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Ao inventor do sapato devemos, não as calosidades, mas seguramente os calos. É obra. Aos utilizadores subsequentes do sapato devemos o uso criativo do mesmo.
# - O sapato como símbolo
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Ao inventor do sapato devemos, não as calosidades, mas seguramente os calos. É obra. Aos utilizadores subsequentes do sapato devemos o uso criativo do mesmo.
# - O sapato como símbolo
Em 2008, após três longos anos de especulação sobre a sua origem, o L'Osservatore Romano veio esclarecer que os sapatos vermelhos do Papa não são Prada, porque “o Papa não usa Prada, usa Cristo”. Ficámos esclarecidos. Ficámos?
A célebre imagem de Charlot degustando, a meias com Big Jim Mckay, um delicioso sapato cozido, em “A Quimera do Ouro” (1925), esconde um pormenor delicioso: os sapatos, os atacadores e os próprios pregos eram feitos de chocolate. Com a mania das perfeições de Chaplin, os takes eram tantos que os dois actores ficaram terrivelmente mal dispostos com a refeição.
Inspirando-se no imortal clown, espera-se que, depois do pastel de nata, se siga uma acção de propaganda ministerial a propósito de um novo produto de exportação tipicamente português, o sapato comestível. O que não deixará de representar um solene avanço da indústria nacional, desde os tempos em que aos marinheiros da Nau Catrineta foram fornecidos sapatos incomestíveis:
Já não tinham que comer
Nem tão pouco que manjar.
Deitaram sola de molho,
Para o outro dia jantar.
Mas a sola era tão rija
Que a não puderam tragar.
Os chineses são conhecidos pela sua proverbial criatividade na aplicação de instrumentos de tortura. Mas também é sabido que usam a tortura, não só para fazer falar aqueles que, por qualquer motivo desconhecido, não querem confessar algo que os vai condenar à morte ou a qualquer martírio mais interessante, mas também para aperfeiçoar a beleza feminina. Os sapatinhos que envolviam aqueles delicados pezinhos escondiam autênticas monstruosidades. Ossos partidos, peles deformadas, articulações destruídas, para os pezinhos poderem caber nos sapatinhos. Conclui-se que os chineses gostam mais de sapatos do que de pés.
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# - O sapato como arma de arremesso
This is a farewell kiss from the Iraki people, you dog! |
E alguém se lembra ainda daquele heróico mas pouco preciso jornalista iraquiano, Muntadhar al-Zaidi, que, numa conferência de imprensa, quis atingir o presidente dos EUA com o seu sapatão? Conta-se que al-Zaidi se denunciou ao gritar “This is a farewell kiss from the Iraki people, you dog!”, o que ficou bem como proclamação não particularmente elegante mas suficientemente expressiva, mas permitiu evitar o impacto. Mesmo assim, foi notável o poder de esquiva, digno de um Jack Dempsey, de George W. Bush. Preso, afirma-se que al-Zaidi foi torturado durante a detenção. Alguma tortura chinesa?
A virtuosa flexibilidade do sapato tem sido profusamente ilustrada, podendo mesmo dizer-se que o mais famoso sapato do século XX é um calçado protestante. A ter existido.
Nikita Krushchev, na Assembleia Geral da Nações Unidas, irritado com um orador, terá mesmo brandido o seu sapato soviético contra o tampo da bancada? Até hoje não há certezas. A fotografia que circula na Net é declaradamente falsa. Uns dizem que viram, testemunharam, podem jurar. Outros atestam que não viram, que não aconteceu, que seria impensável. A filha Nina escreveu na New Statesman um artigo, tomando partido: o papá não bateu com o sapato na mesa.
Resumidamente, a base do argumento filial é a seguinte: o meu papá não era, ao contrário do que constava no Ocidente, um pobre e ignaro camponês ucraniano (ele nem era sequer camponês, nem ucraniano), que ria desbragadamente enquanto contava anedotas anticapitalistas e provava como a URSS iriam ultrapassar os EUA. Pelo contrário, era um refinado teórico marxista e um estratega de fino recorte que, para subir na vida, ou, mais prosaicamente, para se manter vivo, acamaradara com um tal José que o forçara, de passagem, a deixar morrer à fome uns milhões de concidadãos (esses sim, camponeses e ucranianos). Sendo tão refinado, conclui-se insofismavelmente que nunca poderia ter tido tão primitivo comportamento.
Em suma, Nikita e a sua Nina não assumem a responsabilidade. Trata-se de um comportamento-padrão de membro da Nomenklatura, que o brando Molotov exemplificou quando terá dito: “O Pacto, vá que não vá, fui eu! O cocktail, não fui, mas gostaria de ter sido. Agora, o pudim?! Nunca, jamais, em tempo algum.”
A verdade é que assumir qualquer responsabilidade poderia levar a que das fotografias fosse apagada a sua imagem – o que, consta, era sempre prenúncio de consideráveis problemas de saúde.
Em jeito de conclusão, podemos dizer que, como sempre, razão tinham os Romanos: ne sutor ultra crepidam. Sapateiro, não vás além do sapato. Quando começam os usos criativos do sapato (e quando começamos, em desespero, a desenterrar ditos em línguas mortas), não se sabe onde se vai parar. Se é que, assim calçados, se para... ou pára? Olhem, acaba-se a escrever «para» sem acento. Por muito que isto aperte os calos de Vasco Graça Moura.
José Luís Moura Jacinto
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