quarta-feira, 1 de julho de 2015

Bandeira e multidão, dois símbolos nacionais.

 
 

 

         A bandeira existe como símbolo de unidades político-geográficas há milhares de anos, mas só com a crescente inclusão dos habitantes de cada país no sistema político, económico e militar ela passou a identificar-se não apenas com o «país» mas também com a «nação». A longa guerra nacional da Holanda contra a Espanha associou a sua bandeira e suas cores (vermelho, branco e azul) à forma republicana de governo e à liberdade. Depois da Revolução de 1789, a França adoptou as mesmas cores, desta vez num formato vertical[1].
         Fazendo coincidir, grosso modo, os conceitos de país e de nação, a bandeira nacional acompanha essa reorientação da estrutura político-ideológica, passando a simbolizar não apenas o país mas o conjunto dos seus cidadãos ou habitantes. «Dada a ubiquidade das bandeiras no mundo moderno e os seus usos múltiplos, há surpreendentemente poucos estudos das ciências sociais sobre as bandeiras», mas os que há centram-se em torno de «dois temas relacionados de perto: etnicidade, nacionalismo, patriotismo e identidade etno-nacional» (Jenkins, 2007).  De símbolo de um (país) para símbolo de muitos (nação), a bandeira funciona como um totem para a comunidade, como argumentam Marvin e Ingle numa perspectiva durkheimiana do mais universal dos símbolos nacionais modernos (Marvin e Ingle, 1999). A bandeira tem uma utilização simbólica formal e grave ao nível do Estado e das relações internacionais, mas o seu valor efectivo deve-se também ao facto de se infiltrar nas consciências e na memória visual ao nível da vida quotidiana (Billig, 1995) e do nacionalismo informal (Eriksen, 1993).
         Símbolo de uma comunidade, a bandeira funciona como sinédoque visual. Ao ver-se a bandeira, «vê-se» o conjunto de pessoas da unidade política nacional que ela representa. Sendo ela um símbolo geralmente muito abstracto, esta associação automática bandeira-nação é afinal um constructio cultural e histórico de longa fermentação. O significado que se atribui à bandeira nacional, em qualquer caso, «baseia-se puramente em conotações culturais partilhadas» (Hartley, 2002: 223). O valor assumido pela bandeira cresce de forma logarítmica em relação àquilo que ela é fundamentalmente, um pedaço de pano rectangular pintado com certas cores e formas. O seu valor supera em determinadas circunstâncias o referente que representa (o país, a nação) e que é menos fácil de «agarrar» do que o símbolo, como Durkheim já comentava a propósito dos símbolos totémicos em relação ao próprio totem: «chega-se ao resultado notável de as imagens do ser totémico serem mais sagradas que o próprio ser totémico.» E acrescentava que o signo «toma o  lugar» do referente, «é a ele que são reportadas as emoções» que o referente provoca,
 
é ele que é amado, temido, respeitado, é a ele que se mostra reconhecimento, e é a ele que se prestam sacrifícios. O soldado que morre pela bandeira, morre pela pátria, mas, de facto, na sua consciência, é a ideia de bandeira que ocupa o primeiro plano, pode até mesmo acontecer que seja aquela a determinar directamente a acção (Durkheim, 2002: 138 e 229-30).
 
         A multidão, apesar de reunir um número geralmente grande de pessoas, é também uma sinédoque quando formada para, e vista como, representação de um conjunto ainda maior. No caso de multidão nacional, isto é, uma multidão que luta pela nação ou a celebra, estamos perante um símbolo coincidente com a bandeira nacional no que respeita ao objecto que qualquer delas simboliza, isto é, substitui; no caso, a nação. A bandeira é, todavia, um símbolo mais distante na sua linguagem do signo que representa, pois não há ou quase não há qualquer relação entre o rectângulo colorido e geométrico de uma bandeira e o conjunto das pessoas de uma nação. Neste aspecto, a multidão, sendo formada por pessoas, está mais próxima da nação na sua linguagem do que a bandeira. Quase que a poderíamos considerar como um índice, pois onde há multidão nacional há nação como «onde há fumo há fogo». É por isso que a multidão é muitas vezes usada como representação de uma nação, sem o recurso à bandeira. Em termos retóricos, a multidão é, assim, uma sinédoque visual. A sua presença como representação nacional é mais emotiva (por ser formada por seres humanos) e de efeito muito mais eficaz, pela associação que estabelece entre o observador e outros indivíduos. De facto, o indivíduo sente a nação em primeiro lugar como comunidade de pessoas pela simples razão de que
 
o membro de uma nação não se vê sozinho. Tão logo ele é designado ou se autodesigna como tal, algo mais abrangente penetra-lhe a imaginação, uma unidade mais ampla à qual ele se sente ligado. A natureza dessa unidade não é desimportante, assim como tampouco o é sua ligação com ela. Não se trata simplesmente da unidade geográfica de seu país (...) Tampouco pensa ele em sua língua (...). Significado ainda menor tem para o homem normal a história de sua nação.. (...) A unidade mais ampla à qual ele se sente ligado é sempre uma massa ou um símbolo de massa (Canetti, 1995: 168).[2]
 
