão no Japão, passando a ser utilizadas sem conotações pejorativas ou estigmatizantes, o mesmo sucedendo com o termo irezumi, de novo retomado. Tal não significa que as tatuagens fossem autorizadas; pelo contrário, a sua proibição, reiterada em 1804, só seria formalmente levantada em 1946 (ou 1948, segundo outras fontes), após um oficial de McArthur ter visitado o estúdio do célebre tatuador Koruma (ou «Horyoshi II», filho de outro famoso tatuador de Yokohama, Horiyoshi I) e proposto que aquela proscrição fosse abolida, mantendo-se apenas para os menores de 18 anos. A partir daí a arte japonesa da tatuagem conquistou o Ocidente, muito por acção do já citado Norman Morris, ou Sailor Jerry, que em 1960 abriu o seu primeiro estúdio na Chinatown de Honolulu, do seu pupilo Don Ed Harris e do escritor norte-americano Donald Richie (1924-2013), que ao visitar pela primeira vez o Japão devastado pela guerra, em 1946, descobriu que, devido à penúria reinante, muitos japoneses andavam com poucas ou quase nenhumas roupas, deixando entrever os seus corpos tatuados, realidade que Harris relatou no seu primeiro artigo sobre o país, saído na revista Stars and Stripes, tendo posteriormente, com o auxílio do fotógrafo japonês Ichiro Morita, retratado centenas de tatuagens. Donald Richie, autor de dezenas de livros sobre o Japão, e Ichiro Morita publicaram em 1966 o livro Irezumi, a primeira obra em língua inglesa dedicada à arte nipónica da tatuagem.  
 
Comprovando a popularização da tatuagem e a ausência de qualquer carga negativa a ela associada, muitas fotografias de finais do século XIX e inícios do século XX mostram japoneses de ambos os sexos tatuados, sem quaisquer constrangimentos. Ainda que todas as imagens não sejam da sua autoria, destaca-se, neste particular, a obra de dois fotógrafos, o japonês Kusakabe Kimbei (1841-1934) e Adolfo Farsari (1841-1898), ex-militar italiano que se alistou como voluntário nas tropas nortistas na Guerra Civil Americana, tendo abandonado a família em 1873, rumo ao Japão, onde abriu um célebre e muito popular estúdio de fotografia em Yokohama. A par deles, o ítalo-britânico Felice (ou Felix) Beato (1832-1909), um dos primeiros fotógrafos de guerra, que cobriu o conflito da Crimeia, a Rebelião na Índia de 1857 e a Segunda Guerra do Ópio (1856-1860), na China, tendo-se estabelecido em Yokohama, no Japão, em 1863, que deixou para cobrir a campanha do general Charles Gordon no Sudão, indo mais tarde para Burma; pensava-se que tinha morrido em Rangum, em 1905 ou 1906, mas a sua certidão de óbito, descoberta apenas em 2009, atesta que faleceu em Florença, em 1909.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 






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