segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Um belo livro de divulgação do período sangrento das Invasões Francesas.



  

Há contracapas de livros que prendem imediatamente a atenção do leitor pela sua capacidade de incisão e pelo acicate para a leitura. É o caso daquela que acompanha Mapa Cor de Sangue, as lutas, as revoltas e as tragédias em Portugal do tempo das Invasões Francesas, por Rui Cardoso, Oficina do Livro, 2024:

“Portugal, 1808. Uma revolução social que acompanha os levantamentos patrióticos. O povo insurge-se contra a velha ordem de fidalgos e eclesiásticos e, ao mesmo tempo, contra o jogo do invasor francês.

Em Melgaço e Beja, populares lincham os magistrados, em Foz Côa, casas de famílias abastadas são saqueadas. Por outro lado, quem ousa rebelar-se contra os franceses é punido. Os habitantes de Vila Viçosa, Rio Maior, Alpedrinha e Régua são brutalmente castigados pelos soldados de Napoleão, mas nada se compara aos massacres em Leiria e Beja.

Os ingleses desembarcam e os franceses negoceiam a saída. Mas regressam menos de um ano depois. A guerrilha é espontânea, heroica e impiedosa. O general Bernardim Freire de Andrade é linchado pelo povo. E a entrada das tropas napoleónicas no Porto fica marcada pelas lutas casa a casa e pelo desastre da Ponte das Barcas, no qual milhares de pessoas perdem a vida. Fuzila-se e incendeia-se como método de contrainsurreição. Em São João da Madeira, a retaliação pela morte de um oficial francês leva à execução de 1 em cada 5 homens e rapazes da Arrifana. A resistência em Amarante exaspera franceses, que incendeiam a cidade.

Em agosto de 1810, o rio Côa tinge-se de sangue do prelúdio do cerco de Almeida, onde morrem meio milhar de defensores. Serão depois as vertentes do Buçaco a fincar juncadas de corpos dos combatentes.

Portugal entra no século XIX de forma violenta e traumática. Às invasões seguir-se-á a luta entre liberais e absolutistas, e mesmo depois da vitória dos primeiros haverá quase vinte anos de instabilidade, golpes militares e revoluções…”

É uma obra divulgativa de alto nível, faz-nos compreender como todo este período das invasões napoleónicas é o precedente sangrento do primeiro meio século do século XIX habitado pela violência político-social, as sublevações populares, as pilhagens à solta, toda esta turbulência só se acalmará com a Regeneração. Portugal irá sendo arrastado para o conflito que estalou entre a França e a Grã-Bretanha. A Corte partirá para o Brasil, fazendo-se acompanhar da Biblioteca Real da Ajuda, que não mais regressou. Os invasores saquearam e destruíram, a Bíblia dos Jerónimos será levada para França, tal com as coleções do Museu de História Natural de Lisboa; num ato de puro vandalismo, o famoso cadeiral que Olivier de Gand construiu no Capítulo da Igreja do Convento de Cristo será reduzido a lenha. O regente e futuro rei D. João VI viverá em permanente dilema, tentando negociar com ambas as partes; a Espanha, glutona, tenta juntar-se a Napoleão e ficar com uma parte de Portugal. Rui Cardoso dá conta dos efetivos portugueses, manifestamente impreparados, mas onde não faltaram comandantes com visão de futuro. A Grã-Bretanha domina os mares, a França possui um domínio terrestre. Para os britânicos, o teatro de operações ideal é Portugal. “O lado britânico vai praticar em Portugal (e acessoriamente em Espanha) um equivalente terrestre da guerra naval de corso. Ou seja, nunca procurará defender território fixo (exceção feita ao polígono Lisboa-Julião da Barra considerado vital para a retirada britânica em caso de malogro total), procedendo quase como uma força de guerrilha moderna (…) Já a doutrina napoleónica privilegiava a rapidez de movimentos, deslocando-se o exército com pouca bagagem e dispensando os lentos e vulneráveis comboios de abastecimento.” Por outras palavras, ambos os contendores esperam apossar-se dos recursos portugueses.

