terça-feira, 13 de agosto de 2024

Uma obra de génio, A Torre de Barbela, continuamos a viver em tal país maravilhoso.

 


Daquela década de 1960 guardo três títulos literários de leitura obrigatória: Barranco de Cegos, de Alves Redol, O Delfim, de José Cardoso Pires, e A Torre de Barbela, de Ruben A. É desta obra-prima absoluta que vos quero falar.

Não é uma obra de literatura fantástica, nem vernacular e muito menos humorística. São recados sobre a história de Portugal, a Torre da Barbela é um ponto de partida e uma advertência para o ponto de chegada, a Torre estava ligada aos primórdios da nacionalidade, era agora uma mera atração turística, o solar conhecera a decadência e depois o ocaso. E daí o arranque da obra, o guia local clama pletórico a quem o acompanha numa viagem de muitos degraus até lá acima:

“Aqui estamos em frente da Torre, meus senhores, peço que se descubram e ao mesmo tempo um minuto de silêncio pela alminha dos Senhores que lá estão.

Esta Torre já não se sabe de quantos séculos podemos datá-la, mas certo é que Dom Raymundo Barbela – crê-se que tenha sido o primeiro da família da Torre – saiu destas bandas para ajudar com os seus homens nas cargas de Dom Afonso Henriques, seu primeiro do colateral. As pedras são todas da prumitiba, mesmo lá perto da torreta podemos ainda ler as inscrições latinas que rezam a sepultura de Dom Martim, morto de adigestão quando de uma lampreiada para festejar as vistorias do primo. Tem a Torre trinta e dois metros de altura, e é a máor da península e os degraus contam-se em oitenta e nove, com patamares de descanso. A vista lá em cima é grandiosa.”

Nunca se tinha ido na literatura portuguesa tão longe a falar de um Portugal feérico, mitológico, façanhudo. Temos, pois, aqui um guia que apresenta aos visitantes as memórias de um Portugal inventado, e momentos há em que se pode ter a ilusão de se estar perante um romance do fantástico, com incursões pelo sobrenatural; é através de uma leitura cuidada que se vai descodificando que este romance escrito em plena década de 1960 é uma xácara habilidosa para caricaturar um ideário de nacionalismo bacoco. Ruben A. Irá tratar com pinças esta visita ao alto da Torre, “outrora de menagem, estendia-se um país inteiro, seiva virgem de uma nação. Toda a História se abria com a paisagem”. De forma subtil, pela obra perpassa o Portugal do Quinto Império, das bravuras mil, das extraordinárias e desvairadas viagens e presenças em todos os continentes de gente desta nação mirífica e imortal. Ruben A. arriscou muito, a paródia de que os Barbelas não morrem e estão cientes do seu peso de uma nação de séculos é um tanto uma escrita no fio da lâmina, o escritor vai-nos apresentar que todos os que vivem na Torre levam às centenas de anos uma boa convivência, adormece o dia e eles andam por ali a revoltear, tudo na margem esquerda do rio Lima, a Ribeira Lima, folgam após o horário da visita conduzida por aquele guia de discurso estrondoso: os antigos Barbelas, vindos de oito séculos diferentes entram em cena, viajam por aqui e além, é uma azáfama de ardores e amores, coscuvilhices e êxtases, um arrebol naquele espaço minhoto, há quem vai à Moutosa, à vila de Serzedelo, mesmo a Viana do Castelo, à Serra de Arga, e é muito estimado o Jardim dos Buxos e a Fontinha. Sim, toda esta genealogia dos Barbelas tem muitíssimo para contar:

“Quando a linha do horizonte baixava a intensidade e os fumos azulados batiam a favor do vento e do andar das coisas, naquela dimensão abrupta que testemunhava o acender das constelações, os Barbelas realizavam-se vindos do sonho e da fantasia para os reais domínios da Torre. De noite, ressuscitavam e, de companhia, traziam os amores e os ódios de outras eras e de outras sensibilidades, os dramas pessoais e a contagem de fábulas capazes de entrarem pelas ruelas aveludadas dos vizinhos de Serzedelo e de Vitorino das Donas. Aquele ressuscitar transfigurava a Torre. A procissão saía pé ante pé dos túmulos de pedra, dos sarcófagos egípcios – trazidos por Dom Payo da Barbela quando das suas incursões por terras do Prestes João – e também da vala comum surgiam ainda os apátridas, filhos ilegítimos, frades, freiras, e os que remotamente pertenciam à venerável espérmia da Torre.” Entraram em cena o Menino Sancho, Dona Urraca, o Cavaleiro e o seu garrano Vilancete, Dona Mafalda, Dona Urraca, Madeleine de Barbelat (esta terá papel crucial num desfecho trágico que nem vos conto!), percorre-se toda a História de Portugal e a sua épica, e chega o momento de apresentar a grandeza do lugar:

“O Solar da Barbela data precisamente do século XVI, quando os Barbelas em protesto contra os anos de cativeiro espanhol resolveram abandonar a capital do Reino e regressar às terras. Nessa época, os Barbelas voltaram à vida rural e nada mais encontraram da propriedade do que a Torre e o terreiro ao lado, com algumas habitações toscas. O oiro das especiarias e o comando das esquadras da Índia tinham levado os braços disponíveis nas redondezas. Quando Dom Sebastião desapareceu na sua fatal correria de Alcácer, além de arrastar muitos Barbelas consigo, deu também um ar desolador à pátria. Os fumos da Índia e as espumas de África trouxeram consigo a desolação, sem que para isso fossem bastantes as façanhas dos fidalgos de Entre Douro e Minho.”