         Neste ensaio, pretendo mostrar a relação entre os dois símbolos – bandeira nacional e multidão nacional – em diversas representações mediáticas, quase todas na pintura. Se a bandeira ou os estandartes há muito surgiram na pintura, nomeadamente em representações religiosas ou de combates ou guerras, a relação do símbolo nacional com o sentimento patriótico e com o nacionalismo acentua-se no século XIX (v. Gottlieb, 1962). O ponto de partida é o quadro de grandes dimensões que Eugène Delacroix pintou em 1830 comemorando a revolução de Julho desse ano que colocou Luís Filipe no trono (Museu do Louvre, Paris; Figura 1). O quadro chama-se A Liberdade Guiando o Povo no 28 de Julho de 1830. A imagem é eminentemente revolucionária: decorre no novo espaço público, a rua, espaço urbano, como se vê pelos prédios ao fundo; há mortos no chão; os combatentes, representando os burgueses e o «povo» estão armados e avançando para a luta, que prossegue, como indicia o fumo de canhões ou incêndios elevando-se por trás do grupo principal; acima deles, sobressai uma mulher de peito ao léu – simbolizando a liberdade como nova religião - com a bandeira tricolor tão levantada que «rebenta» até com o limite superior do quadro; o quadro representa a multidão dos vivos e a multidão dos mortos, pois também estes são parte da «nação» ou representam a vitória sobre o inimigo[3]; os paus de bandeira e as armas levantadas a perder de vista indicam que a liberdade guia um grupo significativo de pessoas, mas, sendo propósito do pintor que o observador não possa ver o final do grupo, cria-se a representação colectiva, em parte visual, em parte mental, de que a liberdade guia efectivamente todo o povo – e para que o observador não tenha qualquer dúvida a esse respeito o título do quadro utiliza a reconfortante capacidade abstraccionista da linguagem das palavras para dizer que é mesmo «o povo» que «a liberdade» «guia».
As personagens do quadro estão esteticamente organizadas (e decerto também politicamente correctas para os vencedores, o que os símbolos presentes em cada uma comprovam), mas há também uma certa confusão própria dos conflitos de rua e de multidão revolucionária – neste caso não apenas revolucionária mas também nacional, o que a bandeira erguida pela Liberdade estabelece em definitivo: a tricolor era usada desde as jornadas multitudinárias de 1789 (com as três barras horizontais, como na Holanda; Figura 2) e era a bandeira da França desde 1794, mas fora substituída com a restauração de 1814, sendo reposta com a revolução representada por Delacroix.[4]
 

Figura 1. E. Delacroix, A Liberdade Guiando o Povo no 28 de Julho de 1830
 
 
Figura 2.Tomada da Bastilha
 
         A Liberdade do quadro de Delacroix fez um longo percurso, transformando-se em Portugal em república na iconografia dos republicanos e depois do novo regime república de 1910, mas o «povo» mudou de figura: a multidão que acompanha a república é numa litografia de finais do século XIX a soma de uma centena de membros do partido republicano (com os principais dirigentes à frente) a que se soma a multidão sem nome até ao horizonte (Figura 3). Nessa litografia, bem como noutras imagens semelhantes, a mulher-república figura como símbolo de corpo presente, de tal forma numa escala desproporcionada com as outras personagens, que deixa de funcionar o seu papel de líder («a liberdade guiando o…»). A sua posição estática, frontal e simétrica sublinha o lado religioso do símbolo. As outras personagens estão ao seu serviço, mas são os dirigentes republicanos quem lidera o «povo». A bandeira é republicana, mas não ainda a nacional, apenas da multidão representada graficamente. Pretende-se que esta multidão cresça até ao infinito, até corresponder à «nação» com a implantação da república.
 


Figura 3. «Pela República», litografia com membros do partido republicano mais evidentes na época da propaganda
 
         O pintor Veloso Salgado recuperou o movimento da mulher símbolo e o seu papel dirigente no quadro alegórico à eleição republicana da Câmara Municipal de Lisboa de 1908 (Figura 4). A república está envolvida na bandeira com as cores republicanas (ainda não a bandeira nacional) e dirige a multidão republicana que enche a Praça do Município. Trata-se de um momento muito concreto da luta republicana: a vitória nas urnas em Lisboa parece tornar possível a via eleitoral para a tomada do poder. A multidão é chefiada pelas figuras republicanas mais proeminentes que, em vez das armas dos revolucionários de 1830, agitam o boletim de voto que depositam um a um na urna que outro símbolo antropomórfico segura com firmeza: para quem não o identifique, o pintor pôs-lhe uma bandeira vermelha na mão com a palavra «sufrágio». Em 1908 o sufrágio era de tal forma identificado como caminho político para a vitória republicana que este sufrágio tem a calma dos deuses, é homem e recebe o apoio suplementar da república feminina, aqui quase uma sereia que chama a multidão ao voto. A mão esquerda da república não levanta uma bandeira revolucionária mas uma inscrição com a referência ao acto de 1908 e a mão direita aponta para a urna e a mão do sufrágio que segura a urna com firmeza. Tal como na litografia «Pela república», esta multidão tem líderes identificáveis (Teófilo Braga, Bernardino Machado, Afonso Costa, António José de Almeida, Manuel Arriaga) e massa anónima. Um ano depois desta eleição, os republicanos optaram no congresso de Setúbal (1909) pela via revolucionária, mas golpista (História, s.d.: 539).
 

Figura 4. Veloso Salgado, Alegoria à eleição dos candidatos republicanos à Câmara Municipal de Lisboa em 1908
 
 
Figura 5 Charles Alexander Smith, L'Assemblée des six-comtés, 1890
 
 
 
