quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

O poder da palavra (1): o caso Daily Telegraph.

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Em 28 de outubro de 1908 foi tornada pública a mais hilariante tentativa de um governante de uma grande potência para estabelecer boas relações com outra grande potência. Note-se que, nas suas memórias, Wilhelm II afirma expressamente que a entrevista que deu ao Daily Telegraph tinha como “objetivo melhorar as relaçãos germano-britânicas”. Ficou conhecido como o “Daily Telegraph Affair”.
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Kaiser Wilhelm II

“–Vós, ingleses, sois doidos, doidos, doidos como as lebres de Março” – por incrível que pareça, começa assim a entrevista.

 


“Mad as a March Hare” é uma expressão inglesa típica. As lebres, no início do período de reprodução, têm um comportamento alterado. Tão alterado que Alice, no País das Maravilhas, contracena com a Lebre de Março. Conta-se que as fêmeas, quando não estão para aí viradas, repelem os pretendentes violentamente com as patas dianteiras. Nada melhor para seduzir os ingleses, em tempos onde ainda imperavam os saudosos valores vitorianos, do que metáforas relacionadas com fêmeas exaltadas que correm com  machos sequiosos a pontapé.
E continua a entrevista:
“– O que vos aconteceu para que se entreguem a suspeitas indignas de uma grande nação? Que mais posso fazer do que o que já fiz?”. Talvez... dizer alguma coisa amável? Ele bem tenta:
“– Repito que sou amigo da Inglaterra, mas vocês tornam-me as coisas difíceis. O sentimento prevalecente entre a maior parte das classes média e baixa alemãs não é amigável para a Inglaterra.”
Por outras palavras, os alemães comuns detestam os ingleses. Mas o imperador quer provar que ele adora os ingleses e vai tentar demonstrá-lo de uma forma hábil, referindo o seu comportamento durante a Guerra dos Bóeres:
“– Quando os combates estavam no seu auge, o Governo alemão foi convidado pelos governos da França e da Rússia para nos juntarmos a eles para apelar à Inglaterra para pôr fim à guerra. O momento chegara, disseram-nos, não só para salvar a República Bóer, mas também para humilhar a Inglaterra.”
Brilhante: julgando agradar à Inglaterra, ataca rudemente a França e a Rússia, revelando, de passagem, que com eles negociações diplomáticas secretas não o ficam por muito tempo.
A sua megalomania não podia deixar de surgir: em Dezembro de 1899, as forças inglesas sofreram diversas derrotas. Nessa altura,
“– Recebi uma carta da Rainha Vitória, a minha venerada avó.”
A avó que o Kaiser venerava, falecida em 1901, fora uma grande admiradora da obra de Lewis Carroll, pelo menos quando nela figurava Alice, não tendo sido assim tão admiradora da obra do notável matemático.
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Há quem sugira que a terrível Rainha de Copas, aquela que tem uma tendência admirável para mandar cortar a cabeça aos súbditos, foi inspirada naquela antepassada de Wilhelm.
Retomemos a descrição da carta real:
“– Escrita sob grande sofrimento e aflição, revelando traços manifestos de ansiedade…”, a dita missiva inspirou o Kaiser. Deu-lhe uma veneta e “elaborei o que me pareceu o melhor plano de campanha naquelas circunstâncias e submeti-o ao meu Estado-Maior.”
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Os generais do Kaiser

 “– Depois – conta-nos o grande estratega militar –, enviei-o para Inglaterra.”
Como não faz referência a qualquer alteração introduzida, podemos concluir que os sisudos generais devem ter vergado a cerviz perante a presciência do imperador, ou, simplesmente, julgaram que se tratava de uma brincadeira ao nível dos jogos de guerra com soldadinhos de chumbo que não teria nenhumas consequências. Mas o Kaiser achou que não:
“– Deixe-me acrescentar, como curiosa coincidência, que o plano que eu formulei seguia as mesmas linhas que o adotado por Lord Roberts e que vos levou à vitória.”
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Lord Roberts of Kandahar

