Daquela
década de 1960 guardo três títulos literários de leitura obrigatória: Barranco
de Cegos, de Alves Redol, O Delfim, de José Cardoso Pires, e A
Torre de Barbela, de Ruben A. É desta obra-prima absoluta que vos quero
falar.
Não
é uma obra de literatura fantástica, nem vernacular e muito menos humorística.
São recados sobre a história de Portugal, a Torre da Barbela é um ponto de
partida e uma advertência para o ponto de chegada, a Torre estava ligada aos
primórdios da nacionalidade, era agora uma mera atração turística, o solar
conhecera a decadência e depois o ocaso. E daí o arranque da obra, o guia local
clama pletórico a quem o acompanha numa viagem de muitos degraus até lá acima:
“Aqui
estamos em frente da Torre, meus senhores, peço que se descubram e ao mesmo
tempo um minuto de silêncio pela alminha dos Senhores que lá estão.
Esta
Torre já não se sabe de quantos séculos podemos datá-la, mas certo é que Dom
Raymundo Barbela – crê-se que tenha sido o primeiro da família da Torre – saiu
destas bandas para ajudar com os seus homens nas cargas de Dom Afonso
Henriques, seu primeiro do colateral. As pedras são todas da prumitiba, mesmo
lá perto da torreta podemos ainda ler as inscrições latinas que rezam a
sepultura de Dom Martim, morto de adigestão quando de uma lampreiada para
festejar as vistorias do primo. Tem a Torre trinta e dois metros de altura, e é
a máor da península e os degraus contam-se em oitenta e nove, com patamares de
descanso. A vista lá em cima é grandiosa.”
Nunca
se tinha ido na literatura portuguesa tão longe a falar de um Portugal feérico,
mitológico, façanhudo. Temos, pois, aqui um guia que apresenta aos visitantes
as memórias de um Portugal inventado, e momentos há em que se pode ter a ilusão
de se estar perante um romance do fantástico, com incursões pelo sobrenatural;
é através de uma leitura cuidada que se vai descodificando que este romance
escrito em plena década de 1960 é uma xácara habilidosa para caricaturar um
ideário de nacionalismo bacoco. Ruben A. Irá tratar com pinças esta visita ao
alto da Torre, “outrora de menagem, estendia-se um país inteiro, seiva virgem
de uma nação. Toda a História se abria com a paisagem”. De forma subtil, pela
obra perpassa o Portugal do Quinto Império, das bravuras mil, das
extraordinárias e desvairadas viagens e presenças em todos os continentes de
gente desta nação mirífica e imortal. Ruben A. arriscou muito, a paródia de que
os Barbelas não morrem e estão cientes do seu peso de uma nação de séculos é um
tanto uma escrita no fio da lâmina, o escritor vai-nos apresentar que todos os
que vivem na Torre levam às centenas de anos uma boa convivência, adormece o
dia e eles andam por ali a revoltear, tudo na margem esquerda do rio Lima, a
Ribeira Lima, folgam após o horário da visita conduzida por aquele guia de
discurso estrondoso: os antigos Barbelas, vindos de oito séculos diferentes
entram em cena, viajam por aqui e além, é uma azáfama de ardores e amores,
coscuvilhices e êxtases, um arrebol naquele espaço minhoto, há quem vai à
Moutosa, à vila de Serzedelo, mesmo a Viana do Castelo, à Serra de Arga, e é
muito estimado o Jardim dos Buxos e a Fontinha. Sim, toda esta genealogia dos
Barbelas tem muitíssimo para contar:
“Quando a linha do horizonte baixava a
intensidade e os fumos azulados batiam a favor do vento e do andar das coisas,
naquela dimensão abrupta que testemunhava o acender das constelações, os
Barbelas realizavam-se vindos do sonho e da fantasia para os reais domínios da
Torre. De noite, ressuscitavam e, de companhia, traziam os amores e os ódios de
outras eras e de outras sensibilidades, os dramas pessoais e a contagem de
fábulas capazes de entrarem pelas ruelas aveludadas dos vizinhos de Serzedelo e
de Vitorino das Donas. Aquele ressuscitar transfigurava a Torre. A procissão
saía pé ante pé dos túmulos de pedra, dos sarcófagos egípcios – trazidos por
Dom Payo da Barbela quando das suas incursões por terras do Prestes João – e
também da vala comum surgiam ainda os apátridas, filhos ilegítimos, frades,
freiras, e os que remotamente pertenciam à venerável espérmia da Torre.” Entraram
em cena o Menino Sancho, Dona Urraca, o Cavaleiro e o seu garrano Vilancete,
Dona Mafalda, Dona Urraca, Madeleine de Barbelat (esta terá papel crucial num
desfecho trágico que nem vos conto!), percorre-se toda a História de Portugal e
a sua épica, e chega o momento de apresentar a grandeza do lugar:
“O Solar da Barbela data precisamente do
século XVI, quando os Barbelas em protesto contra os anos de cativeiro espanhol
resolveram abandonar a capital do Reino e regressar às terras. Nessa época, os
Barbelas voltaram à vida rural e nada mais encontraram da propriedade do que a
Torre e o terreiro ao lado, com algumas habitações toscas. O oiro das
especiarias e o comando das esquadras da Índia tinham levado os braços
disponíveis nas redondezas. Quando Dom Sebastião desapareceu na sua fatal
correria de Alcácer, além de arrastar muitos Barbelas consigo, deu também um ar
desolador à pátria. Os fumos da Índia e as espumas de África trouxeram consigo
a desolação, sem que para isso fossem bastantes as façanhas dos fidalgos de
Entre Douro e Minho.”