Figura 6 Henry Nelson O'Neil, The Parting Cheer, 1861
 
No mesmo período, outras pinturas juntam a multidão e a bandeira nacional de forma mais evidente (figura 5, Canadá) ou mais discreta (Figura 6). Enquanto a primeira responde à necessidade de afirmar a simbiose entre a multidão e um episódio da luta patriótica dos canadianos do Québec contra o governo britânico em 1837, dando-se muito destaque às bandeiras, no quadro britânico a presença da «Union flag» é muitos discreta, embora esteja no ponto mais alto da multidão. O pintor britânico não necessitava de afirmar o patriotismo, quer pelo tema quer porque esse patriotismo estava bem arreigado nas massas. Este quadro representa a partida de emigrantes, provavelmente para a América. A multidão em terra inclui elementos de várias condições sociais, idades e um negro, não havendo qualquer dúvida quanto à representação da nação. A emigração representa a divisão da nação. A multidão está dividida em dois – uma parte em terra, outra no navio – e entre os que ficam a subdivisão em grupos é notória. Todavia, acima da multidão dividida permanece a nação representada pela bandeira. Nenhum dos presentes na despedida o sabe, ocupados como estão pelas emoções dilacerantes da despedida, nem mesmo o porta-bandeira da ocasião - uma criança de tenra idade, que sorri transportando em si o futuro da pátria.
         A presença crescente da bandeira nacional na pintura do século XIX, corresponde ao peso crescente do nacionalismo na política, que ocorre em simultâneo com o seu contrário, o internacionalismo. A bandeira vermelha também ocorre na pintura da época. Mas neste ensaio interessa prosseguir na representação simbiótica da multidão e da bandeira nacional. Os quadros seguintes, impressionistas ou realistas, três franceses, um norueguês e um norte-americano, mostram uma relação diferente entre a multidão nacional e o seu símbolo visual máximo.
Os quadros de Claude Monet, La Rue Montorgueil. Fête du 30 juin 1878 e Rue Saint-Denis, fête du 30 juin 1878 foram pintados nesse dia 30 de Junho. Representam a festa nas ruas embandeiradas por ocasião da Exposição Universal em Paris (Figuras 7 e 8). O dia foi declarado feriado pelo governo. Esta primeira festa nacional autorizada em França desde 1871 chamou-se Festa da Paz; marcou a recuperação da França depois da desastrosa guerra contra a Prússia e da Comuna de Paris (1870-1). O entusiasmo em Paris foi enorme; meses depois desta explosão colectiva de alegria e paz, ocorreu a implantação da III República.[5] No primeiro quadro Monet mostra a multidão longitudinalmente às linhas verticais do quadro. As margens laterais são estabelecidas pelos prédios da rua que, ao fundo, na sua ligeira curvatura, acabam por ocupar a parte central. A agitação é impressionante, com a vibração das bandeiras e as pequenas pinceladas na multidão sugerindo o movimento das pessoas. Centenas de bandeiras nacionais presas junto das janelas de ambos os lados da rua dão uma vibração adicional à cena de multidão e participam com ela no «abraço» nacional: de um lado ao outro, elas quase se tocam, elas chamam-se umas às outras. Nada é descrito com precisão, tudo é impressão. Nenhum indivíduo se destaca da massa, nenhuma bandeira se sobrepõe, nenhum prédio merece atenção especial: esta é uma representação de multidão em festa em que a massa de gente, a massa de bandeiras e a massa de prédios – a cidade - se juntam em unidade, sem conflito, e se  fundem numa só acção e  movimento. No segundo quadro a fusão cidade-multidão-bandeiras é ainda mais completa. Também aqui Monet adoptou uma perspectiva elevada das ruas, de que estes dois quadros são dos primeiros exemplos na pintura da época (Musée d’Orsay, 1989: 92). Essa perspectiva é habitual na literatura quando se trata de observar a multidão pois permite ao observador ou autor abarcá-la em conjunto sem se misturar com ela (por ex., sobre a multidão de Lourdes em Zola e Huysmans, ver Torres, 2007). O júbilo da multidão e a ligação entre o povo na rua e o povo à janela são evidentes. As bandeiras dos dois lados da rua contactam ou sobrepõem-se visualmente, cobrem parcialmente a multidão, dominam o espaço. Os prédios perdem a individualidade, como cada bandeira e cada pessoa, obtendo-se a unidade  de todos os elementos. O centro visual do quadro, onde o vértice do triângulo do céu encontra o vértice do triângulo da multidão, introduz  um conceito de infinito no momento captado, no movimento e na multidão. O efémero assim captado como que diz que nada voltará a ser como era antes. A multidão eleva acima de si as imagens dos seus seres totémicos: numa bandeirola inscreve-se um viva à França, numa bandeira um viva à República.
Da janela de sua casa, Édouard Manet pintou uma tela com o mesmo tema, Rua Mosnier com Bandeiras (Figura 9). O contraste com a vibração dos quadros de Monet é enorme: só as bandeiras os assemelham. A discreta rua está quase deserta; de um lado da rua, uns transeuntes burgueses; do outro, um aleijado (pedinte?, vítima da guerra franco-prussiana?) e, entrando em cena, um trabalhador transportando uma escada. As personagens representam, desse modo, a população urbana. As dezenas de bandeiras presas nos prédios pairam acima dos transeuntes numa rua onde os poucos que passam não participam do seu significado naquele dia feriado. Mas estão lá, dando um significado à composição. Enquanto Monet pintou a festa nacional de uma multidão feliz, pacífica, comemorando-se a si mesma, sem adversários, Manet pintou o patriotismo informal e do quotidiano, aquele que se manifesta por pôr a bandeira à janela como quem põe um vaso de flores e sair à rua em trabalho ou passeio.
             

