Pelo final da minha estadia em
Moçambique, no Verão de 1972, foi-me
proposta, pelo funcionário do CITMO (Centro de Informação e Turismo de
Moçambique), uma visita de dois dias ao Parque Nacional da Gorongosa, situado a
Noroeste da Beira, na Província de Sofala, junto da fronteira com a Rodésia,
hoje Zimbabwe.
Tratava-se de uma reserva de animais
extraordinária, quase desconhecida do vasto mundo, quando comparada com as
congéneres reservas do Quénia e da África do Sul, internacionalmente conhecidas
e universalmente celebradas, sobretudo por meio da imprensa, da literatura e do
cinema.
A viagem entre a cidade da Beira e o
Parque Nacional da Gorongosa foi feita
numa pequena avioneta, em que eu era o único passageiro, tanto na ida como na
volta. Poucos minutos de vôo tinham decorrido, quando o piloto se volta para
mim e me pergunta se sou aventureiro, ao que eu respondi que sim, que em
princípio me considerava aventureiro. Mas que, naturalmente, dependia do género
de aventura. E foi então que o jovem piloto quis saber se eu já alguma vez
tinha dado umas cambalhotas no ar. E à minha pergunta sobre que tipo de
cambalhotas se tratava, responde-me o piloto, em tom meio brincalhão, que ele,
por vezes, gostava de fazer dar umas cambalhotas à avioneta. Quereria eu
experimentar? E, sem esperar pela minha resposta, esclareceu que, em questões
de segurança, não havia absolutamente perigo nenhum. Que a avioneta em que
estávamos viajando já estava acostumada a esse tipo de aventuras. E eu que,
desde que me conheço, sempre gostei de experimentar o sabor do exótico e do
desconhecido, prontifiquei-me imediatamente para a aventura das cambalhotas.
E foi assim que, nos vastos céus azuis
de Moçambique, sem a mínima presença de nuvens, me vi a rodopiar dentro de uma
avioneta, fazendo de conta que o medo natural que se apoderou de mim e o enjoo
que me percorria as entranhas estavam a acontecer a um eu que não era meu, pelo
que não me atrevia a pedir ao piloto que pusesse ponto final à inédita aventura
das cambalhotas. Mas ele que, certamente, estava habituado a detectar os
sintomas dos passageiros em circunstâncias dessa natureza, facilmente se deu
conta de que tinha chegado o momento de pôr termo à minha aventura. Lida a
palidez do meu rosto e o meu ar de agoniado, sugeriu-me que respirasse fundo,
ao mesmo tempo que me punha duas crackers
nas mãos e me pedia que as mastigasse devagarinho. E eu respirei fundo e
mastiguei as crackers devagarinho e
recompus-me do susto inédito e voltei à normalidade.
Pouco tempo tinha passado, quando o
piloto me diz que estávamos a aproximar-nos do Parque Nacional da Gorongosa.
Que fizesse o favor de abrir bem os
olhos e que começasse a disfrutar de tanta beleza. E à medida que a avioneta ia
descendo, as manadas de impalas e de zebras e de búfalos e de elefantes
tornavam-se cada vez mais visíveis.
De repente o piloto chama a minha
atenção para uma coisa chamada aeroporto. É que o dito aeroporto do Parque
Nacional da Gorongosa consistia apenas numa única pista de aterragem, quase
escondida no meio da savana e de uma densa floresta, assim se explicando que
quando procurei essa pista de aterragem o que vi foi uma manada de impalas que
parecia não ter fim. De maneira que o piloto teve de fazer mais de meia dúzia
de voos rasantes para afugentar as centenas de impalas da pista de aterragem, a
fim de poder aterrar sem perigo para as impalas e para nós. Que visão deslumbrante
e encantadora! De pelo luzidio, de cabeça alta e altaneira, de cauda
embandeirada, de uma elegância indescritível, velozes como o vento, as impalas
foram-se afastando em todas as direcções para que uma coisa chamada avioneta,
com dois ocupantes chamados homens, pudesse atrevidamente apoderar-se do espaço
que a elas por direito natural lhes pertencia.
Ao sair da avioneta, estava à minha
espera, como de costume, um representante do CITMO. Levado a uma modesta
pousada, chamada Acampamento Chitengo, a condizer com a natureza ambiental, fui
imediatamente conduzido a um quarto, onde a um asseio primoroso se aliava um
gosto requintado pela simplicidade. Tomado rapidamente um banho, dirigi-me à
sala de espera. Depois de me servirem um refresco de coco, se bem me recordo, o
guia do CITMO propôs-me um rápido safari, enquanto não chegava a hora do
almoço. E foi assim que saímos o guia e eu numa carocha, conduzida por um
motorista de origem goesa. Percorrido menos de um quilómetro, já estávamos a
ver enormes elefantes e zebras e impalas. Devo dizer que não pude deixar de
experimentar um certo medo, aliado a um misto de respeito, ao dar com os olhos,
de dentro de uma carocha, de janelas fechadas, nas dimensões gigantescas de
três elefantes, a movimentar-se pesadamente, a trote lento, à beira da estreita
estrada de terra batida, por onde deslizava a nossa carocha. Quisessem eles, e
uma pequena trombada bastava para fazer ir pelos ares o nosso minúsculo
veículo. Como se lesse o meu pensamento, o nosso motorista, certamente
adestrado para peripécias dessa natureza, fez um movimento tal, que os três
elefantes embandeiraram as caudas e as trombas e deram um rincho tão
ensurdecedor, que me fizeram arrepiar os cabelos e tremer as minhas pobres
carnes. Perante essa minha reacção instantânea, o guia e o motorista disseram
que não me assustasse, ao mesmo tempo que sorriam. Que os elefantes faziam
sempre assim para provar a valentia dos turistas noviços. Por outro lado,
quando depois do almoço fôssemos fazer um safari mais a sério, eu podia ter a
certeza que os elefantes iam manifestar mais respeito por nós: é que, em vez da
carocha, iríamos viajar de jipe.