 
Uma mera coincidência. Afinal, modesto. O que ele queria mesmo dizer é que Lord Roberts, o maroto, tinha lido e copiado o plano de batalha que discretamente lhe fora expedido pela Rainha. A modéstia do imperador, porém, não seduzia agora os generais ingleses nem, suspeita-se, os generais alemães que nunca esperariam que o seu aval à genial estratégia do Kaiser surgisse em letra de forma na imprensa de Londres.
Para acabar, tinha de invocar a sua amada marinha de guerra. Para o Kaiser, não se tratava de uma ameaça para a Inglaterra:
“– A Alemanha é um império novo e em crescimento.” – esta do crescimento de um novo império não podia ter deixado de tranquilizar toda a Inglaterra. E continuou:
“– A Alemanha deve ter uma frota poderosa para proteger os seus interesses mesmo nos mares mais distantes. Os nossos horizontes são muito longínquos.”

 


Navios afundados em Scapa Flow


Os horizontes da frota do Kaiser terminaram em 1919, em Scapa Flow, quando foram dadas ordens pelos almirantes alemães para os barcos apresados serem afundados.
Nesse ano de 1919, enquanto os aliados se aprestavam em Versalhes para saquear a Alemanha, abrindo caminho a Hitler, já o Kaiser estava no exílio holandês e o 2º Reich, o império em crescimento imparável, desaparecera de cena.
O mais interessante é que o caso da entrevista do Kaiser deu origem a um debate constitucional na Alemanha que perdurou de 1908 a 1914. Nele, o sistema de governo foi pela primeira vez posto seriamente em causa.
O Daily Telegraph Affair, tanto ou mais do que na Inglaterra, deu brado na Alemanha. O Chanceler não defendeu o Kaiser. Foi ao Reichstag defender que, de futuro, se devia evitar a tendência para “políticas personalizadas”, o que enfureceu Wilhelm, como fica claro nas suas memórias.
Nesse ano de 1908 chegou-se a falar no Reichstag na possibilidade de instauração da República. Os deputados responderam com gargalhadas, como se a ideia fosse ridícula. Mas já não era ridícula a introdução de um sistema de governo parlamentar, no qual o governo não fosse livremente nomeado e demitido pelo Kaiser, mas se tornasse responsável perante o parlamento. A verdade, porém, é que a opinião pública alemã não queria o parlamentarismo que associava à fraqueza e instabilidade francesas. Por isso, só a extrema esquerda do SPD se voltou contra o Kaiser e, isolada, defendeu a mudança para um sistema parlamentar puro.
No auge da crise do Daily Telegraph, os liberais de esquerda de Otto Wiemer definiram a sua posição: “Reconhecemos que, de acordo com a nossa Constituição, o Chanceler não é obrigado a demitir-se quando a maioria do Reichstag não manifesta confiança nele.”
Ora, a única forma de as esquerdas forçarem uma mudança da Constituição seria unirem-se para rejeitar a proposta de orçamento do governo. Desse modo provocariam um braço de ferro com o imperador que ficaria impossibilitado de financiar o exército e a marinha. Ninguém esteve disponível para pôr em causa os fundamentos da política imperial. E assim se calcorreou o caminho da guerra.
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Schlieffen Plan 


O Plano Schlieffen prometia uma guerra curta, a guerra de quarenta dias. Em agosto de 1914, Wilhelm II proclamou que as suas tropas regressariam a casa “antes de as folhas caírem das árvores”. Foi uma das suas últimas bravatas. A guerra não terminaria no Outono.
Apesar de hoje estar provado que o Alto Comando alemão e, em particular, o general von Moltke, estavam convencidos em 1914 de que a guerra iria ser longa e devastadora, ainda se ouviu então o general von Falkenhayn comentar, no dia 4 de Agosto: “Mesmo indo para a guerra por causa disto, mesmo assim será belo!” Não foi.


José Luís Moura Jacinto

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