quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

As cartas de Milada Horáková (2)

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Carta à sogra

Minha querida Mãe Horakova,

Beijo-lhe as mãos, Mãe das sete dores. Não sabe, com certeza, quantas vezes penso em si, quantas vezes me levanto diante de si pedindo-lhe perdão, pois sei que sou culpada de muitas injustiças para consigo. A senhora é um exemplo de sacrifício e de resignação e tem um coração que transborda de bondade. Dá tanto e brilha tão pouco o sol da felicidade na sua vida! A senhora, a encarnação do serviço, do serviço aos outros, nem sequer reparou, na sua modéstia, que a sua pessoa era feita apenas de dádiva, que toda se dava sempre com tanto carinho. Nunca perguntou o que lhe davam os outros em troca. Foi um simples soldado do amor, que sempre lutou apenas pela felicidade dos outros e nunca recebeu qualquer medalha pela sua coragem. E isso teria sido, e é, tão importante para a sua vida, para que pudesse, uma vez mais, levantar-se do chão e lutar por uma vida melhor – não para si, mas para os outros.
Esta é a segunda vez que, do fundo do coração, lhe peço que me perdoe. A primeira foi na Pequena Fortaleza do campo de Terezín, prestes a ser destruído, onde percebi que não sabia gostar suficientemente de si. Era espiritualmente tão pobre que não conseguia alcançar aquele timbre especial que ressoa das teclas do seu coração. E, no entanto, poder-se-ia ouvir tão bem esse som. Mas eu tinha os ouvidos tapados pelo orgulho, pela inveja, pelo egoísmo. A senhora, querida mãe, deu-me, da pequena trouxa da sua felicidade, a jóia mais preciosa, o seu único filho, Bohuslav. Sem nada pedir em troca, só um pequeno gesto de reconhecimento e a minha autorização para desfrutar e se adornar com aquela jóia. No meu orgulho altivo e juvenil, na minha impensada feminilidade jovem, facilmente triunfante, fui tão egoísta que nem sequer a deixei gozar esse pequeno prazer a que aspirava. Comecei a competir consigo quando não havia qualquer motivo para competição, pois não era sua intenção privar-me do amor de Bohuslav. E assim, durante os meus vinte e três anos de vida com Bohuslav, mantive-me, de alguma forma, distante de si, maminko. Tenho muita vergonha e digo a mim própria, pela segunda vez, que foi necessária esta grande prova de Deus para que o compreendesse, e que tudo isto não foi uma perda apenas para si, mas também para mim. O seu querido filho também sofreu devido à nossa relação distante, pois amava-nos a ambas fervorosamente, ainda que a cada uma à sua maneira. O seu coração maravilhoso era tão rico em bondade e amor que eu devia ter ficado contente por si, visto ter tudo o que ele desejava dar-lhe. E até ao momento em que fui presa, na altura da morte do Pai Horak, invejei-a e tratei-a com antipatia. Magoei-a a si e a Bohuslav. Foi um erro terrível, e estou muito envergonhada por ter sido tão orgulhosa e tão insensatamente egoísta. Senti-me mal porque, quando o Pai Horak estava a morrer, ficaram ambos a sós com a vossa dor e não me pediram para estar convosco. Mas porque deveriam ter-me chamado? Porque não deveria antes ter sido eu a pedir para me deixarem estar convosco? Não deveria ter estado consigo, da mesma maneira que Bohuslav sempre esteve ao meu lado nos tempos difíceis, sem sequer ser necessário que eu lho pedisse?
