quinta-feira, 28 de março de 2013

Notas Bárbaras (diário ocasional).


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Quarto de Edgar Allan Poe
Fotografias de Onésimo Teotónio de Almeida




22 de Março

Charlottesville, Virginia

Vim falar à Jefferson Society, uma das mais antigas Debating Societies dos EUA, fundada em 1825. Não fazia ideia do que esperar e deparei com uma verdadeira surpresa, como aliás já o fora o próprio convite. Nunca tinha estado na Universidade da Virginia, onde Richard Rorty leccionou no Departamento de Filosofia antes de cá sair e ir ensinar Literatura Comparada para a Califórnia. A Universidade foi concebida e desenhada por Thomas Jefferson, na fase final da sua vida, e teve nesse processo alguma colaboração do nosso Abade Correia da Serra, que naqueles anos andava por Washington e passava muito tempo em casa dele em Monticello, aqui nos arredores de Charlottesville. Mas sobre isso já escrevi noutros lugares.

Chegámos cedo (a Leonor veio comigo) para aproveitarmos o fim-de-semana. O Vice-Presidente da Sociedade, McCulloch Cline, aluno do 2º ano, ofereceu-se para nos guiar numa visita à parte mais antiga da universidade, cuja arquitectura em estilo “federal”, de grande influência jeffersoniana, é por demais conhecida. Mas a escala é bem maior do que esperava. O que aquele moço sabia da história local deixou-me boquiaberto.

Na parte antiga do campus nota-se a preocupação em preservar até os quartos dos alunos, todos ainda com lareira (a lenha fica à porta de entrada). Um dos quartos é hoje museu, pois nele viveu Edgar Allan Poe, quando aqui foi aluno.

A direcção da Jefferson Society levou-nos a jantar a um restaurante no bairro antigo da cidade, que é um atraente espaço habitacional cheio de vida e cor. A conversa impressionou-nos pelo teor dos assuntos abordados e pelo nível que revelou. Engravatados todos, tinham um porte descontraído, porém muito digno, e a qualidade da linguagem saltava ao ouvido desarmado.

O mesmo estilo e porte fomos encontrar na sala da Society onde ia decorrer a conferência. Cheia, entre 40 e 50 membros, alguns professores, mas a maioria alunos. Quase todos de gravata e casaco escuro.

Tinham-me pedido um tema português porque nessa "Distinguished Lecture Series" da Society nunca ninguém tinha falado sobre o mundo lusófono. Por se tratar de uma sociedade jeffersoniana, gostariam que o assunto tivesse algo a ver com a modernidade, universo muito querido de Jefferson, grande fã do iluminismo. Pragmático nestas, coisas, aproveitei para sugerir falar-lhes do Canto V d’ Os Lusíadas, que acho um belo exemplo de como a nova mentalidade empírica adquirida com os descobrimentos tocou também Camões. Os meus alunos lêem esse canto todos os anos no seminário "No Dealbar da Modernidade”, todavia nunca tinha tido ainda a oportunidade de passar ao papel o que penso sobre o assunto (sempre em diálogo com o que já existe publicado, que por sinal é pouco) e como o enquadro na escrita “moderna” produzida nos Descobrimentos.

Acertei na escolha. Vim munido de uma série de imagens em Power Point, porque elas sempre ajudam a manter a atenção do público. No entanto, ali para aquela assembleia nem teria sido preciso. Optei por não ler o texto, escrito para o efeito, e falei ilustrando a charla com as ditas imagens.

Choveram perguntas a revelar todas uma grande atenção e uma excelente cultura histórica (faz parte dos critérios de selecção dos membros, como já veremos). Todas muito directa e clarissimamente formuladas, sempre precedidas de um amável comentário à conferência. Mais ainda, impecavelmente curtas; nada de rodeios palavrosos.

Terminada a minha parte, seguiu-se a reunião da Society para tirocínio dos candidatos a membros. Quis ficar para ouvir pelo menos a prova de um candidato (probationary).

Espantosa experiência. Um moço de Direito falou sobre um aspecto específico da Guerra Civil. Sem papel, desenvolveu com brilho e elegância o tema até a presidente dar uma martelada na mesa interrompendo-o a meio de uma frase porque o seu tempo acabara. Ele estancou precisamente onde estava e nem terminou a frase. Seguiram-se os comentários de membros actuais, incidindo em dois aspectos: crítica de conteúdo e crítica formal. Nesta, até a colocação da voz recebeu reparos, sempre com sugestões positivas. Tudo feito com uma correcção e um ritual que… só vídeo. Descontraído e formal, sempre em linguagem muito educada mas totalmente directa. A uma das perguntas, o candidato, depois de pensar uns segundos, disse simplesmente com um ar concentrado: Não sei responder.

A sessão começa sempre às 7:29 pm. Thomas Jefferson era muito minucioso e marcou assim para ser primeiro do que outra organização que iniciava as suas reuniões às 7h e 30m. A tradição mantém-se mas, como há alguma flexibilidade, anunciam então que ela começa “aproximadamente às 7h e 29m”.
 
 
Onésimo Teotónio de Almeida

9 comentários:

  1. Obrigado, Professor Doutor Onésimo.
    Lê-lo, é sempre um grande prazer.
    Cumprimentos do
    José Couto
    Porto

    P.S.: E, as suas fotografias, não ficam nada a dever à sua escrita... :-)

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  2. Belíssimo texto. Obrigado. Vou "pendurá-lo" no meu perfil do Facebook e dedicá-lo a Camilo Lourenço. Acho que não vale a pena dizer porquê.

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  3. simplesmente deliciosa esta crónica

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  4. Excelente texto. É, por estas e por outras, que a leitura dá tanto prazer.

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  5. Excelente texto. É, por estas e por outras, que dá tanto prazer ler.

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  6. Um texto (e imagens) com a qualidade que o Prof Onémsio nos habituou: Muito bom!

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