Agradeço
ao blogue nAnonima duas coisas: por um lado, a referência elogiosa feita ao
Malomil; por outro, ter-me dado a conhecer, entre o seu apurado acervo, esta imagem, a preto e branco.
Impressionado pela sua brutalidade, pus-me a tentar investigar algo mais sobre
a fotografia, intrigado pelo facto de ela pouco ou nada ser conhecida. Se
procurarem na Internet, são escassas as referências a uma imagem que, pela sua
expressividade terrível, deveria ter milhares e milhares de links.
Descobri que o seu autor é Shailendra Pandey, um fotojornalista de Nova Deli que possui um portefólio com imagens extraordinárias da Índia, muitas delas de extrema violência, crudelíssimas. A fotografia em causa chama-se, tão-só, «Suicide of Husband and Wife» e sobre ela o autor pouco ou nada diz. Ao que parece, foi captada em 4 de Março de 2003, em Moradabad, Uttar Pradesh, mas não consegui saber se, onde e quando foi publicada, designadamente na imprensa escrita. Julgo que pertence ao arquivo do Amar Ujala.
Pandey é um fotógrafo relativamente conhecido, com trabalhos divulgados em publicações de referência como News Week, Le Monde, The Guardian, Courrier International, El Periodico de Catalunya, The Age, People, etc. A informação biográfica, todavia, é escassa, e fornecida pelo próprio, aqui.
Descobri que o seu autor é Shailendra Pandey, um fotojornalista de Nova Deli que possui um portefólio com imagens extraordinárias da Índia, muitas delas de extrema violência, crudelíssimas. A fotografia em causa chama-se, tão-só, «Suicide of Husband and Wife» e sobre ela o autor pouco ou nada diz. Ao que parece, foi captada em 4 de Março de 2003, em Moradabad, Uttar Pradesh, mas não consegui saber se, onde e quando foi publicada, designadamente na imprensa escrita. Julgo que pertence ao arquivo do Amar Ujala.
Pandey é um fotógrafo relativamente conhecido, com trabalhos divulgados em publicações de referência como News Week, Le Monde, The Guardian, Courrier International, El Periodico de Catalunya, The Age, People, etc. A informação biográfica, todavia, é escassa, e fornecida pelo próprio, aqui.
A fotografia pareceu-me estranha e, sem
levantar suspeições maldosas, há nela vários pormenores que justificariam uma
investigação cuidada. Desde logo, como alguém já notou aqui, não se vê sangue
nos corpos trucidados. A linha ferroviária está imaculadamente prateada, reluzente
ao sol, como se um comboio não tivesse atravessado dois corpos. Os corpos não
estão esfacelados, as marcas da passagem do comboio não são muito visíveis.
Pelo contrário, o corpo da mulher parece ter sido
delicadamente segmentado em duas metades. O rosto dela não revela quaisquer
marcas de dor ou sofrimento. Na linha, insiste-se, não há pinga de sangue. Do marido, não se vê sequer a cabeça. À volta
desta cena macabra, as pessoas parecem sereníssimas ou, pelo menos, completamente
resignadas. Bem sei que estamos na Índia, terra de desastres vários, e reconheço
que a fotografia pode ter sido captada muito depois de marido e mulher se terem
suicidado. Mas por que não recolheram os corpos ou os taparam? Qual a razão
para o suicídio? Note-se que, à esquerda, se vêem dois polícias a caminhar na
berma, mas fazem-no com uma tranquilidade que é, no mínimo, desconcertante. Se
a imagem foi captada logo a seguir ao desastre, deveria estar um ajuntamento de
pessoas em redor dos corpos trucidados. Mas não; o que se vê é gente sentada na
linha, de cócoras. Se a imagem foi captada horas depois, como foi possível manter
os corpos no meio da linha, quando as autoridades ali estavam por perto?
Além daquela que consta do portefólio do autor, há um outro exemplar, disponível no Flickr. A imagem, sendo a mesma, é todavia apresentada de forma diferente:
A imagem é, além disso, demasiado perfeita na suscitação do
horror. E, quando tal acontece, os motivos de desconfiança são maiores. Porquê?
Porque as pessoas ficam de tal forma impressionadas pelo que vêem que,
paradoxalmente ou não, a sua capacidade de distanciamento crítico e observação
fica mais obnubilada. Em casos como este, a suspension
of disbelief é mais intensa, porque o olhar e a crença são concentrados na
rejeição, em detrimento da atenção.
Pandey é autor de outra imagem de suicídio, também ela demasiado perfeita. «Suicide of a Sister», assim se chama. Esta também mereceria uma análise atenta, pois, por aquilo que vemos, o corpo da suicida está suspenso de uma forma que quase parece que os pés tocam ou tocariam o chão (veja-se as cadeiras, ao lado do cadáver).
Refira-se, por último, e sem que daqui decorra qualquer juízo sobre a sua pessoa ou a autenticidade do seu trabalho, que Shailendra Pandey é um fotógrafo de celebridades de Bollywood, de homens de negócios multimilionários e até de actrizes porno. Um fotojornalista tem de fazer de tudo, para mais num país onde o struggle for life é feroz. No entanto, entre as imagens violentíssimas de confrontos e auto-imolações e os retratos de actores e políticos, parece existir uma ambivalência muito grande, abissal, no trabalho de Pandey. Sobre Sunny Leone, uma actriz porn, há uma série de várias fotografias em lingerie; sobre o suicídio do casal, apenas uma, o que é muito singular numa imagem com aquele impacto e aquela força.