 

Figuras 7 e 8. Claude Monet, La Rue Montorgueil. Fête du 30 juin 1878 e Rue Saint-Denis, fête du 30 juin 1878
 
 
 
Figura 9. Manet, Rue Mosnier com Bandeiras
 
         Nos dois quadros seguintes, as bandeiras adquirem uma importância mais formal, menos espontânea. O pintor norueguês Christian Krohg mostra no óleo 17 de Maio de 1898, datado desse ano, o desfile da multidão patriótica no 84º aniversário da declaração da independência de 1814, que a Suécia impediu meses depois; a ligação com a Suécia só terminou em 1905 (Figura 10). Em 1898 ocorreu um episódio com a bandeira, tendo os noruegueses recusado a inclusão do símbolo da união na bandeira, que fora proposta em 1814, a primeira distintamente norueguesa e expressão da oposição local à Suécia.[6] No quadro pode identificar-se o tipo social dos manifestantes, as várias idades, homens, mulheres e crianças, mas o objectivo de Krohg não é o de individualizar as pessoas, antes o de pintar a multidão nacional. A multidão perde-se de vista, sendo uma massa indistinta na maior distância. Krohg não deixou que a multidão assustasse o observador, criando um espaço «livre» de paisagem verde que é mais «forte» do  que  a  massa,   comprimindo-a e  obrigando-a a um desvio  ao  mesmo
 

Figura 10. Christian Krohg, 17 de Maio de 1898
 
tempo que lhe fornece um ângulo recto quase no centro geométrico do quadro e uma maior vivacidade ao movimento da multidão. É, todavia, a bandeira nacional que dá significado visual ao quadro: a bandeira, a única, está à frente da multidão, em primeiro plano, está, para o observador, antes de qualquer outro elemento do quadro. A bandeira não tapa senão um pequeno número de manifestantes, mas o seu lugar na composição é mais um elemento que não deixa dúvidas de que a nação no seu conjunto está à frente e é o objectivo de cada um dos seus membros.
O quadro de Childe Hassam, Allies Day, May 1917, pintado nesse ano, é um entre mais de duas dezenas que pintou de bandeiras dos aliados em Nova York durante a Guerra.[7] Os EUA tinham entrado no conflito um mês antes, em Abril de 1917 e neste dia foi a primeira vez que as bandeiras da Grã-Bretanha, França e norte-americana tinham sido desfraldadas juntas na rua, neste caso na 5ª Avenida em Nova York.  Representa os mesmos três elementos das telas de Monet  – cidade, multidão, bandeiras – mas num modelo bastante diferente e levando até ao limite a representação do símbolo nacional avançada por Krohg (Figura 11). Ao contrário da transformação por Monet de todos os elementos numa unidade única, no quadro de Hassam os edifícios e as bandeiras nacionais dos aliados na 1ª Guerra Mundial que enfrentavam as forças dirigidas pela Alemanha nos campos europeus estão bem delimitados e são  perfeitamente identificáveis.
 


Figura 11. Childe Hassam, Allies Day, May 1917
 
E, pela primeira vez, encontramos a multidão não só quase tapada pelas bandeiras como elemento quase dispensável da composição. A multidão, que seria visível numa grande extensão da avenida não fosse o ponto de vista do pintor, é em grande extensão ocultada pelas bandeiras, que se tornam o elemento dominante: a multidão perde a sua supremacia representacional, sendo substituída pelas bandeiras. Aqui, os países estão acima das nações.[8] O que conta é a bandeira e o seu poder de representação. O New York Times de 13.05.1918  descrevia longamente o êxito de Hassam na pintura das bandeiras, deixando para o final uma breve referência ao ambiente urbano e à multidão: «Vêem-se as paredes dos edifícios em cinzento suave e há um vislumbre das multidões nas ruas.»[9]
A 1ª Guerra Mundial acentuou nacionalismos e nessa conjugação as nações puderam ser encaradas «como se fossem religiões. E elas de facto têm a tendência a, de tempos em tempos, assumir essa forma. A disposição para tanto está sempre presente; nas guerras, as religiões nacionais se aguçam» (Canetti, 1995: 168). A guerra tem ainda outra consequência: «o sacrifício violento de sangue faz que os grupos sofredores se unam» (Marvin e Ingle, 1999). Essa coesão repercute-se no uso e ligação à bandeira.
Antes do impressionismo tardio de Hassam, os futuristas italianos faziam também a representação da bandeira e da multidão pressionando pela intervenção no conflito. O movimento defendia as glórias da guerra e a sua capacidade de proporcionar inovação estética. Antes da entrada da Itália na guerra em 1915, os futuristas intervieram publicamente exigindo a intervenção (Martin, 2005: 66) Em 1 de Agosto de 1914, Carlos Carrà publicou a colagem Manifestação Intervencionista no jornal Lacerba sob o título Festa patriotica-dipinto parolibero (Figura 12). Trata-se de uma obra de propaganda política onde é possível encontrar a bandeira italiana duas vezes bem como a palavra Itália no centro do vórtice da composição. A multidão nacional está presente mas não numa representação directa. Explicou Carrà: «Suprimi qualquer representação de figuras humanas tendo em vista conseguir representar a abstracção plástica do tumulto urbano» (idem, ibidem). Quer dizer, enquanto a bandeira, pelo seu simbolismo abstracto, é reproduzida, já a cidade e a multidão estão abstractamente presentes. Carrà substituiu as imagens pelos símbolos linguísticos («cidade moderna», «rumores», estrada», «sirene», «bicicletas», «peões na Praça»,) por onomatopeias de ruídos urbanos («traaak tatatraak» e as do título dum romance de Filippo Tommaso Marinetti de 1914, «Zang [T]ummTuum») ou ainda pela colagem dum título de imprensa, Corriere della Sera. Tais elementos já seriam suficientes para gerar a imagem cerebral do «tumulto urbano», mas Carrà acrescentou outros símbolos linguísticos próprios de manifestações de massas: «E vviiiivaaaa o Reeei», «E vvivaaa o Exército» «Abaixooooo». Tal já suscitaria a imaginação de uma multidão nacional num ambiente urbano, mas Carrà inclui a própria palavra «folle», «multidões», na sua colagem (Figura 13). Desta forma, os mesmos elementos que encontrámos em Delacroix e depois em Monet, por exemplo, aparecem nesta obra do futurismo italiano. A expressão artística é outra, a realidade político-sociológica é a mesma, embora em contextos diferentes.
 
