quarta-feira, 16 de maio de 2018

Notas sobre A Grande Onda - 59






 
         59.
 
         A xilogravura A Grande Onda, de Katsushika Hokusai – ou, se quisermos, o estatuto de «ícone global» que adquiriu no nosso tempo – suscita algumas questões em torno daquilo que Walter Benjamin apelidou «a obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica» (in Walter Benjamin, Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, trad. portuguesa, Lisboa, Relógio D’Água Editores, 2012, pp. 59ss).
 
         Benjamin começa por assinalar que «a obra de arte sempre foi reprodutível», referindo como marcos desse processo a xilogravura, a gravura em cobrem a água-forte e, a partir do início do século XIX, a litografia. Será, no entanto, com a fotografia que, segundo Walter Benjamin, se verifica a grande viragem neste domínio: «Pela primeira vez, com a fotografia, a mão liberta-se das mais importantes obrigações artísticas no processo de reprodução de imagens, as quais, a partir de então, passam a caber unicamente ao olho que espreita por uma objectiva».
 
         Num sentido algo diverso, André Malraux salientou igualmente o papel da fotografia no tratamento – e na difusão das obras de arte – quando escreveu: «A fotografia, que foi a princípio um modesto meio de difusão destinado a dar a conhecer as obras-primas incontestadas àqueles que não podiam adquirir uma gravura de reprodução, parecia dever confirmar os valores adquiridos. Mas reproduz-se um número cada vez maior de obras a um número sempre maior de exemplares, e a natureza dos processos de reprodução actua sobre a escolha das obras reproduzidas. A difusão destas é alimentada por uma propensão cada vez mais subtil e cada vez mais extensa. Muitas vezes, ela substitui a obra-prima pela obra significativa e o prazer de admirar pelo de conhecer; gravava-se Miguel Ângelo, fotografavam-se os petits maîtres, a pintura ingénua e as artes desconhecidas – fotografava-se tudo o que se podia ordenar segundo um estilo» (cf. André Malraux, As Vozes do Silêncio, vol. I – O Museu Imaginário. As Metamorfoses de Apolo, trad. portuguesa, Lisboa, Livros do Brasil, s.d., p. 15).
 
         A xilogravura de Hokusai – e, de resto, outras obras do mesmo teor, quer no Oriente, quer a Ocidente – vem, porventura, questionar a tese de Benjamin, nos termos da qual a reprodutibilidade técnica conduz a uma perda de autenticidade e de «aura» da obra da arte («o domínio global da autenticidade subtrai-se à reprodutibilidade técnica» ou «o que murcha na era da reprodutibilidade da obra de arte é a sua aura», são algumas das observações mais conhecidas de Benjamin).
 
Na verdade, A Grande Onda foi concebida desde o início com vista a ser reproduzida em larga escala, num processo que implica a destruição do original, da obra-prima.
 
E, ao invés do que se poderia supor, foi – e é – essa reprodutibilidade em massa que conferiu à obra de Hokusai o seu carácter aurático (se admitirmos, naturalmente, que A Grande Onda se reveste desse carácter).
 
A reprodutibilidade em larga escala, muito potenciada pela Internet, e a reconhecibilidade imediata de A Grande Onda são responsáveis pelo seu estatuto de «ícone global», que se desprende do seu formato ou suporte originário para ser mimetizado e desdobrado em múltiplos suportes e em infindas variações, de que se podem apresentar inúmeros exemplos:
 
(imagem enviada por Luís Caetano)
 
(imagem enviada por Eduardo Cintra Torres)
 
 
 
(imagem enviada por David Teles Pereira; obra de Keita Sagaki, aqui)
 
 
Por muito que possam parecer uma cedência ao kitsch e à vulgaridade, as recriações e os pastiches de A Grande Onda converteram-se num fenómeno cuja percepção é essencial para compreender, inclusivamente, o sentido originário da obra de Hokusai.  
 
 
 
 
 

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