Maminko, esta é a minha grande mágoa em relação a si a Bohuslav, e tenho de lhe confessar isto hoje, quando já não posso esperar que me perdoe; a sua alma bondosa já me perdoou…
Tenho falado em pensamento com o Pai Horak. Alegra-me que a morte dele se tenha dado quando ele estava feliz e se sentia bem, enquanto a senhora tinha de carregar a sua cruz ao Gólgota. Pedi-lhe também a ele que, na sua eterna morada, me perdoe e reconheci que as críticas que me fazia tinham em parte razão de ser. É certo que muitas vezes me ofendeu e magoou, mas tudo indica que ele sentia que certos traços da minha personalidade iriam custar ao seu filho muita dor e arrependimento… Reagi à sua intuição certeira com orgulho e altiva rejeição, tornei-me obstinada quando se sentiu culpado pelo seu erro para comigo. Necessito ainda de maior humildade e, por isso, tenho de passar esta prova. No entanto, é trágico que a senhora e Bohuslav tenham de sofrer, uma vez mais, para que eu possa alcançar uma correcta compreensão das coisas. Sei, no entanto, que será capaz de se levantar de novo, após cair sob o peso desta cruz. Sei que sairá vitoriosa deste seu Gólgota, pois tem consigo a força da fé, que para si será o escudo mais poderoso. Maminko, também eu a tenho… Assim, porventura a senhora mais do que ninguém acreditará se eu disser, com as palavras do salmo: Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum, pois Tu estarás comigo.
Não imagina a alegria que tive quando o meu advogado me informou que o pastor da Congregação Protestante expressou o desejo de me acompanhar e de me fortalecer espiritualmente nas horas que me aguardam.
Será solicitada a permissão das autoridades, mas, mesmo que não a concedam, o simples facto de ele querer fazê-lo deu-me mais força e consolo. Por favor, agradeça-lhe em meu nome. Sei que está a rezar por mim e que hoje rezou de uma forma especial. Continue a rezar, as minhas orações estão consigo. Pedi para que ao menos me dessem a Bíblia de Kralicka e prometeram-me que sim. Não sei, como é óbvio, se terão aqui tal coisa. Maminko, na sua dor, na qual ambas estamos sozinhas, todos os seus e meus ciúmes se desvaneceram. Julgo perceber como tudo isto é difícil para si e, porque sabe como era o amor entre mim e Bohuslav, também sabe que, no dia de hoje, o meu coração não sofre menos do que o seu. No entanto, ainda não o perdemos. Quer esteja vivo algures, quer porventura esteja já morto, no seu coração não deixou de nos amar a ambas, cada uma de forma diferente, e perdi qualquer ciúme pelo facto de nos amar às duas. Faço-lhe um pedido: passe muito tempo com a Janika. Sabe como ela gosta de si; e talvez encontre nela o seu filho.