 

Figuras 12 e 13. Carlos Carrà, Manifestação Intervencionista, 1914, e detalhe
 
Primo Conti, em Dimostrazione Interventista, 24 Maggio 1915, cria uma relação desconcertante entre cidade, bandeira e multidão. Esta manifestação realizou-se no dia em que a Itália entrou em combate na I Guerra Mundial, depois da declaração de guerra no dia anterior.[10] Tal como Monet e Hassam, Conti adopta a perspectiva do observador exterior à multidão, colocando-se num ponto elevado. Mas, ao contrário deles, Conti faz da manifestação um elemento normal da vida urbana, como qualquer outro, como o eléctrico que ocupa o centro, como o relógio que se prepara para dar cinco horas, como os transeuntes que observam a manifestação ou seguem os seus caminhos. A manifestação visível é a cabeça do cortejo, é uma pequena parte ou a totalidade? As hipóteses ficam em aberto. Parece que o mais importante é acentuar a normalidade da vida urbana com manifestações, mas as discretas bandeiras no prédio do lado direito e algures no lado esquerdo indicam que esta manifestação concreta, favorável à intervenção na guerra, representa a cidade, como o eléctrico ou os transeuntes que passam (Figura 14).
 

Figura 14. Primo Conti, em Dimostrazione Interventista, 24 Maggio 1915, 1915
 
Uma outra representação do mesmo acontecimento é de outro universo: a Manifestação Patriótica pintada por Giacomo Balla, um expoente do futurismo italiano, em 1915, sublima em formas quase abstractas os mesmos três elementos: cidade, multidão e bandeiras nacionais (Figura 15). A cidade voa, as bandeiras voam, a multidão segue por ruas que voam; o movimento é o mais importante. A multidão transporta bandeiras que marcam a paisagem urbana ou esvoaçam em espirais, mas a massa de gente é apenas uma mancha negra, instrumento das cores da bandeira. Tal como nos quadro de Hassam e Conti e menos no de Monet, a bandeira nacional – ou melhor, o nacionalismo – sobrepõe-se aos que são a sua razão de ser. A nação serve a bandeira, não o contrário.
         A multidão nacional, portanto, caminha para diluir-se na bandeira. É absorvida, artisticamente, simbolicamente, politicamente. É o que sucede na prática num dos outros quadros do mesmo tema que Balla pintou em 1915: Formas-Volume do Grito ‘Viva Itália’, no qual uma massa abstracta do terreno ou de gente é aspirada por um vórtice no céu formado pelas cores da bandeira italiana (Figura 16). [11]
        


Figura 15. Giacomo Balla, Manifestação Patriótica, Museo de Arte Thyssen-Bornemisza, Madrid
 
 
Figura 16. Giacomo Balla, Formas-Volume do Grito 'Viva Italia', 1915, Galeria Nacional de Arte Moderna, Roma
 
         Que dizer das bandeiras do seu país que o norte-americano Jasper Johns pintou cerca de 1954-5? (Figura 17). O quadro coincide em larguíssima medida com o referente. Esta sobreposição do quadro sobre a bandeira surge num país, os EUA, onde o culto deste símbolo é muito mais intenso nos indivíduos e nos colectivos do que na Europa. Os Estados Unidos são também o país em que um sistema político democrático inclusivo levou ao rápido desaparecimento do conceito de multidão da linguagem sociológica, sendo substituído, a partir de Robert Park, pelo eufemismo comportamento colectivo (Park, 1972), a ponto de na década de 1950 dois sociólogos poderem afirmar que o conceito alargado de multidão «hoje, ao escrever-se, parece estranho» (Turner e Killian, 1987: 2). A seguir à 2ª Guerra Mundial, o tempo da multidão tinha sido substituído pelo tempo dos indivíduos da «multidão solitária» (Riesman, s.d., 1ª ed. 1950). Independente da eventual intenção do pintor a respeito da representação da bandeira, e independente do seu resultado mais evidente (o símbolo nacional como ícone pop), a transformação da bandeira num objecto identificado como obra de arte, confinando o quadro à bandeira (mais do que o contrário, dado o poder do símbolo), representa o final do processo iniciado com o surgimento do símbolo nacional na arte após a Revolução Francesa: a bandeira, que representa a nação, junta-se à multidão nacional; depois, esta perde presença e é «sufocada» pela bandeira; em Johns, a multidão desaparece por completo porque a bandeira a representa sem necessidade de uma por vezes perigosa assembleia multitudinária. A multidão parece estar «por trás» do quadro de Johns, ou parece que está a vê-la, como seu espelho. E desta forma, a bandeira acaba aqui por ser na arte o que há séculos pretendeu ser na política e na rua: o símbolo nacional. Johns junta a capacidade transcendental da arte à capacidade simbólica do objecto. A multidão nacional, que é uma forma de visibilidade da nação, volta a tornar-se invisível porque a bandeira readquire nesta obra de arte a sua função simbólica sem a sobrecarga de outras formas de representação da nação.
 

