O talentoso capital simbólico
O proselitismo da seita Bourdieu foi de tal forma eficaz
que o conceito entrou na koine universitária. À trouvaille conceptual
nada faltava para cair no goto de intelectuais de esquerda bem integrados. Não
tinha nem os pés mascarrados de carvão nem as mãos sujas de óleo do velho
proletariado da velha luta de classes – tudo isso fica para os filmes
neo-realistas, que o tempo se encarregou de integrar, em grande parte, no
património do kitsch de esquerda. Daquela luta conservava o termo capital
como conceito polémico, com os arrebiques modernos do simbólico.
Trata-se, bem entendido, da última versão de um reducionismo velho e relho. A
expressão retoma o que a sociologia tradicional designava por necessidades de
prestígio (Raymond Aron, por exemplo, mas não por acaso), o que, por sua vez, não
passa da declinação sociológica do conceito de sociabilidade insociável
cunhado por Kant. Na sociabilidade insociável sublinhava-se a impossibilidade
de pensar uma sociedade una, sem divisões, nem a montante, nem a jusante.
Mostrava também a unilateralização abstracta inerente tanto ao optimismo
antropológico como ao seu gémeo mau, o pessimismo antropológico. Por outras
palavras, a natureza humana ficava definida como a coexistência permanente de
duas condições; uma não sucede à outra na história: nem progressismo, nem
decadência.
Fazendo jus às suas origens, o capital simbólico
inscreve-se no optimismo antropológico. O capital como categoria económica
reificadora desfigura a sociedade como ela deveria ser. Todas as distinções
simbólicas constituem uma distorção da verdadeira natureza das coisas. Merecem,
pois, denúncia; por exemplo, por intelectuais que, dos seus lugares de
prestígio, asseguram às massas que não há prestígio; bem providos de capital
simbólico nos jornais e nas televisões provam a ilegitimidade desse capital; de
méritos reconhecidos, e que fazem reconhecer nos títulos académicos, decretam a
ilusão do mérito. Talvez se imaginem a si mesmos como um igual aos outros.
Todo o intrujão precisa dos seus intrujados. Nos casos agudos de capital-simbolicidade,
a questão é saber quem é quem.
João
Tiago Proença
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