terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

A porta do federalismo colonial.





 

O “Memorial” de Marcelo Caetano (1962)
 
O ambiente internacional posterior à Segunda Guerra Mundial levou à reorganização dos Impérios coloniais. Em Portugal, as primeiras reflexões públicas com incidência na forma de Estado foram feitas por Marcelo Caetano na qualidade de regente da disciplina de Administração e Direito Colonial, no ano lectivo de 1949-1950. São, portanto, anteriores à revisão constitucional de 1951, de onde, no entanto, aparentemente estiveram ausentes. O tema visava a posição relativa da metrópole e das colónias e distinguiam-se dois aspectos. O primeiro respeitava às relações entre a Metrópole e as colónias; o segundo era ainda mais vasto e abrangia o problema da função das Metrópoles e do destino das colónias.
Quanto ao primeiro aspecto, as duas soluções possíveis eram a “dominação para servir” ou a “associação na federação”. Observava-se certa tendência para transformar os impérios coloniais (formados numa base de sujeição) em federações ou “comunidades” de índole federativa, onde os domínios ultramarinos surgiam como Estados federados com o Estado metropolitano. Desaparecia o elemento de sujeição para haver um facto político de associação. Era o fim dos impérios. Restava saber se os territórios africanos já estariam aptos para dispensar a referida “dominação para servir” e serem considerados elementos, embora não soberanos, de um Estado federal. Tais dúvidas e hesitações eram claras no caso da “União Francesa” estabelecida pela Constituição de 1946. A revisão semântica francesa então promovida vai influenciar a revisão constitucional de 1951 (por exemplo, quanto à abolição da terminologia colonial) e, quanto à forma de Estado, tornar-se candente em 1962, mas Portugal não seguirá o caminho francês.
Quanto ao segundo problema – o da função da Metrópole nos territórios coloniais – duas correntes se tinham debatido desde o século XIX. Uma compreendia o self-government e o indirect rule, ou seja, cifrava-se em três pontos fundamentais: “autonomia”, “governo indirecto” e “educação dos povos para a independência”. A função do colonizador era, portanto, a de tutor. O essencial da ideia inglesa era a de os povos coloniais ficarem, após a independência, ligados por uma aliança, pelo que do “Império Britânico” ir-se-ia passando para a “Comunidade das Nações Britânicas” – cujos elementos apresentavam diversos graus de organização política. Será o processo da devolution, estatuto fundamental da descolonização britânica. Em síntese, no pós-guerra, o pensamento colonial britânico mudara e hesitava.
Por seu lado, os povos latinos – principalmente portugueses e espanhóis, impulsionados pelo que se poderia chamar ânsia missionária – tinham outra posição e prosseguiam uma política de assimilação. Neste sistema impunha-se um governo directo. Daí duas tendências: a)- transformar as colónias numa parcela do território nacional, desenvolvidas em províncias ultramarinas e beneficiando de igualdade de direitos e condições com as províncias metropolitanas; e b)- repugnar a ideia da sua independência. Não ocorria ligação necessária entre ambos os sistemas possíveis pois a assimilação total acabava por «desvanecer o Império, exactamente como a autonomia política o desagrega. E a assimilação pode conduzir tanto ao Estado unitário como ao Estado federal». Concluindo as suas Lições, Marcelo Caetano, embora sublinhando não procurar apresentar uma solução concreta, formulava então, e pela primeira vez, a hipótese de uma solução federalista para o caso português: «Para as colónias da África Tropical a era do império ainda não passou. A hipótese federativa, como termo político da evolução colonial, não parece de excluir. É certo que os portugueses não mostraram nunca uma grande tendência para os regimes federativos; mas isso não significa que com o tempo não venham a compreender a sua prática». Na sequência desta primeira aproximação, Marcelo Caetano vai tornar-se (por alguns anos, entre o fim da década de cinquenta e o princípio da década de sessenta) adepto do federalismo.
Como se disse, esta perspectiva não foi abordada na revisão constitucional de 1951 – nem sequer no Parecer da Câmara Corporativa – onde, pelo contrário, acabou por prevalecer a linha assimilacionista e “unitarista”. Posteriormente, Marcelo Caetano subiu na carreira política, exercendo, de 7-7-1955 a 14-8-1958, as funções de Ministro da Presidência – de onde sairá decidido a abandonar a vida política. Porém, enquanto Ministro, manteve múltiplas conversas reservadas com Salazar sobre os problemas do Ultramar português. Muitos anos depois, recordou, nas suas “Memórias”, que, no fundo, ambos convergiam na futura independência como destino de Angola e Moçambique embora temendo o seu anúncio prematuro, por este acarretar o risco de falta de controlo de tal evolução. Divergiam, sim, quanto aos processos pois, enquanto Marcelo Caetano defendia uma “autonomia progressiva”, da qual a independência surgiria como consequência natural e poderia assumir a forma de um Estado federal, já Salazar achava que não devia ser a Metrópole a fomentar, preparar ou apressar a independência. Salazar acabaria mesmo por aderir à chamada política de integração, segundo a qual, como províncias de uma Nação independente, os territórios ultramarinos gozariam de independência do Estado de que eram parte integrante. Mas – acrescentou ainda Salazar, em discurso público de Julho de 1957 – um dia poderiam porventura esses territórios ultramarinos vir a gozar de atributos próprios de soberania, integrando uma “Comunidade Lusíada”, ao lado da Comunidade britânica e da Comunidade hispânica.