Bohuslav, Jana, Milada


Carta à filha Jana

Minha única filha Jana, através de ti Deus abençoou a minha vida de mulher. Como o teu pai escreveu num poema, numa prisão da Alemanha, foste-nos dada por Deus porque Deus nos amava. Além do mágico e extraordinário amor do teu pai, tu foste a melhor prenda que recebi do destino. Contudo, a Providência planeou o meu de tal modo que não pude dar-te quase nada daquilo que o meu espírito e o meu coração estavam prontos a dar-te. Não porque te amasse menos. Amo-te com a mesma pureza e o mesmo fervor com que as outras mães amam os seus filhos. Mas entendi que o meu papel neste mundo era fazer-te bem… garantindo que a vida se torne melhor e que todas as crianças possam ter uma vida boa. Por isso… várias vezes tivemos de nos afastar uma da outra durante longos períodos. Esta é já a segunda vez que o destino nos separa.
Não estejas assustada ou triste pelo facto de eu não regressar. Aprende, minha filha, a olhar desde cedo para a vida como um assunto sério. A vida é dura, não é meiga para ninguém, e de cada vez que te ataca inflige-te dez golpes. Habitua-te a isso desde cedo, mas não permitas que isso te derrote. Luta. Sê corajosa e tem objectivos claros, pois assim triunfarás na vida. Muita coisa é ainda pouco clara na tua cabeça jovem, e não tenho tempo para te explicar assuntos sobre os quais continuas a fazer-me perguntas. Um dia, quando fores crescida, hás-de interrogar-te vezes sem conta porque é que a tua mãe, que te amava e para quem tu foste a maior dádiva, levou a sua vida de um modo tão singular. Talvez então encontres uma resposta para essa tua pergunta, melhor do que aquela que poderei dar-te no dia de hoje.
É evidente que só encontrarás a resposta certa e verdadeira se aprenderes muito, mesmo muito. Não apenas nos livros, mas com as pessoas: aprende com toda a gente, seja qual for a sua condição! Percorre o mundo de olhos abertos, e dá ouvidos não aos teus anseios e interesses apenas, mas também aos sofrimentos, aos interesses e aos anseios dos outros. Nunca penses que um assunto nada tem a ver contigo. Não, tens de te interessar por tudo, e deves reflectir sobre tudo, comparar, enquadrar fenómenos individuais. Um ser humano não vive sozinho no mundo: aqui reside uma grande fonte de alegria, mas também uma tremenda responsabilidade.
A primeira obrigação consiste em não pensar apenas em si próprio nem agir para si, mergulhando antes nas carências e nos objectivos dos outros. Tal não significa perder-se na multidão, mas perceber que somos parte de um todo e dar o melhor de nós à comunidade. Se o fizeres, estarás a contribuir para os objectivos comuns da sociedade humana.
Sê mais consciente do que eu fui em relação a um princípio: aborda a vida de um modo construtivo e positivo; tem cuidado com o que rejeitas desnecessariamente – não me refiro a toda e qualquer rejeição, pois creio que devemos resistir ao mal. Mas para se ser uma pessoa verdadeiramente positiva em todas as ocasiões é preciso aprender a distinguir o ouro autêntico das lantejoulas. Não é fácil, pois as lantejoulas, por vezes, cintilam de uma forma ofuscante.
Confesso-te, minha filha, que frequentemente me deixei deslumbrar pelo que me parecia resplandecente. E, por vezes, o seu brilho era tanto que se largava da mão o ouro puro para agarrar ou ir atrás de ouro falso. Sabes que para ordenarmos correctamente a nossa escala de valores temos de nos conhecer bem a nós próprios, ser firmes ao analisarmos o nosso carácter, mas, principalmente, temos de conhecer os outros, conhecer o mundo tanto quanto possível, o seu passado, o seu presente e o seu desenrolar no futuro. Em suma, temos de conhecer, de compreender. Não nos fecharmos, por nenhuma razão – nem sequer para afastar os pensamentos e opiniões daqueles que nos arreliam ou até nos magoam profundamente.
Investiga, pensa, critica, tudo isso, principalmente critica-te a ti própria e não tenhas vergonha de reconhecer uma verdade a que chegaste mesmo se ainda há pouco proclamavas o seu contrário. Não sejas obstinada nas tuas opiniões, mas quando concluíres que algo está certo, então sê de tal modo determinada que te tornes capaz de lutar e morrer por isso. Como disse Wolker, a morte não é má. Evita, isso sim, a morte gradual que surge quando alguém, de repente, nota que vive à margem da vida real dos outros. Tens de criar raízes onde o destino te determinar que vivas. Tens de encontrar o teu próprio caminho. Encara-o de forma independente, não deixes que nada te desvie dele, nem sequer a memória da tua mãe e do teu pai. Se realmente os amas, não irás magoá-los se os confrontares – apenas não enveredes por caminhos errados, desonestos e que não se harmonizem com a vida.