Figura 17. Jasper Johns, Flag, 1954-5
 
A história poderia acabar aqui, mas não. A última revolução nos EUA foi também a primeira, e já tem mais de 200 anos. Noutros países, a revolução acontece. A multidão reaparece, logo existe, logo reaparece também na arte.
         Em 1974, o golpe militar transformado em revolução em Portugal recolocou a multidão nas ruas nas mais diversas formas: controladas, descontroladas, zangadas, alegres, conflituosas, encarniçadas. O grupo de artistas Puzzle, do Porto, realizou em 1976 uma pintura colectiva, a Bandeira Nacional (Figura 18). Tal como as bandeiras de Johns, esta coincide com os limites do quadro, mas os pintores do Puzzle intervieram muito mais do que Johns sobre o símbolo nacional – e a multidão reaparece. Não no lado esquerdo, que representa o período anterior a 25 de Abril, mas do lado direito, vermelho. Uma das peças do puzzle apresenta, misturados, símbolos de inúmeros partidos existentes na época, exprimindo o caldo político efervescente da democracia nascente; e ao centro, por trás da esfera armilar e à sua direita, aparece a representação duma manifestação ordeira com bandeirolas e mais bandeiras nacionais: dentro da bandeira nacional a multidão empunha a bandeira nacional – um pleonasmo de um pleonasmo, camadas sobrepostas de símbolos convergentes no seu significado preferencial: a nação (Figura 19). A continuidade democrática do regime norte-americano proporcionava a cristalização artística da bandeira nacional de Johns na sua redução ao próprio símbolo visual, enquanto a ruptura política de 1974 convidava os artistas do Puzzle a juntarem-se para uma mesma pintura da bandeira nacional – logo aí consumando-se um primeiro acto de associação colectiva em torno do símbolo visual máximo e institucional da nação – em que essa ruptura se exprime na divisão bicolor da bandeira e na explosão multitudinária da vida política e da manifestação na rua.






Fig. 18. Nikias Skapinakis, Delacroix no 25 de Abril em Atenas      


      

 
 
Figuras 19 e 20. Grupo Puzzle, Bandeira Nacional, e detalhe
 
         Este é o primeiro caso em que encontramos a multidão dentro da bandeira. Trata-se de uma comparação visual (a bandeira é nação tal como a multidão) ou de dar visibilidade à metáfora presente na bandeira (representando ela a nação, a presença da multidão patriótica, revolucionária e/ou democrática, reforça a metáfora, torna-a visível, sendo essa visibilidade o significado preferencial da multidão).
Todavia, é possível levar ainda mais longe a identificação entre a multidão e a bandeira, criando representações em que uma é a outra. Sendo essa identificação total, não a encontramos nas formas mais artísticas – que recorrem quase sempre à ocultação – mas antes em formas mais vernáculas de representação. É o caso da «bandeira americana viva» formada por cerca de duas mil crianças das escolas públicas de Chicago numa cerimónia em 1892 de apresentação da Exposição Colombiana na Feira Mundial realizada em Chicago no ano seguinte e que atraiu mais de 27 milhões de visitantes (Figura 20). A multidão é a bandeira, a bandeira é a multidão: identificação total. As duas formas visuais (colectivo de crianças e bandeira) cumprem a sua função de mostração e a sua função simbólica visual: ambas são para se ver, ambas são para significar a nação americana. A função de mostração é neste caso sine qua non: esta bandeira humana parece ter sido feita para o registo fotográfico. Adequa-se perfeitamente à era da fotografia e do cliché, com a multidão parada e disposta de modo a caber na objectiva do fotógrafo. A multidão de crianças é uma pura representação. As crianças são reunidas, vestidas das cores adequadas e organizadas na escadaria de forma a construírem a bandeira americana com o único objectivo de simbolizar o seu país  e o êxito da cidade e do país (sobre os aspectos específicos, ver Esteve, 2007: 127-36). Não há nada de espontâneo. Não há «manifestação» adicional à de fazer parte da multidão americana. Não há adesão livre à multidão nem esta se movimenta. A multidão, como a bandeira, como a nação que ambas simbolizam, é «imutável», «eterna». A multidão é formada por crianças, o que corresponde à concepção da época da multidão segundo a qual os seus membros têm um comportamento infantil - porque não, pois, que a multidão seja ela mesmo objectivamente infantil?  (ver, por. ex., Tarde, s.d: 148). Mas não é uma multidão desregrada, pelo contrário, obedece formalmente aos adultos que se vêem espalhados nas margens da formatura e simbolicamente à nação. É certo que as crianças de hoje serão os cidadãos de amanhã, mas, é difícil acompanhar o argumento de Esteve (2007: 132-3) sobre a presença do conceito da individualização do indivíduo ao analisar esta fotografia. Pelo contrário, ela confirma a submissão do indivíduo (ainda por cima criança) à massa, à nação, sendo nisso um documento historicamente coerente com as concepções e representações correntes das massas e dos povos no final do século XIX e início do século XX.
 


Figura 21. Live American flag, World’s Columbian Exposition Illustrated, 1893, Chicago
 
Voltamos a encontrar a total identificação de multidão e bandeira nacional num projecto publicitário de 2006 de um banco português fortemente institucional, o Banco Espírito Santo, em conjunto com o poder mediático (apoio da SIC) e o poder desportivo, a Federação Portuguesa de Futebol (o que equivale grosso modo ao poder político). Não se tratou apenas de um projecto publicitário privado, mas de um projecto público, ao envolver não só as duas instituições como a mobilização de milhares de figurantes para formar a bandeira nacional («a mais bela bandeira do mundo») no Estádio Nacional, no Jamor. Compareceram 300 mil mulheres (Jornal da Noite, SIC, 20.05.2006) e participaram na bandeira, segundo os anúncios do BES, 18788 voluntárias respondendo ao apelo de uma intensa campanha publicitárias multimeios. A iniciativa destinava-se a mulheres, o que, 114 anos depois da bandeira de Chicago, permite uma leitura ainda dentro dos conceitos psico-sociais daquela época. De facto, identificava-se o comportamento colectivo da multidão não só às crianças como às mulheres: «por todo o lado as multidões são femininas» (Le Bon: 1998: 19). O facto de a iniciativa poder ter interesses comerciais do banco e da federação futebolística junto do público feminino não permite afastar a ligação nesta campanha do conceito de multidão à mulher, que vimos já há muito estabelecido (a Liberdade mulher guiando o povo homem, a república mulher acompanhando os homens republicanos, a nação mãe-pátria...). A publicidade do banco centrou-se na ideia de que «não é por acaso que bola, equipa, claque e bandeira são palavras femininas» (Figura 21). As mulheres que foram ao Estádio Nacional ovacionaram os homens da Selecção Nacional de Futebol (que ali se deslocou propositadamente para receber esse aplauso, como se vê na Figura 22), da mesma forma que os homens no quadro de Delacroix ou na iconografia republicana se relacionam com o sexo oposto simbolicamente representado.
As imagens da bandeira formada no Estádio Nacional são idênticas na simbologia às da Exposição de Chicago, beneficiando naturalmente da cor, do movimento, dos meios audiovisuais e aéreos. As imagens foram  usadas nos noticiários da SIC e em vários anúncios publicitários televisivos  do BES, mostrando em alguns planos rápidos a formação da bandeira, isto é, o crescimento da multidão e a formação de uma nova representação nacional, até à sua completação (ver anúncios televisivos do BES). Tal como em Chicago, o objectivo no Jamor era formar uma multidão para ser vista e registada visualmente.

