terça-feira, 27 de agosto de 2024

Carta de Bruxelas - 23.




                                                                        O talentoso capital simbólico



O proselitismo da seita Bourdieu foi de tal forma eficaz que o conceito entrou na koine universitária. À trouvaille conceptual nada faltava para cair no goto de intelectuais de esquerda bem integrados. Não tinha nem os pés mascarrados de carvão nem as mãos sujas de óleo do velho proletariado da velha luta de classes – tudo isso fica para os filmes neo-realistas, que o tempo se encarregou de integrar, em grande parte, no património do kitsch de esquerda.  Daquela luta conservava o termo capital como conceito polémico, com os arrebiques modernos do simbólico. Trata-se, bem entendido, da última versão de um reducionismo velho e relho. A expressão retoma o que a sociologia tradicional designava por necessidades de prestígio (Raymond Aron, por exemplo, mas não por acaso), o que, por sua vez, não passa da declinação sociológica do conceito de sociabilidade insociável cunhado por Kant. Na sociabilidade insociável sublinhava-se a impossibilidade de pensar uma sociedade una, sem divisões, nem a montante, nem a jusante. Mostrava também a unilateralização abstracta inerente tanto ao optimismo antropológico como ao seu gémeo mau, o pessimismo antropológico. Por outras palavras, a natureza humana ficava definida como a coexistência permanente de duas condições; uma não sucede à outra na história: nem progressismo, nem decadência.

Fazendo jus às suas origens, o capital simbólico inscreve-se no optimismo antropológico. O capital como categoria económica reificadora desfigura a sociedade como ela deveria ser. Todas as distinções simbólicas constituem uma distorção da verdadeira natureza das coisas. Merecem, pois, denúncia; por exemplo, por intelectuais que, dos seus lugares de prestígio, asseguram às massas que não há prestígio; bem providos de capital simbólico nos jornais e nas televisões provam a ilegitimidade desse capital; de méritos reconhecidos, e que fazem reconhecer nos títulos académicos, decretam a ilusão do mérito. Talvez se imaginem a si mesmos como um igual aos outros. Todo o intrujão precisa dos seus intrujados. Nos casos agudos de capital-simbolicidade, a questão é saber quem é quem.         

 

                                                                João Tiago Proença


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