Mudei de opinião várias vezes, reordenei os meus valores, mas o que restou foi sempre um valor fundamental, sem o qual não consigo sequer conceber a minha vida, que é a liberdade de consciência. Gostaria, minha filha, que pensasses que esse foi o caminho certo.
Outro valor fundamental é o trabalho. Não sei a qual deles atribuir o primeiro e o segundo lugares… Aprende a gostar do trabalho! Qualquer trabalho, desde que o aprendas a fundo e minuciosamente. Então, não tenhas medo de nada, tudo te irá correr bem.
E não te esqueças do lugar do amor na tua vida. Não estou a pensar apenas na flor vermelha que um dia irá desabrochar no teu coração, quando, se o destino te for benigno, encontrares uma flor igual no coração de outra pessoa, com a qual o teu caminho irá cruzar-se. Estou a pensar no amor sem o qual ninguém consegue ter uma vida feliz. E nunca disperses o amor – aprende a dá-lo por inteiro e de uma forma autêntica. E aprende a amar justamente aqueles que não encorajam o amor – assim raramente cometerás um erro.
Minha pequena Jana, quando chegar a hora de escolheres aquele por quem o teu coração inocente irá arder, aquele a quem te irás verdadeiramente entregar, lembra-te do teu pai. Não sei se terás a sorte que eu tive, não sei se encontrarás um ser humano tão maravilhoso, mas elege como ideal alguém parecido com ele. Talvez tu, minha querida, já tenhas começado a perceber, talvez consigas mesmo perceber como foi doloroso perdê-lo. Para mim, o mais insuportável de tudo é sentir que sou também culpada por essa perda.
Tem consciência do grande amor e do sacrifício que Pepik e Beruska fazem por ti. Não tens apenas de lhes estar grata… tens de ajudá-los a construir a vossa felicidade comum de uma forma positiva, produtiva. Procura sempre fazer-lhes mais bem a eles do que o que eles te fazem a ti. Então talvez consigas corresponder à sua amabilidade e à sua bondade.
Soube pelo meu advogado que estás a ir bem na escola, e que queres continuar… Fiquei muito contente. Mas mesmo que um dia tenhas de deixar a escola para trabalhares para viver, nunca deixes de aprender e de estudar. Se quiseres realmente fazê-lo, atingirás o teu objectivo. Gostaria que te tornasses médica – e lembras-te de que falámos sobre isso. Mas, como é óbvio, a decisão dependerá de ti e das circunstâncias da altura.
Mas se um dia entrares na alma mater e, no dia da tua formatura, trouxeres para casa não apenas o diploma, mas também o dom de levar às pessoas o auxílio que sentem na presença de um médico – aí, minha menina… a tua mãe ficar-te-á imensamente agradecida… Mas a tua mãe só ficará verdadeiramente feliz, onde quer que estejas, numa mesa de operações ou num torno mecânico, junto ao berço do teu filho ou na mesa de trabalho de tua casa, se tudo fizeres com destreza e honestidade, com alegria, empenhando toda a tua pessoa. Então, conseguirás. Não sejas exigente na vida, mas sê ambiciosa nos teus objectivos. Uma coisa não exclui a outra, pois aquilo a que chamo exigência são noções e necessidades egoístas. Controla-as.
Compreende que, perante a tragédia e a dor que se abateram sobre ti, a Vera, o Pepicek, a avó e o avô… e muitos outros irão tentar dar-te tudo o que têm e o que não têm. Deves não apenas abster-te de lho pedir, como aprender a ser modesta. Se te acostumares, não serás infeliz por causa dos bens materiais que não possas ter. Não imaginas como uma pessoa se sente livre se tiver sabido fazer esta aprendizagem da modéstia… como ele (ou ela) conseguirá ultrapassar os fracos, tornando-se mais forte e seguro. Tentei, com determinação, fazer isto comigo própria e, não duvides, dessa forma serás capaz de duplicar a tua força, e poderás atingir objectivos corajosos e elevados…Lê muito e aprende línguas. Deste modo, ampliarás os teus horizontes e, com isso, a tua satisfação.
Houve uma altura na minha vida em que lia vorazmente, mas depois o meu trabalho não me permitiu sequer pegar num livro que não fosse relacionado com a minha profissão. Que vergonha. Aqui, nos últimos meses tenho lido imenso, incluindo livros que provavelmente nunca me interessariam se estivesse em liberdade, mas é muito importante lermos tudo, ou pelo menos quase tudo o que tenha valor. No final desta carta, vou dizer-te que livros tenho lido nos últimos meses. Estou certa de que pensarás em mim quando os leres.