 

 

Figuras 22 e 23. Anúncios de imprensa do BES após a formação da multidão-bandeira no Estádio Nacional


 
 
 
Figuras 24 e 25. Anúncios de imprensa do BES após a formação da multidão-bandeira no Estádio Nacional
        
A publicidade em movimento acentuou a formação progressiva da bandeira, mas qualquer um dos anúncios de imprensa (figuras, 21, 22 e 24) ou outdoors (Figura 23)  também pretendeu transmitir a dinâmica de crescimento da multidão quer pela multiplicação de fotos quer pelo movimento das figurantes (Figuras 23). Quer as notícias quer a publicidade sublinharam que vieram mulheres «de todos os cantos do país» (Figura 24), ou seja, a multidão é, também dessa forma, coincidente com a nação simbolizada pela bandeira. No caso em apreço, a multidão da bandeira absorveu a multidão das bancadas (Figura 24, à direita), o que acentuou o significado simbólico da imagem humana no relvado e o objectivo mediático e publicitário da iniciativa para a sua transformação em registos para uso mediático e memória futura.
         Em relação à bandeira humana de Chicago, a do Jamor tem duas características importantes que vale a pena salientar. Em primeiro lugar, o Jamor tem um plus próprio do nosso tempo: a presença e a afirmação livre do indivíduo na iniciativa colectiva. Os anúncios do BES apresentavam pessoas concretas (pessoas «conhecidas»  da televisão, como a apresentadora Fátima Lopes ou a actriz Rita Salema, em diversos anúncios anteriores à iniciativa, pessoas comuns em anúncios posteriores, como nas figuras 22 e 24). Coube às reportagens televisivas acrescentar a vox populi que confirmava o assentimento com a iniciativa, o consenso em seu redor («nacional», o que é indicado também pela referência à presença de camionetas vindas de todo o país) e o equilíbrio entre o ser individual e aquela efémera colectividade (ver Jornal da Noite, SIC, 20.05.2006).
O indivíduo concorda com a formação de uma multidão ordenada em formato de bandeira nacional. O indivíduo entrega-se a uma actividade (implicando deslocações, despesas, tempo) que lhe dá satisfação pessoal através da ligação à multidão enquanto símbolo duplo da nação (em si mesma e no formato bandeira).
Este equilíbrio do Eu e do Nós nos participantes exprime-se nesta representação maior que a vida da bandeira nacional, mas ocorre hoje em muitas outras ocasiões de manifestações colectivas de índole nacional – e naquele mesmo dia, como as reportagens mostraram: os indivíduos mostram o «Nós» nacional que há em si transformando o seu próprio corpo em símbolo nacional. Nesta arte de rua, nesta vernácula arte de multidão, pois parece só ocorrer em dias especiais como os de grandes competições desportivas entre «nações», os indivíduos  vestem-se das cores da bandeira, forram o corpo de cachecóis, lenços, T-shirts, barretes, chapéus, xailes e muitos outros adereços que uma imaginação por vezes prodigiosa inventa com as cores da bandeira e pintam-se das mesmas cores, como se tatuassem a nação na própria pele, inscrevendo a colectividade no seu corpo individual (Figuras 21 e 22). Na iniciativa do BES, SIC e FPF, as tatuagens tanto foram iniciativa espontânea (Figura 22, no alto à direita) como encenação publicitária (Figura 23).
  
 
 

Figuras 25 e 26. Adeptos gregos e portugueses em jogos do Euro 2004
 
Esse envolvimento leva-nos à segunda diferença entre Chicago e o Jamor. A bandeira portuguesa de 2006 foi uma multidão destinada a uso publicitário. A multidão tornou-se uma mercadoria como qualquer outra. O seu uso foi múltiplo, dadas as entidades envolvidas, mas em qualquer caso o objectivo foi o de uma representação mediática de simbolismo imediato. Nos últimos anos, acentuou-se a representação de multidões na publicidade, distinguindo-se o caso do Jamor pelo envolvimento da bandeira nacional. Apenas dois anos antes, a utilização do hino nacional numa campanha publicitária portuguesa (PT), causou protestos e alguma indignação. Tal já não sucedeu no caso da multidão-bandeira.
Em 1912 Durkheim escreveu que nas sociedades «primitivas» a imagem do totem «torna-se sua representação, é nela que se fixam os sentimentos experimentados, porque ela é o único objecto concreto a que esses elementos podem prender-se. Continua a lembrá-los e a evocá-los depois ainda de dissolvida a assembleia» (Durkheim 2002: 230). Esse é o valor da bandeira: mantém a nação sempre viva. O papel da multidão é o de permitir a existência da nação, de a mostrar, de a tornar memória colectiva «depois de dissolvida a assembleia». As obras analisadas neste ensaio indicam a relação, por vezes completa, entre a multidão nacional e a sua bandeira, numa poderosa ligação entre o símbolo efémero (a multidão) e o símbolo permanente (a bandeira). Ao mesmo tempo, estas obras apontam para uma característica pouco realçada da multidão, neste caso da multidão nacional, e que nos parece de importância crucial: com o seu registo iconográfico (mas também literário e documental-jornalístico) a multidão não é apenas uma congregação efémera mas também uma representação perene de grande valor nas estruturas simbólicas colectivas.
 