Em 1961, a constituição de um Estado Federal, abrangendo Portugal e as suas colónias, tinha sido publicamente defendida por Henrique Galvão e Humberto Delgado, então exilados no Brasil. A questão do federalismo surgia no início da década de sessenta como (única) forma de Portugal manter laços com os territórios ultramarinos e de defesa «pelo quase intoxicante ideal da Nação Una, ’única, multirracial e pluricontinental’» (Hermínio Martins).
Em 1962, o primeiro documento a invocar é o Memorial da autoria de Marcelo Caetano, Professor da Faculdade de Direito de Lisboa (assim identificado, dactilograficamente, no cabeçalho do texto), datado de 2 de Fevereiro de 1962. Os exemplares que se conhecem não estão assinados e não contêm qualquer despacho ou anotação. Note-se que por “memorial” designa-se um apontamento, menos formal que um “parecer” (este vale como uma opinião) e que o documento em causa passou a ser designado por Marcelo Caetano simplesmente por “papel” ou “paper”. Dispomos de duas versões “autênticas”. A primeira é o fac-símile do texto original, dactilografado, com duas pequenas correcções ortográficas e datado (mas não assinado) pelo próprio Marcelo Caetano, publicado como Anexo in Marcelo Rebelo de Sousa, Baltazar Rebelo de Sousa – Fotobiografia, Venda Nova, Bertrand Editora, 1999, pp. 572/573. A segunda (que aproveitou anterior difusão pública em fotocópia) é a versão constante de João Paulo Guerra, Memória das Guerras Coloniais, Porto, Afrontamento, 1994, p. 333, novamente dactilografado, inclusive as partes manuscritas do original.
Marcelo Caetano só reconheceu publicamente a sua autoria em 1974, acrescentando ter sido ouvido por Salazar «a título muito reservado» e na sua qualidade de Conselheiro de Estado e antigo Ministro das Colónias. O documento só se tornou conhecido e famoso ao ser, segundo diz, «abusivamente» divulgado em 1968 para tentar comprometê-lo «aos olhos dos que pensavam identificar-se o patriotismo com a política de integração».
Como no seu texto se refere, tudo começara com um ofício (ou, melhor, carta) de Sarmento Rodrigues, Governador-Geral de Moçambique, que punha «um problema da maior utilidade e até urgência» – a revisão do sistema governativo das províncias ultramarinas, em especial Angola e Moçambique. Após, entre outras, ter desempenhado as funções de Ministro das Colónias e do Ultramar, Sarmento Rodrigues havia sido nomeado para tal cargo pelo Ministro do Ultramar, Adriano Moreira (de resto, seu discípulo), em Maio de 1961. Enviada da Residência do Governador-Geral em Lourenço Marques, datada de 18 de Janeiro de 1962, tal carta, destacando a sua confidencialidade e endereçada ao Ministro do Ultramar, dizia, em resumo, o seguinte:
         i)- estando a Assembleia Nacional a funcionar, chegara o momento de promover uma reforma constitucional que reestruturasse os órgãos de governo das províncias ultramarinas;
         ii)- o essencial seria conseguir primeiro dotar os órgãos cimeiros com os poderes e a latitude que o momento exigia e, para o efeito, a exposição de Sarmento Rodrigues, recordando anteriores pronúncias sobre o conjunto dos territórios, ia basear-se no caso de Moçambique;
         iii)- o Governador-Geral deveria ter os poderes de Ministro de Estado (Alto Comissário) – com assento no Governo Central – e os secretários provinciais  aumentarem para cinco, com o estatuto de secretários (ou subsecretários) de Estado;    
         iv)- o Ministro do Ultramar – «que bem melhor ficaria como um dos Vice-Presidentes do Conselho de Ministros» – deveria ser substituído por um Ministro da Coordenação Nacional;
         v)- o Conselho Legislativo e o Conselho de Coordenação Económica deveriam ser reorganizados e a sua representatividade acrescida;
         vi)- em conclusão, era necessário «comandar os acontecimentos e não ser arrastados por eles» e, para tal, «fazer de sua própria iniciativa, progredir a administração do Ultramar», dando ao mesmo tempo «uma grande satisfação aos homens bons que aqui vivem, assim como confundiria certos detractores»; aliás, se estas ou equivalentes medidas não forem tomadas, e de forma «aberta, franca e decididamente», então «em futuro não muito distante as circunstâncias hão-de impô-las, perdendo-se a maior parte das vantagens, com os prejuízos que não me atrevo a dizer».