Os Barbelas até tiveram santos, como São Cyro, é o comandante espiritual da Torre. Há paixões escondidas, dignas de Tristão e Isolda, como o Cavaleiro e Madeleine, há visitas dos Barbelas à Beringela, que guarda um fumeiro muito especial, logo um petisco capitoso, as enguias. E ao longo destas centenas de páginas vamos convivendo com os Barbelas, há gente que até lembra Eça de Queiroz, como o ridículo Dr. Mirinho. Que ninguém se iluda, a Torre de Ruben A. é o miraculoso país do passado, onde se celebram centenários, onde há bruxas apaixonadas, como aquela que vive em São Semedo, Madeleine é ligação à França, convém não esquecer os caixotes de Paris e a literatura que nos afogueou, antes e depois da monarquia constitucional.

Espantosa arquitetura da escrita, onde não falta o bobo italiano, passeios de burro, igrejas como não há no outro Portugal. Veja-se só: “A única igreja no Norte de Portugal que se pode comparar vagamente com a da Moutosa é a da Montaria, no caminho de Orbacém para São João de Arga. Mas é melhor não comparar. O curioso distinguirá imediatamente uma qualidade única em São Lourenço. Possui, como só a Torre de Belém, uma proporção de medidas que equilibra o pensamento ao primeiro relance. Olhando-se em frente fica-se à procura do desnível e do imperfeito. O talhe de pedra granítica, com os santos padroeiros das principais freguesias da Ribeira Lima empunhando uma escada para subirem mais facilmente ao Céu, transmite uma doçura de penetração que envolve até o menos crente.”

Convido o leitor a acompanhar a trama amorosa do Cavaleiro por Madeleine, tudo isto num lugar soberbo, de nome a Fontinha, que “fora desde tempos idos o ponto de partida dos Barbelas para as viagens de aquém e além-mar. Daquele estreito molhe de granito e terra batida, sombreado pelas ramagens quentes de salgueiros e choupos, as bateiras saíam em direção a Viana, donde os barcos de maior calado levavam a família aos mais diversos destinos do mundo.”

Reparem que não se fala aqui só do Portugal maravilhoso, há histórias de assombrar, é o caso do Grande Nevoeiro, uma das diabruras mais imprevistas do destino. “De Barcelos ao Lindoso, dos contrafortes do Gerês até às terras raianas do rio Minho, e descendo pela linha da costa, montes e vales ficaram cobertos de um misto de nevoeiro e neve que transformou o sentido do voo das aves e deu aos homens uma atitude meio religiosa meio borguista que perdurou pelos tempos.”

Porventura por sermos descentes dos Barbelas, seja qual for a colateral, é imperativo dever nosso conhecer de fio a pavio toda esta saga genialmente redigida por Ruben A. Está aqui o nosso retrato, caso não tenhamos perdido o gosto pela autocrítica: “Falavam, falavam, conversando fiado por tempos sem conta, discutiam, assentavam decisões e conversas, e ao fim encaminhavam-se ao natural de nada se ter passado. Enfim, o que havia era, bem ou mal, a prata da casa. Aquela prata que se apresentava nas grandes ocasiões de cerimónia e onde se comia a malga do caldo-verde e o naco de broa acompanhado de uma lasca de bacalhau cru ou de uma rodela de enchido de porco. Um destino embebido de fatalismo, uma espécie de não te rales. O resto não os preocupava em profundidade.”

Enquanto lia esta obra-prima da literatura portuguesa, passei os olhos por um injustamente esquecido Dicionário Crítico de Algumas Ideias e Palavras Correntes, por António José Saraiva, era uma edição de 1960, onde ele abordava em curto ensaio as distinções entre país real, país legal e país fabuloso. Percebe-se porque é que a Censura foi logo buscar o livro às livrarias:

“País fabuloso é o melhor dos mundos possíveis. Tudo nele decorre segundo o programa previsto. As pessoas são felizes, trabalham e produzem. Estão sempre agradecidas aos governantes que são sempre the right man on the right place. Nada acontece neles – a não ser os terramotos, os vulcões, os naufrágios ao largo e os excessos de temperatura, fenómenos indiferentes à vontade humana – que mereça uma reportagem especial, porque, como disse não sei já quem, os povos felizes não têm história. O país fabuloso é livre de seguir o seu encantador caminho sobre papel. Mas o país efetivo, que nada tem com isso, vai caminhando. Num caminhar obscuro, tateante, ao lusco-fusco de uma semiconsciência, porque não tem meios de dar notícia de si próprio. E é por isso que o país fabuloso, aparentemente risonho e inocente, se torna uma perigosa realidade. Ele nada cria a não ser fábulas.” 


                                                    Mário Beja Santos

 


Sem comentários:

Enviar um comentário