Eduardo Cintra Torres
Caxias, Agosto de 2007
 
Lista de Figuras
 
  1. E. Delacroix, A Liberdade Guiando o Povo no 28 de Julho de 1830, Musée du Louvre, Paris
  2. Tomada da Bastilha. Gravura. Origem desconhecida,. Colhida na internet.
  3. «Pela República», litografia com membros do partido republicano mais evidentes na época da propaganda, in Montalvor, 1935
  4. Veloso Salgado, Alegoria à eleição dos candidatos republicanos à Câmara Municipal de Lisboa em 1908, CML, in Montalvor, 1935
  5. Charles Alexander Smith, L'Assemblée des six-comtés, 1890, Musée National des Beaux-Arts du Québec
  6. Henry Nelson O'Neil, The Parting Cheer, 1861, National Maritime Museum, Londres
  7. Claude Monet, La Rue Montorgueil. Fête du 30 juin 1878,Musée d’Orsay, Paris
  8. Claude Monet, Rue Saint-Denis, fête du 30 juin 1878, Musée des Beaux-Arts de Rouen
  9. Édouard Manet, Rua Mosnier com Bandeiras, Paul J.Getty Museum, Los Angeles
  10. Christian Krohg, 17 de Maio de 1898, colecção particular
  11. Childe Hassam, Allies Day, May 1917, National Gallerry of Art, Washington, DC
  12. Carlos Carrà Manifestação Intervencionista, colagem publicada no jornal Lacerba sob o título Festa patriotica-dipinto parolibero, Veneza, Collezione gianni Mattioli, Colecção Peggy Guggenheim – Fundação Solomon R. Guggenheim, Nova York
  13. Primo Conti, Dimostrazione Interventista, 24 Maggio 1915, 1915, Fondazione Primo Conti, Fiesole 
  14. Detalhe da figura anterior
  15. Giacomo Balla, Manifestação Patriótica, Museo de Arte Thyssen-Bornemisza, Madrid
  16. Giacomo Balla, Formas-Volume do Grito 'VivaItalia', 1915, Galeria Nacional de Arte Moderna, Roma
  17. Jasper Johns, Flag, 1954-5, Modern Art Museum, Nova York
  18. Grupo Puzzle, Bandeira Nacional, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa
  19. Detalhe da figura anterior
  20. Live American flag, World’s Columbian Exposition Illustrated, 1893, Chicago, in Esteve, 2007
21 a 24. Anúncios de imprensa do BES após a formação da multidão-bandeira no Estádio Nacional, iniciativa conjunta do BES, SIC e FPF, 2006
25. Adeptos gregos no Euro 2004, fotografia recolhida na internet
26. Adeptos portugueses no Euro 2004, fotografia recolhida na internet
 
Bibliografia
 
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Canetti, Elias (1995), Massa e Poder [1960], São Paulo, Companhia das Letras, 1995
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[1] flag. (2007). In Encyclopædia Britannica. Visto em 09.08.2007, em Encyclopædia Britannica Online: http://www.britannica.com/eb/article-2345
[2] A tradução portuguesa desta edição traduziu do alemão masse por massa, mas teria sido mais correcta a tradução por multidão.
[3] Sobre a multidão dos mortos e dos inimigos, ver Canetti, 1995: 42 e 65-72.
[4] France, flag of. (2007). In Encyclopædia Britannica. Visto em 09.08.2007, from Encyclopædia Britannica Online: http://www.britannica.com/eb/article-9093861
 
[6] Norway  e Norway, flag of. Encyclopædia Britannica. 2007. Encyclopædia Britannica Online. Visto em 14.08. 2007  <http://www.britannica.com/eb/article-39321>,  <http://www.britannica.com/eb/article-9093929>.
[8] O mesmo sucede noutro quadro de Hassam, Avenue of the Allies, Great Britain, 1918 (Metropolitan Museum of Art, Nova York), no qual as bandeiras dos aliados presas em fios ligando os dois prédios de ambos os lados da avenida ocupam cerca de dois terços da superfície enquanto o movimento da rua serve de apoio para a composição. Em vez de manifestações, Hassam pinta a multidão dispersa típica da cidade. O mesmo sucedia noutro seu quadro, O 14 de Julho na Rua Daunou, 1910 (no mesmo museu), no qual a unidade entre o movimento de carros e pessoas na rua, os prédios e as bandeiras é ténue. O fascínio pela bandeira é igualmente acentuado num quadro de outro pintor norte-americano, Maurice Prendergast, Piazza San Marco, cerca de 1898-9 (também no Met). A perspectiva  elevada da praça veneziana permite-lhe centrar a composição em três enormes bandeiras, as quais adquirem uma importância total, obliterando os edifícios e o espaço urbano.
[10] Italy." Encyclopædia Britannica. 2007. Encyclopædia Britannica Online. Visto em 14.08.2007  <http://www.britannica.com/eb/article-258859>.
[11] No mesmo ano de 1915 Balla pintou outras obras de simbologia semelhante, como Bandeiras no Altar da Terra Natal, (Martin, 2005: 62-3) e Canto Patriótico (visto em 14.08.2007 em http://www.futurism.org.uk/balla/balla_im147.htm).

 
 
 
 
 
 
 
 

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