Esta proposta de Reforma da Administração Ultramarina foi, conforme relato de Franco Nogueira, enviada por Adriano Moreira «sob sugestão de Salazar» – o qual, no momento, achava que devia ser «ponderado sem restrições» o problema «grave e de fundo» de decidir se devia ou não manter-se a política ultramarina que vinha sendo prosseguida – para «parecer fundamentado» aos antigos Ministros do Ultramar, aos antigos governadores ultramarinos e aos membros do Conselho Ultramarino.
Adriano Moreira e Silva Cunha, embora sem explicitarem o processo de consulta, consideram que se tratava de um “parecer” solicitado em vista da revisão da organização política do ultramar, na sequência de deliberação do Conselho de Ministros. Embora, segundo Adriano Moreira, a convocação do plenário do Conselho Ultramarino tenha sido decidida nesse Conselho de Ministros «ao qual assistiu como convidado e activo interveniente o governador-geral de Moçambique», o certo é que à data em que Marcelo Caetano emitiu o seu “papel” ainda não havia qualquer convocatória do Conselho Ultramarino (feita, para revisão da Lei Orgânica do Ultramar, só em 22 de Setembro do mesmo ano) e, portanto, o “Memorial” em causa não foi emitido propositadamente para ser apresentado em tal reunião. Aliás, o texto de Marcelo Caetano ia para além de mera alteração da Lei Orgânica do Ultramar pois defendia uma indispensável revisão constitucional (processo para que também e em primeiro lugar apontava Sarmento Rodrigues).
O “paper” apresentado por Marcelo Caetano é o único que sobressai entre todos os pareceres emitidos. Discordando de que, na conjuntura, a solução preconizada por Sarmento Rodrigues fosse a melhor – visto não satisfazer as três condições prementes: (1)- melhoria do ambiente internacional; (2)- satisfação dos interesses nacionais; (3)- eficácia administrativa –,  preferiu apresentar um completo e renovador projecto de Constituição Federal,  criando uns “Estados Portugueses Unidos”. Tal modificação constitucional passaria pela transformação do Estado unitário em Estado federal, formado por três Estados Federados (Portugal, Angola e Moçambique), enquanto Cabo Verde receberia o estatuto de Ilha Adjacente e as demais Províncias ultramarinas ficariam com o mero estatuto de Província (aliás, não elucidado). Marcelo Caetano assumia tratar-se de «uma modificação profunda», mas parecia-lhe ser a «única jogada» que valia a penas tentar no plano institucional. A criação dos “Estados Portugueses Unidos” implicava um processo constituinte: a constituição federal seria proposta, na altura de se abrir a revisão constitucional, pelos deputados do Ultramar, após moções aprovadas nos Conselhos Legislativos de Angola e Moçambique; depois de aprovada a Constituição Federal pela Assembleia Nacional, logo lhe seria adaptada a Constituição Portuguesa (enquanto Estado Federado) e Angola e Moçambique elaborariam as suas próprias Constituições (também como Estados Federados). Marcelo Caetano não fazia qualquer referência à intervenção das populações nativas, restringindo-a à maior participação dos colonos na administração (pelo que seria acusado de defender um “secessionismo branco”) e, apesar de não concordar com a orientação unitarista e integracionista que o Governo prosseguia em matéria económica, considerava que esta não seria óbice à reforma sugerida.
 Ainda segundo Franco Nogueira, o parecer de Marcelo Caetano foi «ponderado» por Salazar, o qual, além de descortinar «muitos pontos de semelhança» com as teses defendidas pelo ex-Ministro da Defesa Botelho Moniz um ano antes, concluiu que a sua aplicação traria a «perda do Ultramar a curto prazo». Porém, o Memorial iria, em Outubro desse ano, aparecer no plenário do Conselho Ultramarino trazido ao que diz supor Adriano Moreira «pela mão do comum amigo Dr. José de Almeida Cotta, secretário-Geral do Ministério». Mas Salazar – que recebia cópia de todos os documentos distribuídos no plenário – «fez a sua única intervenção mandando pedir que a circulação fosse interrompida, e o documento […] entrou na penumbra». Silva Cunha acrescenta que – conforme o dossiê que lhe foi transmitido para preparação do plenário – as pretensões federalistas também foram, na altura, sustentadas pelos anteriores Ministros do Ultramar, Francisco Vieira Machado e Vasco Lopes Alves.
 Ao contrário do que sugerem vários autores, o Memorial de Marcelo Caetano não teve qualquer debate ou repercussão no plenário do Conselho Ultramarino, nem para tal fora elaborado. Na minha opinião, ao apresentar este Memorial nos termos em que o fez (reservado e discreto), Marcelo Caetano cometeu um erro com consequências imprevistas e prolongadas: quer imediatas (porque o seu texto acabou por ser conhecido e logo escamoteado no Conselho Ultramarino em que apenas se discutia a revisão da Lei Orgânica do Ultramar), quer em 1968 (porque a sua “recuperação” pesou na nomeação como Presidente do Conselho), quer em 1971 (porque o seu passado federalista obnubilou a proposta de revisão constitucional), quer em 1974 (porque a reapropriação do federalismo no livro de Spínola Portugal e o Futuro acelerou a sua derrota e exílio).
 