Os Barbelas até tiveram santos, como São
Cyro, é o comandante espiritual da Torre. Há paixões escondidas, dignas de
Tristão e Isolda, como o Cavaleiro e Madeleine, há visitas dos Barbelas à
Beringela, que guarda um fumeiro muito especial, logo um petisco capitoso, as
enguias. E ao longo destas centenas de páginas vamos convivendo com os
Barbelas, há gente que até lembra Eça de Queiroz, como o ridículo Dr. Mirinho. Que
ninguém se iluda, a Torre de Ruben A. é o miraculoso país do passado, onde se
celebram centenários, onde há bruxas apaixonadas, como aquela que vive em São
Semedo, Madeleine é ligação à França, convém não esquecer os caixotes de Paris
e a literatura que nos afogueou, antes e depois da monarquia constitucional.
Espantosa arquitetura da escrita, onde não
falta o bobo italiano, passeios de burro, igrejas como não há no outro
Portugal. Veja-se só: “A única igreja no Norte de Portugal que se pode comparar
vagamente com a da Moutosa é a da Montaria, no caminho de Orbacém para São João
de Arga. Mas é melhor não comparar. O curioso distinguirá imediatamente uma
qualidade única em São Lourenço. Possui, como só a Torre de Belém, uma
proporção de medidas que equilibra o pensamento ao primeiro relance. Olhando-se
em frente fica-se à procura do desnível e do imperfeito. O talhe de pedra
granítica, com os santos padroeiros das principais freguesias da Ribeira Lima
empunhando uma escada para subirem mais facilmente ao Céu, transmite uma doçura
de penetração que envolve até o menos crente.”
Convido o leitor a acompanhar a trama
amorosa do Cavaleiro por Madeleine, tudo isto num lugar soberbo, de nome a
Fontinha, que “fora desde tempos idos o ponto de partida dos Barbelas para as
viagens de aquém e além-mar. Daquele estreito molhe de granito e terra batida,
sombreado pelas ramagens quentes de salgueiros e choupos, as bateiras saíam em
direção a Viana, donde os barcos de maior calado levavam a família aos mais
diversos destinos do mundo.”
Reparem que não se fala aqui só do
Portugal maravilhoso, há histórias de assombrar, é o caso do Grande Nevoeiro,
uma das diabruras mais imprevistas do destino. “De Barcelos ao Lindoso, dos
contrafortes do Gerês até às terras raianas do rio Minho, e descendo pela linha
da costa, montes e vales ficaram cobertos de um misto de nevoeiro e neve que
transformou o sentido do voo das aves e deu aos homens uma atitude meio
religiosa meio borguista que perdurou pelos tempos.”
Porventura por sermos descentes dos
Barbelas, seja qual for a colateral, é imperativo dever nosso conhecer de fio a
pavio toda esta saga genialmente redigida por Ruben A. Está aqui o nosso
retrato, caso não tenhamos perdido o gosto pela autocrítica: “Falavam, falavam,
conversando fiado por tempos sem conta, discutiam, assentavam decisões e
conversas, e ao fim encaminhavam-se ao natural de nada se ter passado. Enfim, o
que havia era, bem ou mal, a prata da casa. Aquela prata que se apresentava nas
grandes ocasiões de cerimónia e onde se comia a malga do caldo-verde e o naco
de broa acompanhado de uma lasca de bacalhau cru ou de uma rodela de enchido de
porco. Um destino embebido de fatalismo, uma espécie de não te rales. O resto
não os preocupava em profundidade.”
Enquanto lia esta obra-prima da literatura
portuguesa, passei os olhos por um injustamente esquecido Dicionário Crítico
de Algumas Ideias e Palavras Correntes, por António José Saraiva, era uma
edição de 1960, onde ele abordava em curto ensaio as distinções entre país
real, país legal e país fabuloso. Percebe-se porque é que a Censura foi logo
buscar o livro às livrarias:
“País fabuloso é o melhor dos mundos possíveis. Tudo nele decorre segundo o programa previsto. As pessoas são felizes, trabalham e produzem. Estão sempre agradecidas aos governantes que são sempre the right man on the right place. Nada acontece neles – a não ser os terramotos, os vulcões, os naufrágios ao largo e os excessos de temperatura, fenómenos indiferentes à vontade humana – que mereça uma reportagem especial, porque, como disse não sei já quem, os povos felizes não têm história. O país fabuloso é livre de seguir o seu encantador caminho sobre papel. Mas o país efetivo, que nada tem com isso, vai caminhando. Num caminhar obscuro, tateante, ao lusco-fusco de uma semiconsciência, porque não tem meios de dar notícia de si próprio. E é por isso que o país fabuloso, aparentemente risonho e inocente, se torna uma perigosa realidade. Ele nada cria a não ser fábulas.”
Mário Beja
Santos
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