E agora falemos do teu corpo. Fiquei contente ao saber que praticas desporto. Fá-lo de forma sistemática. Penso que deverias fazer exercícios rítmicos e, se tiveres tempo, praticar com regularidade uma ginástica rítmica adequada. E esses quartos de hora todas as manhãs! Acredita que te pouparão muitos aborrecimentos causados pelas proporções desfavoráveis da tua cintura, se os conseguires realmente fazer. Também é bom para treinar a tua vontade e perseverança. Trata também da tua aparência – não me refiro a maquilhagem, pois Deus proíbe-o – mas de um cuidado diário e saudável. Trata do pescoço e dos pés como cuidas do rosto e dos lábios. Tens de ter por amiga uma escova, todos os dias, e não apenas para as mãos e pés; usa-a em cada pedaço da tua pele. Álcool salicílico e Fennydin são suficientes para cuidares da beleza, juntamente com o ar livre e o sol. Mas em relação a isto arranjarás quem te dê melhores conselhos do que eu.
Pela tua fotografia, vi que tens um novo penteado; parece-me bem, mas não será uma pena esconderes a tua bela testa? Estavas uma senhora com aquele vestido de baile! De facto, estavas maravilhosa, mas o olhar de mãe notou uma falha, que se deve provavelmente ao modo como estavas colocada na fotografia – a gola não estava um pouco aberta demais para os teus dezasseis anos?
Tenho pena de não ter visto a fotografia do teu novo casaco de Inverno. Usaste o presente da tua tia como colarinho de pele? Não te enfeites em excesso, mas sempre que possível veste-te de forma cuidada e limpa. E não uses sapatos até que estejam gastos nos tacões! Usas palmilhas? E como está a tua tiróide? Estas perguntas não se destinam, como é óbvio, a obter resposta. São apenas lembretes da tua mãe.
Quando estava na prisão de Leipzig li um livro – as cartas de Maria Teresa para a sua filha Maria Antonieta. Fiquei impressionada pela forma como aquela governante mostrava ter sentido prático e ser feminina nos conselhos que dava à sua filha. O livro era a edição alemã original e não me recordo do nome do autor. Se um dia vires esse livro, lembra-te de que também eu tive em mente escrever-te cartas daquele género, contando-te as minhas experiências e dando-te conselhos. Infelizmente, nunca fui além das boas intenções.
Janinko, por favor toma conta do Avô Kral e da Avó Horakova. Os seus velhos corações vão precisar agora do maior consolo. Visita-os com frequência e deixa que te falem da juventude do teu pai e da tua mãe, para que guardes isso na tua mente e o legues aos teus filhos. Dessa forma, um ser humano torna-se imortal, e nós continuaremos a viver em ti e em todos os que tiverem o teu sangue.
E mais uma coisa – a música. Estou certa de que mostrarás a tua gratidão ao Avô Horak pelo piano que te deu se praticares com afinco. Conseguirás aquilo que Pepik tanto deseja, que o acompanhes quando toca violino ou viola. Peço-te, faz-lhe esse favor. Sei que isso significará muito para ele e que será encantador. E quando os dois tocarem bem em conjunto, toquem para mim a ária de Martha: «Letzte Rose, wie magst du so einsam hier blühn?» e depois: «Schlafe mein Prinzchen, schlaf ein» de Mozart, seguido do largo favorito do vosso pai: «Debaixo da tua janela» (1) de Chopin. Tocarás para mim, não é? Hei-de ouvir-te sempre.
Mais uma coisa: escolhe cuidadosamente os teus amigos. Entre outras coisas, uma pessoa é muito marcada por aqueles a quem se junta. Deste modo, escolhe com muito cuidado. Sê atenta em tudo e ouve criticamente a opinião dos outros acerca das tuas amigas.
Nunca esquecerei a encantadora carta (hoje já posso dizer-to) que uma noite me deixaste debaixo da almofada, em que me pedias desculpa quando te apanhei pela primeira vez à entrada na companhia de uma rapariga e de um rapaz. Explicaste-me na altura que era necessário ter um grupo. Tem um grupo, rapariga, mas um que seja composto por jovens bons e sadios. E compete com eles por bons objectivos. Mas, por favor, nunca confundas as paixões primaveris dos jovens com o verdadeiro amor.
Percebes o que te digo, não percebes? Se não, a tia Vera explicar-te-á o que queria dizer. E assim, minha única filha, pequena Jana, nova vida, minha esperança, meu futuro perdão, vive! Agarra a vida com as duas mãos. Até ao meu último suspiro, rezarei pela tua felicidade, minha querida filha!
Beijo o teu cabelo, os teus olhos, a tua boca, abraço-te e pego-te ao colo (de facto, peguei tão pouco em ti). Estarei sempre a teu lado. Estou a terminar de copiar de memória o poema que o teu pai compôs para ti na prisão, em 1940.


