quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Carta de Bruxelas - 22.




 

                                                                                            Qualquer coisa de egípcio

 

Em 1977, o filósofo Hans-Georg Gadamer, publicou a sua autobiografia intitulada Os anos de aprendizagem filosófica [Philosophische Lehrjahre, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann]. Como bom hermeneuta, passa em revista a sua vida e carreira com base na trama do diálogo. Entre os nomes próprios dos seus interlocutores de referência, o último é o de Karl Löwith, a quem o ligou uma amizade de mais de 50 anos. Löwith foi inclusive padrinho da sua filha Jutta. Apesar de isso, para caracterizar Löwith, Gadamer invoca nada mais nada menos do que a distância. Linhas depois, percebe-se o que queria dizer com essa palavra. Nele farejava-se sempre, conta Gadamer, qualquer coisa sem tempo, qualquer coisa de egípcio.

À primeira vista, a política invoca o oposto. Em vez da ausência de tempo, a correria imposta pelos acontecimentos, pelos humores caprichosos das vontades, pela irrupção da fortuna nos assuntos humanos, cuja roda esmaga previsões, frustra expectativas e desactualiza os pressupostos mais entranhados. Daí ser natural que a análise política tenha os seus especialistas da canelada, peritos na rasteira, e mais recentemente, no comentário televisivo, decifradores do significado oculto da coçadela na orelha ou das revelações esotéricas dos movimentos das sobrancelhas. E que tenha também os seus cientistas políticos, tantas vezes ansiosos por passarem para aquele nível primário. Crer que o torvelinho da vida não se compadece com a fixidez do conceito não esclarece, ofusca.

É, por isso, um consolo e uma alegria a publicação de um livro que pensa e pensa os conceitos fundamentais da filosofia política moderna. «Soberania popular – estudos sobre a ideia de um poder absoluto e intemporal» (Edições Húmus, 2024), de Diogo Pires Aurélio, recomenda-se por isso. Para lá do calor dos antagonismos, da febre da vitória ou da esperteza do curto prazo, a análise do conceito de soberania e das suas aporias mostra bem o que ainda hoje (espíritos subtis talvez dissessem «sobretudo hoje») faz o nosso mundo político. Com a distância necessária para uma visão límpida, perpassa nas suas páginas o abençoado vento frio do conceito – há nele qualquer coisa de egípcio. 


                                                                    João Tiago Proença

´


Sem comentários:

Enviar um comentário