Esse primeiro contacto com o mundo
animal do Parque Nacional da Gorongosa era como que um aperitivo para o grande
banquete que nos esperava a seguir ao almoço. E de facto assim aconteceu. É que
não foi preciso andar muito para deparar com três leões, preguiçosamente
deitados à sombra de uns arbustos, quase à beira da picada, a fazer o quilo de
uma farta refeição, feita à base de carnice fresca e fumegante de zebra. E digo
de zebra porque no dia seguinte, a conselho do guia, dirigimo-nos, muito antes
do nascer do sol, para junto do lago
aonde as zebras iam beber. Acocorados no meio dos arbustos, rente ao carreiro
por onde viriam a caminhar as zebras, em direcção ao lago, estavam dois
corpulentos leões, de olhos bem arregalados e de orelhas bem abertas,
preparados para darem as boas vindas às suas futuras presas. No momento em que
duas zebras se aproximam, no seu andar normal, saltam-lhes os dois leões aos
respectivos pescoços, com as fauces escancaradas. Resistência baldada. Em
breves segundos, cada um dos leões enfia-se no coração da mata com a sua
respectiva zebra atravessada nas adestradas e radiantes fauces. Como se fosse
disso que estavam à espera, aos dois leões e às suas respectivas presas
junta-se quase uma dezena de leões de vários tamanhos. Após uma breve
escaramuça, parece terem chegado à conclusão que a caça dava para todos. De
modo que todos se acomodaram à mesa do banquete matutino, refastelando-se
opiparamente e principescamente nas carnes ainda fumegantes das zebras.
Saboreada a cena do hábito alimentício
dos leões, dirigimo-nos para junto do lago. Que majestoso espectáculo! Enquanto
centenas de crocodilos e de hipopótamos nadavam e mergulhavam no meio do lago,
à procura de peixes para o mata-bicho, centenas de búfalos, zebras e impalas
abeiravam-se das margens do lago, baixavam sofregamente o pescoço e bebiam no
meio da maior harmonia, como se se tratasse de uma confraria requintadamente
civilizada. Isto para não falar, naturalmente, dos milhares de aves, de todo o
tamanho, cor e feitio, que se regalavam com os insectos do mato e com os
carrapatos entranhados no pelo de vários dos animais selvagens.
Regressávamos à pousada na maior das
calmas, com o jipe a velocidade mínima, quando deparámos com uma cena
impressionante, pelo que tinha de inédito para mim. Deitados à sombra de uma
árvore, de olhos fechados, estavam 17 (dezassete) leões. Tendo-se empanturrado
com a carne saborosa das zebras, faziam a digestão e dormiam a sesta. Quase
fazia pena e dava raiva ver o rei da selva, e dos animais, nessa postura
escandalosamente preguiçosa.
Muitos e memoráveis têm sido os meus rendez-vous com a madre natureza (refiro
entre parêntesis, à guisa de exemplo, os inúmeros voos de avião feitos por
sobre as nuvens multifacetadas e multicoloridas de três continentes, as várias
visitas às Cataratas do Niágara e às da Foz do Iguassú, a viagem de barco pelo
rio Nilo, entre Cairo e Assuão, as viagens de carro pelo Vale da Morte, pelo
Salt Lake de Utah, pelas montanhas do Colorado, pelo Gran Canyon, pelas
intermináveis planícies douradas e ondulantes de Kansas e pelas planícies
verdes de Nebraska, a viagem de barco pelo Lago Titicaca, com uma visita à ilha
de Uros, com a sua escola evangélica, a viagem de comboio através dos Andes,
entre Cuzco e Macchu Picchu), mas poucos desses rendez-vous com a madre natureza me encheram tanto os olhos e me
deslumbraram tanto e me calaram tão fundo na mente e no coração como o meu
convívio de dois dias com as maravilhas indescritíveis, sobretudo as do mundo
animal, do Parque Nacional da Gorongosa.
António
Cirurgião
""junto da fronteira com a Rodésia, hoje Zimbabwe.""
ResponderEliminarÉ mais ou menos como dizer que o Parque Florestal de Monsanto em Lisboa está nas proximidades de Sevilha.