Nota: este texto baseia-se nas investigações do autor sobre A Constituição Colonial Portuguesa – Das colónias, do império, do ultramar e da descolonização, a publicar.
 

António Duarte Silva
 

1 comentário:

  1. Aguardo com expectativa o seu livro.

    Deste excerto concluo desde já duas coisas:

    1)Havia no regime, a par de "bonecos" como o que está na nota de 1000 escudos, homens de inegável qualidade política e grande cultura e que reflectiam, genuinamente preocupados, o futuro do país com fina acuidade e enorme profundidade como Sarmento Rodrigues, Adriano Moreira e Caetano e mesmo, no campo oposto, Franco Nogueira. Pergunto-me se não lhes faltou em coragem (política, coragem moral tinham-na) o que lhes sobrava em reflexão política e se o país, e acima de tudo, as ex-colónias não ficaram a perder com isso.
    2)O medo da mudança, ainda que tenha o objectivo de manter a essência do "status", faz parte da natureza das ditaduras e dos ditadores. E Salazar não escapou a esse ADN. O homem "achava que devia ser «ponderado sem restrições» o problema «grave e de fundo» de decidir se devia ou não manter-se a política ultramarina que vinha sendo prosseguida", mas, antes, na sua cabeça já havia concluído que a política ultramarina “dominação para servir” era para manter. E, tragicamente, manteve.

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