Nada disto, sublinhe-se, é decisivo. O importante é notar que, não sendo
tão patente como no triplo suicídio em Leipzig, existe aqui um fumo de
manipulação que mereceria ser dissipado por alguém com mais perspicácia do que
eu. Vou perguntar ao meu amigo José Barreto, um olho de lince, o que acha de
tudo isto.
António Araújo
Post-scriptum – entretanto,
pedi a opinião de José Barreto, que chegou, como sempre, pronta e amiga. Ei-la:
Caro António Araújo,
Fico com a sensação de que a foto do
duplo suicídio não é manipulada. Não penso isso pela análise da imagem em si,
mas pelas circunstâncias. Trata-se de um caso testemunhado ‒ a posteriori, pelo
menos ‒ por muitas pessoas. O fotógrafo tem nome no fotojornalismo indiano e
internacional, como você observou. O trabalho preponderante dele, segundo o
próprio declara, é o de “hard news photographer”. Já teve um prémio de
fotojornalismo, uma “foto do ano”.
Não encontrei referências a este fait divers na imprensa indiana online. Mas na Índia há milhares de
suicídios por ano nas linhas de caminho de ferro, muitos deles colectivos ‒
casais, namorados, mães com filhos, etc. Parece ser uma instituição indiana. Um
jornal indiano diz que morre muito mais gente nas ferrovias por suicídios do
que por acidentes de comboio. É tanta a “matéria-prima”, que me parece absurdo
que um jornalista com nome (presumo que já o tivesse) precisasse ou cedesse à
tentação de manipular ou encenar a foto.
No endereço http://www.documentingreality.com/forum/f10/suicide-train-india-47781/ há uma série fotos de outro suicídio indiano no caminho de ferro, em que aparentemente a cabeça do suicida saltou para longe da linha. Há poucos vestígios de sangue nas imagens, embora a linha não tivesse ficado completamente limpa. Aqui também os mirones estão, ou foram mantidos pela polícia, à distância. Este site tem milhares de fotos de mortes violentas (muitas fotos de polícia, creio), mas não tenho estômago para andar lá a pesquisar...
No endereço http://www.documentingreality.com/forum/f10/suicide-train-india-47781/ há uma série fotos de outro suicídio indiano no caminho de ferro, em que aparentemente a cabeça do suicida saltou para longe da linha. Há poucos vestígios de sangue nas imagens, embora a linha não tivesse ficado completamente limpa. Aqui também os mirones estão, ou foram mantidos pela polícia, à distância. Este site tem milhares de fotos de mortes violentas (muitas fotos de polícia, creio), mas não tenho estômago para andar lá a pesquisar...
Já a segunda foto, o “suicídio da
irmã”, me choca pelo extremo mau gosto do enquadramento, com o irmão a
chorar ao telefone. O fotógrafo revela desconhecer totalmente aquilo que os
ocidentais chamam, e bem, pudor.
Uma coisa me intriga também nesta
segunda foto é que, em todo o mundo, ninguém permite que um jornalista faça
fotos de um familiar que se suicida dentro de casa. Nunca vi tal coisa! Mas a
Índia deve ter gente para tudo entre os 1200 milhões...
Um abraço do
Zé Barreto
quem agradece o agradecimento sou eu. e agradeço também este teu canto.
ResponderEliminarquanto à foto, sim, corri a net à procura de informações, pelo menos do nome do fotografo. mas, ou a habilidade foi pouca ou o tempo escasso, não encontrei nada. percebi que a foto tinha de ser «falsa» (pelas razões que apresentaste), mas o que me importou foi a mensagem subjacente.
Mil obrigadas.
Muito obrigado por estas (imerecidas) palavras.
EliminarTalvez o post-scriptum do José Barreto seja mais esclarecedor: segundo ele, muito provavelmente, a imagem não é manipulada.
António Araújo
então, confirma-se. o ser humano não tem salvação. a normalidade com que é encarado o momento por quem de tão perto o observa é assustadora. bem sei que o ser humano é um animal de hábitos, mas constatar que já nos habituámos à morte das pessoas que nos rodeiam a menos de cinco metros...
Eliminar(ainda assim, estranho a cabeça dela naquele lugar... com a deslocação da maquina, a cabeça devia ter avançado. não?)
Boa tarde. Aproveito a última frase do José Barreto para dizer que há pouco tempo encontrei uma fotografia, tirada dentro de casa e com o corpo ainda em rigor mortis, de um rapaz português que se tinha suicidado. Foi a própria família que autorizou que a fotografia fosse tirada. A mesma está numa edição do Jornal O Crime, de Fevereiro de 1985. Não é preciso ir à Índia nem procurar num país com 1200 milhões de habitantes. Basta ir aos arquivos.
ResponderEliminarcumprimentos,
Bruno Vieira Amaral
Caro Bruno, não me surpreende que em Portugal também haja disso em certos jornais. Não leio, porém, o Crime. Não passo além do Correio da Manhã, e é só quando o rei faz anos.
ResponderEliminarDe qualquer modo, uma foto de um cadáver, mesmo em rigor mortis, não é, em geral, a mesma coisa que a foto de um cadáver enforcado, pois não?
JB