domingo, 13 de maio de 2018

Notas sobre A Grande Onda - 58 (2ª parte)

 
 



 

         58.
 
         Como se referiu na 1ª Parte desta Nota, existe uma ligação profunda entre a arte japonesa da tatuagem (irezumi) e as xilogravuras do «mundo flutuante» (ukiyo-e).
 
         De acordo com Yori Moriarty (ob. cit., p. 16), a grande difusão do irezumi deu-se após a publicação da célebre Suikoden, adaptação japonesa de uma popular novela chinesa do século XVI, a qual foi ilustrada por Katsushika Hokusai e, depois, por Utawa Koniyoshi.
 
A ambos coube fixar, de uma forma quase canónica, as figuras e a aparência das principais personagens dessa novela, tendo Hokusai desenhado quatro dos 108 heróis da saga, os «108 heróis de Liangshan»: Shishin, tatuado com nove dragões; Rochsin, tatuado com flores de cerejeira (sakuras); Chojun, tatuado com flores de cerejeira e ramos de pinheiro; e Ensei, tatuado com peónias. Seria Koniyoshi, no entanto, quem acabou por ilustrar as 108 personagens, numa publicação de tremendo sucesso.
 
Katsushika Hokusai, série 108 Heróis de Soikoden, 1829

 
Utagawa Kuniyoshi, Kyumonryu Shishin, 1827-1830
Museu Britânico, 2008,3037.10039

 
 
Utagawa Kuniyoshi, Tammeijiri Genshogo, 1827-1830
Brooklyn Museum
 
 
 
 
         Esta era, todavia, uma versão popular de difusão das tatuagens, praticamente circunscrita às classes baixas ou a grupos marginais. Entre eles, os bandos de jovens das periferias das grandes cidades que se figuravam como «cavaleiros andantes» que, além do vandalismo, afirmavam praticar a justiça, saqueando os ricos para dar aos pobres. A par deste grupo, designado otokodate, emergiram na época os bandos kumi ou gumi que faziam incursões pelo pequeno comércio urbano, saqueando e consumindo os produtos à venda. Muitos dos membros destes grupos tatuavam-se com as imagens que Kuniyoshi fizeram para ilustrar a novela Suikoden, o mesmo sucedendo com os carregadores e transportadores de palanquins, que andavam em tronco nu, com os pescadores (que tatuavam peixes nos antebraços), com as gueixas ou com os jogadores e alcoólicos, que inscreviam no seu corpo imagens de cartas de jogar ou de garrafas ou copos de saqué.
 
         Além destes grupos marginais, o irezumi teve uma enorme divulgação no mundo do teatro kabuki e, como é sabido, entre os membros das associações criminosas, com destaque para a yakuza.
 
         Em finais do século XIX – ou seja, numa fase muito posterior à Grande Onda de Hokusai –, as tatuagens japonesas cativaram de uma forma extraordinária a realeza e a aristocracia europeias. Tendo aportado a Yokohama em 1882, o duque de York (mais tarde, Jorge V) conheceu o famoso tatuador Horichiyo e, juntamente com outros membros da tripulação do navio H.M.S. Baccante, incluindo o seu irmão, o duque de Clarence, fez-se tatuar pelo mestre japonês. O futuro monarca fez gravar no seu antebraço um dragão de grandes proporções e, mais tarde, já em Inglaterra, tatuou largas extensões do seu corpo pela mão dos artistas Tom Riley e Sutherland Macdonalds.
 
A tatuagem do duque de York
 
 

 
A tatuagem de Nicolau II


 
 
 
 A instância dos duques de York e de Clarence, Horichiyo viajou até à Europa e, depois, para a América, onde permaneceu na região da Nova Inglaterra. Na Europa, segundo se diz aqui, terá tatuado Nicolau II, da Rússia, Frederico VIII, da Dinamarca, o duque de Edimburgo, a rainha Olga da Grécia (cf. Beauty and Violence, Horichiyo Ambassador of the Japanese Tatoo, State of Grace Inc., 2008).
        


  
       A técnica tradicional de aplicação do irezumi, intitulada tebori, era feita com um estilete de bambu (hari), usando-se tinta preta e cinzenta (sumi), bem como azul índigo, amarelo, verde e vermelho, sendo este último aplicado apenas em pequenas parcelas da pele, dado ser composto por sulfato de ferro, uma substância tóxica. Note-se que os pigmentos usados na tatuagem tebori eram exactamente os mesmos que os gravadores utilizavam na elaboração das gravuras do ukiyo-e.
 
         A partir de finais do século XIX, mesmo no Japão começou a preferir-se, por ser mais precisa do que as linhas feitas pelo método tebori, a tatuagem por processos mecânicos, graças à caneta ou máquina de tatuar que, segundo se diz, terá sido inventada por Thomas Edison (outras versões atribuem a paternidade da máquina de tatuar a Samuel O’Reilly, em 1891; na verdade, como se explica aqui, a versão de O’Reilly, de 1891, foi um melhoramento da máquina criada por Edison em 1876).
 
 


 


 
         Para o ponto que interessa no contexto da presente Nota, importa salientar a popularidade daquilo que, no mundo da tatuagem (e não só), é conhecido como fingerwaves, um motivo muito semelhante à Grande Onda de Kanagawa da xilogravura de Hokusai.
 

Utagawa Kunisada, Asahina Fuji Hyoe, 1854
Metropolitan Museum of Art


Toyohara Kuichika, tríptico de actores de kabuki, tatuados com os seguintes motivos:
dragão
tigre
ácer (momiji)
falcão
fingerwaves
bambu
nuvens
peónias


 

Detalhe das fingerwaves


 
         De acordo com Yori Moriarty (ob. cit., pp. 39ss), às águas do mar e as cascatas, muito presentes na obra de Hokusai, são dois dos principais motivos das tatuagens: «Na arte e na tatuagem japonesa, a água é representada com base em linhas estilizadas, não como uma massa colorida à maneira ocidental. Para representar o mar e as ondas usa-se uma combinação de linhas que reproduzem o movimento da água e as ondas e os característicos salpicos das ondas, comumente conhecidos no âmbito da tatuagem como fingerwaves (…). A importância da água como ele básico da tatuagem japonesa é enorme. Devido àquelas características estéticas, o movimento da água e o dinamismo das ondas adaptam-se perfeitamente às formas do corpo. (…) Actualmente, podem distinguir-se três estilos: o japonês, o europeu e o americano. No japonês, as ondas são curtas, rígidas, terminando em pontas finas, e tomam a sua forma directamente das nuvens do céu; no europeu, são maiores e arredondadas, mais expressivas; no americano são ainda mais arredondadas, com muito movimento e expressão, com as pontas curvas».
 
         Os animais em que a presença das águas é mais evocada, nomeadamente como pano de fundo, são as carpas (koi) e os dragões, apresentando Moriarty como um dos exemplos da influência do elemento aquático nas tatuagens japonesas a xilogravura A Grande Onda, de Katsushika Hokusai.        
  
 
 

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