(1)     Provavelmente, referência a Życzenie, a primeira das 17 Canções, op. post. 74, de Chopin.




Milada Horáková, no julgamento, 1950



Carta ao marido

Meu querido marido,

Até ao dia 27 de Setembro do ano passado, em todos os quase 26 anos do nosso amor, este verso do teu poema foi importante para nós. Depois, as coisas mudaram de uma forma tão repentina e trágica.
Escrevo-te como escrevo a todos os outros, mas sem saber sequer se estás vivo, e se virás até a ler estas palavras… Esta é a dor maior que trago no coração… não ter notícias sobre ti, nem sequer notícias tristes, quando talvez me restem apenas algumas horas de vida. Pela primeira vez, nos longos anos que vivemos em comum, enfrento a prova que o destino me reservou sem te ter ao meu lado. Estou tão sozinha… e não consigo perceber nada desta tragédia. Talvez tudo se torne mais claro quando as nossas almas se reencontrarem. Sei e sinto apenas uma coisa: com o teu grande amor por mim, é impossível que me tenhas abandonado. Seja como for, há algo que queria dizer-te, meu querido: já uma vez te escrevi quando me encontrava no limiar da vida e da morte – em 1944, após o veredicto do Volksgericht em Dresden. Sinto-me feliz por não ter de mudar nada do que então escrevi, nem uma única palavra. Pelo contrário, a felicidade do nosso grandioso e encantado amor tornou-se mais sólida quando nos vimos de novo após regressarmos da prisão… Foste o maior amor da minha vida – através de ti, atingi tantos cumes do sentimento humano, cristalinos como uma jóia, que este invulgar amor terreno entre duas pessoas não pode terminar de uma forma comum. Sabe-lo bem, não precisas que to diga.
Lembras-te daquela noite calma em Agosto passado, num sábado, quando nos sentámos juntos na cozinha enquanto a chuva murmurava nas folhas das árvores do jardim da nossa casa? Bebíamos chá, eu falava contigo enquanto tu escutavas? Estava a dizer-te algo do fundo do coração. E eu, uma pessoa tão forte, comecei a chorar. Permaneceste em silêncio, deste-me um beijo e apenas olhaste para mim. Disse-te que sabia que pecava muitas vezes contra a bondade do teu coração, disse-te o que significavas para mim, pedi-te perdão se acaso te negligenciava devido aos meus outros interesses. Falei-te sobre a força, e sobre o meu genuíno amor por ti. Seria a conversa que tivemos naquela noite, que terminou contigo deitando-me gentilmente na cama, seria essa conversa, talvez, uma antecipação fatídica desta carta que nunca te chegará às mãos? Parece-me que sim. Por isso, mesmo que nunca venhas a ler estas linhas tenho a certeza de que sabes o que queria dizer. Tu sabes: fui tua amante mais do que tua esposa, porque para esposa faltou-me o necessário sentido da exclusividade das suas tarefas. Tinha as asas abertas e nunca me impediste de voar, mesmo à custa da tua própria felicidade. Tive em ti o marido perfeito, um companheiro que nunca se intromete de forma indiscreta nas profundezas da alma do outro. Eras tão seguro de ti, estando sempre acima dos problemas que nos afectaram. És a única pessoa no mundo que tenho a certeza que me compreende.
Gostava de ter a certeza de que posso contar com a tua compreensão mesmo num dia como este. Mas não percebo uma coisa: porque abandonaste a nossa filha? Nesta pergunta não há qualquer recriminação, meu querido, mas apenas espanto por algo incompreensível. Sou toda tua, como sabes, permaneci fiel ao nosso amor, para contigo e para comigo. Se partir antes de ti é apenas para te esperar pacientemente.
O nosso amor será até capaz de ultrapassar esta mudança de estado físico, e serve-me de consolação saber que estarei sempre perto de ti em espírito.
Quando a hora derradeira chegar, não estarei sem ti, estarás a meu lado com os teus poemas que irei recordar dizendo-os eu mesma [segue-se um longo poema de amor]
Beijo-te, meu marido, agarro-te as mãos, companheiro. Se estiveres vivo, desejo-te uma vida longa e feliz. Resolve os problemas que tens na vida, para que possas viver plenamente… Tua, M.



Milada Horáková, no julgamento, 1950




Cartas à família


[às 2.30 da madrugada de 27 de Junho de 1950, o dia em que Milada Hórakóva foi executada, escreveu de novo aos seus familiares, terminando com as seguintes palavras:]

E tu meu perdido, único, maravilhoso marido! Sinto que estás de pé a meu lado. Agora estamos de novo de mãos dadas, firmemente. Os pássaros acordam, o dia amanhece. Vou de cabeça erguida. Temos também de saber perder. Não é desgraça nenhuma. Um inimigo também não perde a honra se for autêntico e honrado. Alguém cai na batalha; mas o que é viver senão lutar? Fica tranquilo. Sou tua, só tua, Milada.



Milada Horáková (1901-1950)


Última carta, escrita para a família antes da execução

Não tenham pena de mim! Vivi uma vida maravilhosa. Aceito o meu castigo com resignação e submeto-me a ele com humildade. A minha consciência está limpa e espero, acredito e rezo para passar também no teste do mais supremo dos tribunais, o de Deus.



Tradução: António Araújo

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