De forma expedita, o autor vai elencando  os acontecimentos avassaladores desde a Guerra das Laranjas (1801), em que Portugal estava teoricamente obrigado a fechar os portos aos britânicos, é um jogo dúplice até 1807, Junot atravessa o território português até Lisboa em condições penosas, vê de uma colina de Lisboa a partida da família real sob custódia da armada britânica; o jugo francês impõe-se, não faltará repressão, Napoleão impõe o pagamento de contribuição de guerra a Portugal, e no fim do ano Beresford ocupa a ilha da Madeira. Começa a resistência popular, não faltarão levantamentos, o execrado general Loison, conhecido por o Maneta, reprime com crueldade, será o caso de Évora, entre fuzilamentos e sacres há pelo menos 1500 mortos. E chegam os ingleses, o primeiro choque acontecerá a 17 de agosto de 1808, na Roliça, no Bombarral, segue-se o Vimeiro, Junot pede para negociar, sairá do país, de armas e bagagens e saque.

Meses depois, dá-se a segunda invasão, no entretanto espalha-se os ideais liberais um pouco por todo o país. É nesta invasão que se dá o desastre da Ponte das Barcas, o general Soult cedo se apercebe que não tem espaço de manobra nem meios suficientes, anda pelo norte do país à deriva, entra a ferro e fogo no Porto. O general Wellesley, que ainda não é duque de Wellington, vem-lhe no encalço, abandona Portugal pela Galiza, Soult, o duque da Dalmácia, abandona Portugal pela Galiza, um dos heróis de Austerlitz foge do país às arrecuas. A terceira e última invasão ocorrerá no verão de 1810. “A política de terra queimada decretada pelo general Wellesley, agora duque de Wellington, e aplicada quando o seu exército retirar para as Linhas de Torres Vedras, não se limitará a dificultar o avanço das tropas francesas – significará a miséria, a fome, e a devastação dos campos nas Beiras, no Ribatejo e no Oeste.”

Quem comanda a nova invasão é André Masséna, um veterano, tem palmarés, veio vitorioso da batalha de Essling e de Wagram, é valoroso, de uma bravura incontestável. A sua operação baseava-se na entrada em Portugal pela raia do Côa, seguida de um avanço sobre Lisboa utilizando os vales do Mondego e do Tejo. O invasor desconhecia totalmente as Linhas de Torres. Masséna perde tempo a cercar o resistente espanhol, cerca Almeida, segue para Pinhel, trava-se uma batalha sangrenta com o exército anglo-luso, inconclusiva. Por puro acidente, Almeida irá totalmente pelos ares, devido à explosão do arsenal, tenta acelerar a marcha ao longo do Mondego. O confronto decisivo irá ter lugar no Buçaco, os dois exércitos perseguem-se na direção de Lisboa, Masséna não sabe que o esperam as Linhas de Torres Vedras, não chega a haver nenhum ataque em forma às Linhas, Masséna vê-se obrigado a retirar em novembro. “As Linhas de Torres Vedras e a política de terra queimada tinham vencido os melhores soldados da época, mas à custa de um país devastado e dezenas de milhares de pessoas mortas de fome e de doença.” Napoleão perde condições para voltar a invadir Portugal, em 1812, o seu Grande Exército irá perder-se nas estepes geladas da Rússia, é o princípio do fim.

Rui Cardoso esboça um retrato sangrento das invasões napoleónicas, e deixa bem claro que isso dos brandos costumes é uma quase balela e que foram aqueles tempos que ajudaram a foguear os ideais liberais que se começarão a impor a partir de 1820. Excelente divulgação, não hesito em recomendar a sua leitura. 


                                                                        Mário Beja Santos

 


 

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